Christian Rath
A
agenda política da classe operária, com todas as tendências que distinguem seus
países e continentes, está definida por um período histórico de transição,
marcado por crises econômicas, políticas e internacionais, que prenunciam uma
nova ação histórica independente das massas. Uma estatística recente assinala a
queda de 26 governos nos últimos dois anos e meio. Incluindo a derrubada de
regimes políticos inteiros e de revoluções, em particular no norte da África e
no Oriente Médio, entre elas na Tunísia e no Egito. Por outro lado, somente a
reviravolta política na Grécia, derrubou ao menos três governos no último
período.
O
desenvolvimento de crises em numerosos regimes políticos, com lutas e rebeliões
populares, colocou fim à hipótese conservadora, mais acentuada na esquerda do
que na direita, de que a crise mundial em curso não seria mais que um episódio
econômico sem alcances históricos na luta de classes. A questão da reviravolta
política das massas domina o cenário mundial. Manifesta-se em três questões de
fundo: a ameaça de dissolução da União Europeia, o desenvolvimento da revolução
árabe e a ameaça de maiores guerras em toda essa região, e por último na
derrubada dos partidos patronais e no ascenso da esquerda na Grécia (que agora
se insinua com força na Espanha e, até certo ponto, na Itália). A política
revolucionária consiste em orientar esta mudança até a luta pelo poder da
classe operária.
A
experiência da Grécia tem sido objeto de diversos debates políticos, os
quais simplesmente manifestaram o enorme
atraso político da esquerda, que tem abordado o ascenso da esquerda grega desde
um ângulo falsamente ideológico. Esse enfoque isola este ascenso do quadro
político geral e da reviravolta que se pressente do lado dos trabalhadores. O
Syriza, uma coalizão de características oportunistas, canalizou uma reviravolta
política popular a partir de uma proposta política: “Por Um Governo da
Esquerda”, tornando explicito, durante o percurso, o completo vazio político de
várias organizações centristas da esquerda revolucionária. O Partido Obrero
apoiou a reivindicação de um governo da esquerda como uma proposta de ruptura
com os partidos patronais e como um governo de trabalhadores, em contraposição
ao Syriza, que o entende como um governo pequeno burguês parlamentar nos marcos
capitalistas. Um governo da esquerda grega representaria uma forma de governo
de transição, no marco de um ascenso político das massas, entre um retorno à
“normalidade” capitalista e um regime proletário. Tomar as propostas
reformistas do Syriza para adotar uma posição neutra entre a reviravolta das
massas, de um lado, e a resistência da burguesia, de outro, é o mais parecido
ao liquidacionismo político. O abstencionismo em uma situação de crise política
extrema - em particular quando ela é o resultado de uma reviravolta popular-
revela um cretinismo político insuperável.
É
inevitável que a bancarrota capitalista se desenvolva através de sucessivas
transições, tanto econômicas como políticas, frente às quais é necessário
desenvolver a ação das massas e
não refugiar-se, seja em um puro
seguidismo ou em um ultimatismo ideológico pedante. A III
Internacional ignorou este
problema durante um curto período, apesar da experiência do partido
bolchevique entre fevereiro e
outubro de 1917, que pagou muito caro por ocasião do levantamento popular da
Alemanha em 1920. Esta experiência
obrigou-a a discutir, e com que aspereza! Em
consequência disso, encarou uma
política concreta frente aos governos de transição, incluídos
aqueles que podiam ter como ponto
de partida uma combinação parlamentar de partidos de
esquerda.
A
súbita emergência eleitoral do Syriza comoveu a burguesia europeia, envolvida
em uma crise pela permanência ou não da Grécia na zona do euro e na União
Europeia. A posição do Syriza, a favor de permanecer no euro e na UE, não
convenceu a nenhuma das frações do imperialismo mundial. É que o Syriza havia
assumido o compromisso político de revogar o Memorando que submetia a Grécia a
infames planos de austeridade, supervisionados pelo FMI e pela Comissão
Europeia. A denúncia de que a revogação do Memorando era incompatível com a
permanência na União Europeia (que os revolucionários devem desenvolver de
forma sistemática, preparando as massas para a luta pelo poder) é usada pelos
sectários para tomar uma posição abstencionista e classificar uma derrota dos
partidos patronais diante do Syriza como o equivalente a uma derrota para os
trabalhadores. O que emerge daqui é a completa incompreensão, por parte da
esquerda auto proclamatória, do caráter do período que está se abrindo na luta
de classes e das tarefas que correspondem a essa transição. Não são
revolucionários, mas sim retardatários.
A
proposta de “um governo da esquerda” devia ser tomada pela esquerda
revolucionária, opondo-lhe “o significado que lhe dá Syriza e o seu programa,
definindo-lhe em termos anticapitalistas – em primeiro lugar como um governo de
trabalhadores que repudia a dívida externa, que reverte todas as medidas de
“austeridade” contra os trabalhadores, que propugna a confiscação dos bancos
(…) rompe com a União Europeia (…) e que convoca a formação de comitês
operários e de bairros para lutar contra a sabotagem capitalista e para superar
a representação formalista do parlamentarismo pela representação direta das
massas ativas” (Prensa Obrera 1222).
Uma
parte da esquerda se dissolveu no Syriza (SU, MST, PCR) e chegou a erigi-la em
exemplo mundial de uma “esquerda plural” (oportunismo). Outro setor cometeu uma
dupla confusão política: por um lado, impugnou a política de “governo de
esquerda” por “oportunista e eleitoreira” e, por outro, colocou ao Partido
Obrero na mesma bolsa do resto dos grupos que se reclamam do trotskismo(1).
A
proposta do Partido Obrero procede não somente do quarto congresso da III
Internacional Comunista(novembro de 1922), senão de toda a experiência mundial
desde as revoluções europeias de 1848. Ali se diz, ao analisar as distintas
variantes de governos operários, que “os comunistas estão dispostos, em certas
condições e sob certas garantias, a apoiar um governo operário não comunista.
Mas os comunistas deverão explicar à classe operária que a sua libertação não
poderá ser assegurada, senão pela ditadura do proletariado”(2). O PO propôs um governo de esquerda que
soma a classe operária organizada no PC e no próprio Syriza, praticamente uma
frente única proletária.
Nas
conversações que León Trotsky sustentou com dirigentes do SWP como parte da
preparação do Congresso de fundação da IV Internacional(3), estes lhe perguntaram se a consigna de
“governo operário e camponês” (ou dos trabalhadores, em uma acepção mais usual)
devia ser proposta “como um programa de transição” ou como “pseudônimo da
ditadura do proletariado”. Trotsky respondeu: “Em nossa ideia, conduz à
ditadura do proletariado”. Em outro diálogo da mesma série, agregou “as amplas
massas o entenderão em um sentido democrático parlamentar, mas nós tentaremos
explicá-lo em um sentido revolucionário”. Por isso, para que as massas se
apropriem deste sentido é necessário explicar e explicar as reivindicações que
“devem constituir, em nossa opinião, o programa do governo operário e
camponês”, ou seja o Programa de Transição.
A
consigna de um “governo operário e camponês” (ou dos trabalhadores) está
concebida em função do que o manifesto de fundação da IV Internacional
considera a “tarefa central” dos revolucionários nesta etapa, que é a de
“libertar ao proletariado da velha direção”. O chamado às velhas organizações
para que rompam com a burguesia e lutem por um governo “próprio” propõe uma
linha de ruptura com a classe que tem o timão do Estado e é um chamado aos
trabalhadores, que seguem a diversas organizações políticas a lutar pelo poder.
Se chegasse a se constituir,
“lhes prometemos um completo
apoio contra a reação capitalista”, diz o Programa de Transição. Mas voltando
sobre a natureza destes governos, Trotsky assinala - uma vez mais nas
“Conversações”- “que este governo seria para nós um passo para a ditadura do
proletariado”.
Em
um informe ao IV Congresso da III Internacional (dezembro de 1922), ao
referir-se à situação na Alemanha, e mais precisamente na Saxônia, o líder
revolucionário expôs uma analogia: “Sob certas condições, a consigna de um governo
operário pode fazer-se realidade na Europa. Isto quer dizer que pode chegar um
ponto no qual os comunistas junto aos elementos de esquerda da socialdemocracia
estabelecerão um governo operário de forma similar ao nosso na Rússia, quando
criamos um governo operário e camponês junto com os social revolucionários de
esquerda. Uma fase tal constituiria uma transição à ditadura proletária, total
e completa”(4)
Impulsionamos
a reivindicação de “governo de esquerda”, porém não para integrar esse governo,
mas sim para apoiá-lo contra a direita (“naturalmente, nós seguiríamos na
oposição”, havia proposto Trotsky ao referir-se à variante de um governo
operário de ruptura com a burguesia nas Conversações). (4). É uma consigna de transição para a
reviravolta das massas e em uma situação que coloca a questão do poder. O certo
é que se não se aprecia uma reviravolta política que estala frente aos nossos
olhos, se corre o risco de converter-se em uma estátua de pedra frente à crise.
“Ao
não existir organismos das massas em luta que tendam a criar um duplo poder,
este chamado do PO (de defender a consigna de “um governo de toda a esquerda”)
apela à vontade da direção de Syriza para que “impulsione” um governo dos
trabalhadores, com o qual - longe de combater o reformismo e o pacifismo -
fortalece as ilusões parlamentaristas alentadas por esta centro-esquerda”,
propõe o PTS. Mas é a III Internacional, antes do que o PO, quem desbarata
estas caracterizações em relação com a proposta de “governo de esquerda” ao
defender que ainda “um governo operário que resultasse de uma combinação
parlamentar pode também brindar a ocasião de reanimar o movimento
revolucionário”(3) . O que importa
não é se existem ou não “organizações”, mas sim aproveitar a crise
revolucionária para criá-las - no caso de que ainda não existam. A resposta ao
fato de que “não existem organismos de duplo poder” não pode ser a paralisia ou
o abstencionismo: é uma vez mais a III Internacional que propõe que a própria
consigna de governo operário é “suscetível de concentrar e desencadear lutas
revolucionárias”(3). .
Um
signo da bancarrota desta política é a “saída” desta corrente frente à situação
na Grécia: “Para derrotar os planos da União Europeia e da burguesia grega faz
falta um programa revolucionário que esteja à altura da ofensiva dos
capitalistas”- uma lista de medidas “na perspectiva de impor um governo
operário e popular baseado em organismos de democracia operária”.
Ou
seja: durante a crise na Grécia o PTS chamou a se votar...pelo próprio PTS.
Nossos
companheiros do PTS, nesta polêmica, estão se dedicando - como sempre - a
mascarar seu sectarismo e o abstencionismo político em situações de crise e de
transição, dando lições a todo o mundo. O curioso é que, em uma questão
estratégica fundamental, é irmão gêmeo do Syriza. Sim, igual ao Syriza (igual
ao MST da Argentina, ou o NPA da França e tantíssimos outros), o PTS não propõe
a ruptura com a União Europeia. Em nenhum momento o PTS critica a posição
pró-imperialista do Syriza de manter-se na União Europeia. Obviamente, se trata
de propor esta ruptura, não do ponto de vista nacionalista, mas sim socialista,
o que não se pode deixar é de propô-la com o argumento de que lutamos por um
governo de trabalhadores.
É
inquestionável que a luta por quebrar a União Européia deve integrar um
programa socialista e que a classe operária na Europa acabará com ela como
parte de uma revolução proletária. Mas não é menos evidente que uma parte da
classe operária e das classes médias da Europa se paralisam frente à possibilidade
de que seus países não continuem na UE, porque veem uma saída da UE como uma
passagem para o caos. Sem uma crítica sistemática da União Europeia, como bloco
imperialista que reforça a opressão do povo e a exploração do proletariado, não
pode começar sequer a desenvolver-se uma alternativa socialista. Tampouco se
trata de uma reivindicação menor, porque ela se propõe cotidianamente. Por
exemplo, houveram vários referendos sobre tratados comunitários, que obrigavam
a definir pelo sim, ou pelo não. Agora mesmo está em discussão o “resgate” da
Espanha, que a colocaria sob supervisão da UE e do FMI, ou a proposta de passar
a uma integração política e a uma Europa federal. Concretamente, isto vai se
converter a curto prazo no tema político central na Alemanha, dada a existência
de um setor da burguesia que está a favor da expulsão da Grécia. O ponto se faz
mais relevante, porque a UE não é um bloco histórico homogêneo de nações:
existem Estados imperialistas, Estados intermediários (semi-imperialistas) e Estados
semi-coloniais. Em cada um deles, a questão da UE se apresenta de um modo
diferente. A Grécia é, por sua vez, uma colônia do capital estrangeiro europeu
e uma nação opressora, até certo ponto, nos Bálcãs. Um revolucionário alemão
deve denunciar a UE como instrumento de exploração de sua própria burguesia; um
romano ou grego deve denunciar a associação de sua burguesia com o capital
estrangeiro, que no caso de Grécia, por exemplo, quer acentuar a tutela
política da UE sobre a Grécia (protetorado). A questão da União Europeia é o
eixo da crise na Grécia, mas o PTS distribui sermões em todas as direções,
enquanto evita o núcleo da questão. Critica o Syriza (e além disso, criticam
também aqueles que impulsionaram um governo de esquerda desde uma posição classista),
mas coincide, por meio de uma clamorosa omissão, com a proposta fundamental da
Syriza. É claro que não entende a época que estamos transitando nem os
problemas que ela nos apresenta.
Nossa
posição não tem nada a ver com o programa de um governo “contra os planos de
austeridade” fundado em uma frente de esquerda em torno à Syriza (PSTU Brasil),
que é o mesmo que propõe o Syriza (revogar o Memorando), senão contrapor ao
Syriza uma proposta anticapitalista. O SU/MST(Argentina) chamou a imitar ao Syriza
como expressão plena da esquerda “plural”. Os sectários se valem dos
oportunistas para justificar seu sectarismo, mas o que está em discussão aqui
não é uma querela entre seitas, senão a posição política quarta
internacionalista em uma situação pré-revolucionária de transição.O imenso
atraso político da chamada esquerda trotskista consiste em usar a crise mundial
para revalidar querelas de seitas, quando se trata de oferecer uma
caracterização desenvolvida da transição e da reviravolta política, assim como
oferecer uma orientação adequada a esta situação.
As
eleições apresentaram outra coalizão da esquerda, o Antarsya (à esquerda do
Syriza), mas
sem relevância na situação
política concreta. Tampouco tinha a seu favor uma posição política
clarificadora, dado que rechaçava
a proposta de um governo de trabalhadores. Nesta frente
heterogênea se encontram forças
partidárias e adversárias de seguir na União Europeia, o bloco imperialista
europeu. Votar na Antarsya aumentou a confusão, sem a contrapartida de um progresso
do movimento real. Fazê-lo foi, no entanto, o refúgio das seitas sem política.
O
problema que este artigo discute é mundial: é o desenvolvimento de uma enorme
transição política do capitalismo e do proletariado. Temos que tê-lo presente
na Argentina, aonde nosso partido atua na Frente de Esquerda, para pôr-se à
cabeça das reviravoltas da situação política e das massas, e não para prosperar
pela autoproclamação. Nossa paixão pela discussão sobre a Grécia obedece ao
objetivo de que suas lições são internacionais. Necessitamos desenvolver uma
análise da mesma qualidade sobre as revoluções árabes, as guerras civis e as
guerras internacionais com as quais o imperialismo tenta conter essas
revoluções, porque são lições enormes para toda a América Latina.
1-.“O fenômeno eleitoral da Syriza
entusiasmou a muitos na esquerda que se reclama trotskista,
que rapidamente fizeram sua a
consigna de “governo de esquerda”… os companheiros do PO
também estão se somando a este
coro de organizações” (La Verdad Obrera 478, 7/6 jornal do PTS da Argentina).
As citações, salvo indicação em contrário, pertencem a este periódico.
2.“Resolução
sobre a tática da Internacional Comunista”, nos quatro primeiros congressos da
Internacional Comunista, Tomo II,
Editora Pluma, 1973.
3.León
Trotsky, Writings (1937-38), Nueva York, Pathfinder Press, 1985.
4.León
Trotsky, The First Five Years of the Communist International, T.II, New Park,
Londres,
1974.