sábado, 1 de fevereiro de 2014

A CRISE NA GRÉCIA E AS SUAS LIÇÕES PARA A ESQUERDA

                                                          



      Christian Rath

            A agenda política da classe operária, com todas as tendências que distinguem seus países e continentes, está definida por um período histórico de transição, marcado por crises econômicas, políticas e internacionais, que prenunciam uma nova ação histórica independente das massas. Uma estatística recente assinala a queda de 26 governos nos últimos dois anos e meio. Incluindo a derrubada de regimes políticos inteiros e de revoluções, em particular no norte da África e no Oriente Médio, entre elas na Tunísia e no Egito. Por outro lado, somente a reviravolta política na Grécia, derrubou ao menos três governos no último período.
            O desenvolvimento de crises em numerosos regimes políticos, com lutas e rebeliões populares, colocou fim à hipótese conservadora, mais acentuada na esquerda do que na direita, de que a crise mundial em curso não seria mais que um episódio econômico sem alcances históricos na luta de classes. A questão da reviravolta política das massas domina o cenário mundial. Manifesta-se em três questões de fundo: a ameaça de dissolução da União Europeia, o desenvolvimento da revolução árabe e a ameaça de maiores guerras em toda essa região, e por último na derrubada dos partidos patronais e no ascenso da esquerda na Grécia (que agora se insinua com força na Espanha e, até certo ponto, na Itália). A política revolucionária consiste em orientar esta mudança até a luta pelo poder da classe operária.
            A experiência da Grécia tem sido objeto de diversos debates políticos, os quais  simplesmente manifestaram o enorme atraso político da esquerda, que tem abordado o ascenso da esquerda grega desde um ângulo falsamente ideológico. Esse enfoque isola este ascenso do quadro político geral e da reviravolta que se pressente do lado dos trabalhadores. O Syriza, uma coalizão de características oportunistas, canalizou uma reviravolta política popular a partir de uma proposta política: “Por Um Governo da Esquerda”, tornando explicito, durante o percurso, o completo vazio político de várias organizações centristas da esquerda revolucionária. O Partido Obrero apoiou a reivindicação de um governo da esquerda como uma proposta de ruptura com os partidos patronais e como um governo de trabalhadores, em contraposição ao Syriza, que o entende como um governo pequeno burguês parlamentar nos marcos capitalistas. Um governo da esquerda grega representaria uma forma de governo de transição, no marco de um ascenso político das massas, entre um retorno à “normalidade” capitalista e um regime proletário. Tomar as propostas reformistas do Syriza para adotar uma posição neutra entre a reviravolta das massas, de um lado, e a resistência da burguesia, de outro, é o mais parecido ao liquidacionismo político. O abstencionismo em uma situação de crise política extrema - em particular quando ela é o resultado de uma reviravolta popular- revela um cretinismo político insuperável.
            É inevitável que a bancarrota capitalista se desenvolva através de sucessivas transições, tanto econômicas como políticas, frente às quais é necessário desenvolver a ação das massas e
não refugiar-se, seja em um puro seguidismo ou em um ultimatismo ideológico pedante. A III
Internacional ignorou este problema durante um curto período, apesar da experiência do partido
bolchevique entre fevereiro e outubro de 1917, que pagou muito caro por ocasião do levantamento popular da Alemanha em 1920. Esta experiência  obrigou-a a discutir, e com que aspereza! Em
consequência disso, encarou uma política concreta frente aos governos de transição, incluídos
aqueles que podiam ter como ponto de partida uma combinação parlamentar de partidos de
esquerda.
            A súbita emergência eleitoral do Syriza comoveu a burguesia europeia, envolvida em uma crise pela permanência ou não da Grécia na zona do euro e na União Europeia. A posição do Syriza, a favor de permanecer no euro e na UE, não convenceu a nenhuma das frações do imperialismo mundial. É que o Syriza havia assumido o compromisso político de revogar o Memorando que submetia a Grécia a infames planos de austeridade, supervisionados pelo FMI e pela Comissão Europeia. A denúncia de que a revogação do Memorando era incompatível com a permanência na União Europeia (que os revolucionários devem desenvolver de forma sistemática, preparando as massas para a luta pelo poder) é usada pelos sectários para tomar uma posição abstencionista e classificar uma derrota dos partidos patronais diante do Syriza como o equivalente a uma derrota para os trabalhadores. O que emerge daqui é a completa incompreensão, por parte da esquerda auto proclamatória, do caráter do período que está se abrindo na luta de classes e das tarefas que correspondem a essa transição. Não são revolucionários, mas sim retardatários.
            A proposta de “um governo da esquerda” devia ser tomada pela esquerda revolucionária, opondo-lhe “o significado que lhe dá Syriza e o seu programa, definindo-lhe em termos anticapitalistas – em primeiro lugar como um governo de trabalhadores que repudia a dívida externa, que reverte todas as medidas de “austeridade” contra os trabalhadores, que propugna a confiscação dos bancos (…) rompe com a União Europeia (…) e que convoca a formação de comitês operários e de bairros para lutar contra a sabotagem capitalista e para superar a representação formalista do parlamentarismo pela representação direta das massas ativas” (Prensa Obrera 1222).
            Uma parte da esquerda se dissolveu no Syriza (SU, MST, PCR) e chegou a erigi-la em exemplo mundial de uma “esquerda plural” (oportunismo). Outro setor cometeu uma dupla confusão política: por um lado, impugnou a política de “governo de esquerda” por “oportunista e eleitoreira” e, por outro, colocou ao Partido Obrero na mesma bolsa do resto dos grupos que se reclamam do trotskismo(1).
            A proposta do Partido Obrero procede não somente do quarto congresso da III Internacional Comunista(novembro de 1922), senão de toda a experiência mundial desde as revoluções europeias de 1848. Ali se diz, ao analisar as distintas variantes de governos operários, que “os comunistas estão dispostos, em certas condições e sob certas garantias, a apoiar um governo operário não comunista. Mas os comunistas deverão explicar à classe operária que a sua libertação não poderá ser assegurada, senão pela ditadura do proletariado”(2). O PO propôs um governo de esquerda que soma a classe operária organizada no PC e no próprio Syriza, praticamente uma frente única proletária.
            Nas conversações que León Trotsky sustentou com dirigentes do SWP como parte da preparação do Congresso de fundação da IV Internacional(3), estes lhe perguntaram se a consigna de “governo operário e camponês” (ou dos trabalhadores, em uma acepção mais usual) devia ser proposta “como um programa de transição” ou como “pseudônimo da ditadura do proletariado”. Trotsky respondeu: “Em nossa ideia, conduz à ditadura do proletariado”. Em outro diálogo da mesma série, agregou “as amplas massas o entenderão em um sentido democrático parlamentar, mas nós tentaremos explicá-lo em um sentido revolucionário”. Por isso, para que as massas se apropriem deste sentido é necessário explicar e explicar as reivindicações que “devem constituir, em nossa opinião, o programa do governo operário e camponês”, ou seja o Programa de Transição.
            A consigna de um “governo operário e camponês” (ou dos trabalhadores) está concebida em função do que o manifesto de fundação da IV Internacional considera a “tarefa central” dos revolucionários nesta etapa, que é a de “libertar ao proletariado da velha direção”. O chamado às velhas organizações para que rompam com a burguesia e lutem por um governo “próprio” propõe uma linha de ruptura com a classe que tem o timão do Estado e é um chamado aos trabalhadores, que seguem a diversas organizações políticas a lutar pelo poder. Se chegasse a se constituir,
“lhes prometemos um completo apoio contra a reação capitalista”, diz o Programa de Transição. Mas voltando sobre a natureza destes governos, Trotsky assinala - uma vez mais nas “Conversações”- “que este governo seria para nós um passo para a ditadura do proletariado”.
            Em um informe ao IV Congresso da III Internacional (dezembro de 1922), ao referir-se à situação na Alemanha, e mais precisamente na Saxônia, o líder revolucionário expôs uma analogia: “Sob certas condições, a consigna de um governo operário pode fazer-se realidade na Europa. Isto quer dizer que pode chegar um ponto no qual os comunistas junto aos elementos de esquerda da socialdemocracia estabelecerão um governo operário de forma similar ao nosso na Rússia, quando criamos um governo operário e camponês junto com os social revolucionários de esquerda. Uma fase tal constituiria uma transição à ditadura proletária, total e completa(4)
            Impulsionamos a reivindicação de “governo de esquerda”, porém não para integrar esse governo, mas sim para apoiá-lo contra a direita (“naturalmente, nós seguiríamos na oposição”, havia proposto Trotsky ao referir-se à variante de um governo operário de ruptura com a burguesia nas Conversações). (4). É uma consigna de transição para a reviravolta das massas e em uma situação que coloca a questão do poder. O certo é que se não se aprecia uma reviravolta política que estala frente aos nossos olhos, se corre o risco de converter-se em uma estátua de pedra frente à crise.
            “Ao não existir organismos das massas em luta que tendam a criar um duplo poder, este chamado do PO (de defender a consigna de “um governo de toda a esquerda”) apela à vontade da direção de Syriza para que “impulsione” um governo dos trabalhadores, com o qual - longe de combater o reformismo e o pacifismo - fortalece as ilusões parlamentaristas alentadas por esta centro-esquerda”, propõe o PTS. Mas é a III Internacional, antes do que o PO, quem desbarata estas caracterizações em relação com a proposta de “governo de esquerda” ao defender que ainda “um governo operário que resultasse de uma combinação parlamentar pode também brindar a ocasião de reanimar o movimento revolucionário”(3) . O que importa não é se existem ou não “organizações”, mas sim aproveitar a crise revolucionária para criá-las - no caso de que ainda não existam. A resposta ao fato de que “não existem organismos de duplo poder” não pode ser a paralisia ou o abstencionismo: é uma vez mais a III Internacional que propõe que a própria consigna de governo operário é “suscetível de concentrar e desencadear lutas revolucionárias”(3). .
            Um signo da bancarrota desta política é a “saída” desta corrente frente à situação na Grécia: “Para derrotar os planos da União Europeia e da burguesia grega faz falta um programa revolucionário que esteja à altura da ofensiva dos capitalistas”- uma lista de medidas “na perspectiva de impor um governo operário e popular baseado em organismos de democracia operária”.
            Ou seja: durante a crise na Grécia o PTS chamou a se votar...pelo próprio PTS.
            Nossos companheiros do PTS, nesta polêmica, estão se dedicando - como sempre - a mascarar seu sectarismo e o abstencionismo político em situações de crise e de transição, dando lições a todo o mundo. O curioso é que, em uma questão estratégica fundamental, é irmão gêmeo do Syriza. Sim, igual ao Syriza (igual ao MST da Argentina, ou o NPA da França e tantíssimos outros), o PTS não propõe a ruptura com a União Europeia. Em nenhum momento o PTS critica a posição pró-imperialista do Syriza de manter-se na União Europeia. Obviamente, se trata de propor esta ruptura, não do ponto de vista nacionalista, mas sim socialista, o que não se pode deixar é de propô-la com o argumento de que lutamos por um governo de trabalhadores.
            É inquestionável que a luta por quebrar a União Européia deve integrar um programa socialista e que a classe operária na Europa acabará com ela como parte de uma revolução proletária. Mas não é menos evidente que uma parte da classe operária e das classes médias da Europa se paralisam frente à possibilidade de que seus países não continuem na UE, porque veem uma saída da UE como uma passagem para o caos. Sem uma crítica sistemática da União Europeia, como bloco imperialista que reforça a opressão do povo e a exploração do proletariado, não pode começar sequer a desenvolver-se uma alternativa socialista. Tampouco se trata de uma reivindicação menor, porque ela se propõe cotidianamente. Por exemplo, houveram vários referendos sobre tratados comunitários, que obrigavam a definir pelo sim, ou pelo não. Agora mesmo está em discussão o “resgate” da Espanha, que a colocaria sob supervisão da UE e do FMI, ou a proposta de passar a uma integração política e a uma Europa federal. Concretamente, isto vai se converter a curto prazo no tema político central na Alemanha, dada a existência de um setor da burguesia que está a favor da expulsão da Grécia. O ponto se faz mais relevante, porque a UE não é um bloco histórico homogêneo de nações: existem Estados imperialistas, Estados intermediários (semi-imperialistas) e Estados semi-coloniais. Em cada um deles, a questão da UE se apresenta de um modo diferente. A Grécia é, por sua vez, uma colônia do capital estrangeiro europeu e uma nação opressora, até certo ponto, nos Bálcãs. Um revolucionário alemão deve denunciar a UE como instrumento de exploração de sua própria burguesia; um romano ou grego deve denunciar a associação de sua burguesia com o capital estrangeiro, que no caso de Grécia, por exemplo, quer acentuar a tutela política da UE sobre a Grécia (protetorado). A questão da União Europeia é o eixo da crise na Grécia, mas o PTS distribui sermões em todas as direções, enquanto evita o núcleo da questão. Critica o Syriza (e além disso, criticam também aqueles que impulsionaram um governo de esquerda desde uma posição classista), mas coincide, por meio de uma clamorosa omissão, com a proposta fundamental da Syriza. É claro que não entende a época que estamos transitando nem os problemas que ela nos apresenta.
            Nossa posição não tem nada a ver com o programa de um governo “contra os planos de austeridade” fundado em uma frente de esquerda em torno à Syriza (PSTU Brasil), que é o mesmo que propõe o Syriza (revogar o Memorando), senão contrapor ao Syriza uma proposta anticapitalista. O SU/MST(Argentina) chamou a imitar ao Syriza como expressão plena da esquerda “plural”. Os sectários se valem dos oportunistas para justificar seu sectarismo, mas o que está em discussão aqui não é uma querela entre seitas, senão a posição política quarta internacionalista em uma situação pré-revolucionária de transição.O imenso atraso político da chamada esquerda trotskista consiste em usar a crise mundial para revalidar querelas de seitas, quando se trata de oferecer uma caracterização desenvolvida da transição e da reviravolta política, assim como oferecer uma orientação adequada a esta situação.
            As eleições apresentaram outra coalizão da esquerda, o Antarsya (à esquerda do Syriza), mas
sem relevância na situação política concreta. Tampouco tinha a seu favor uma posição política
clarificadora, dado que rechaçava a proposta de um governo de trabalhadores. Nesta frente
heterogênea se encontram forças partidárias e adversárias de seguir na União Europeia, o bloco imperialista europeu. Votar na Antarsya aumentou a confusão, sem a contrapartida de um progresso do movimento real. Fazê-lo foi, no entanto, o refúgio das seitas sem política.
            O problema que este artigo discute é mundial: é o desenvolvimento de uma enorme transição política do capitalismo e do proletariado. Temos que tê-lo presente na Argentina, aonde nosso partido atua na Frente de Esquerda, para pôr-se à cabeça das reviravoltas da situação política e das massas, e não para prosperar pela autoproclamação. Nossa paixão pela discussão sobre a Grécia obedece ao objetivo de que suas lições são internacionais. Necessitamos desenvolver uma análise da mesma qualidade sobre as revoluções árabes, as guerras civis e as guerras internacionais com as quais o imperialismo tenta conter essas revoluções, porque são lições enormes para toda a América Latina.




1-.“O fenômeno eleitoral da Syriza entusiasmou a muitos na esquerda que se reclama trotskista,
que rapidamente fizeram sua a consigna de “governo de esquerda”… os companheiros do PO
também estão se somando a este coro de organizações” (La Verdad Obrera 478, 7/6 jornal do PTS da Argentina). As citações, salvo indicação em contrário, pertencem a este periódico.

2.“Resolução sobre a tática da Internacional Comunista”, nos quatro primeiros congressos da
Internacional Comunista, Tomo II, Editora Pluma, 1973.

3.León Trotsky, Writings (1937-38), Nueva York, Pathfinder Press, 1985.

4.León Trotsky, The First Five Years of the Communist International, T.II, New Park, Londres,

1974.