terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

VENEZUELA: GOLPISMO DE DIREITA E AUTOGOLPE CHAVISTA

                                                                                     


JORGE ALTAMIRA



                Em menos de dez semanas o chavismo passou da vitória eleitoral nas eleições municipais a uma crise política, cujo desenvolvimento leva inevitavelmente a uma mudança de regime político; nem o atual governo pode seguir governando nos termos que vinha fazendo, nem a oposição encontra uma metodologia que a mantenha unificada. Ocorre que a desorganização econômica alcançou proporções gigantescas, que apagam na prática o alcance das eleições, quando a oposição fracassou no propósito de convertê-las em um plebiscito que produziria a derrubada do governo. Criou-se um impasse gigantesco em seu conjunto. O governo triunfante é incapaz de deter a marcha implacável da queda da atividade econômica e a irrupção conseqüente de uma explosão social, enquanto a oposição, estimulada por essa crise social, vem de uma derrota político-eleitoral que acentuou a divisão em suas fileiras. O desabastecimento alcança 30% da oferta de produtos e a indústria e as importações estão paralisadas como consequência de uma situação cambiária terminal, porque o governo não pode oferecer divisas para os câmbios legais, pois isso provocaria uma hemorragia financeira pela via dos mercados paralelos.
            O imobilismo do governo tem sido explorado pela ala direita da oposição, que entende que não há margem para esperar a convocatória de um referendo revocatório do presidente Maduro, em 2016, quando o habilita a constituição. Esta velha fração de direita da oposição gorila, tem rejeitado a tese do chefe da oposição, Henrique Capriles, para quem não há possibilidade de inclinar a balança nas ruas, com tanto que não se produza uma deserção em massa da população que segue respaldando o chavismo. As mobilizações que começaram em fevereiro, a partir do agravamento da insegurança nos ‘campus’ universitários, onde prevalece o movimento estudantil opositor, deu motivos de protestos a todo o mundo: o imobilismo do governo criou uma situação explosiva; o ritmo da crise não habilita uma posição de espera; a oposição não tem ganhado para seu campo a massa chavista; o governo responde com um aparato de repressão legal e para-legal, que mostra o esvaziamento de sua base popular.
            Como ocorre em uma posição de ‘zugswang’1, no xadrez, não pode mover-se nenhuma peça. Daí que se ofereçam saídas bizarras, como a do teórico do ‘socialismo do século XXI’ Hans Drietrich, que tem chamado a se formar um governo de coalizão com Capriles, ou a propiciar uma mediação internacional. A possibilidade de um golpe gorila está fora do radar, por mais que o invoquem, porque as armas quem as detêm são as forças armadas controladas pelo chavismo e porque Obama tão pouco está impulsionando esta alternativa. Ao governo norte-americano lhe interessa, em primeiro lugar, que o presidente Manuel Santos seja reeleito e que prossiga com as negociações com as FARC. O triângulo do golpismo gorila está formado pelo agora detido Leopoldo López, pelo paramilitar colombiano Uribe e pelos fascistas norte-americanos do Tea Party.  Trata-se de um menu indigesto inclusive para a burguesia mundial e os principais governos imperialistas. Aqueles que estão obrigados a impedir que a situação venezuelana se degenere são, especialmente, Cuba, Brasil, Argentina e, em última instância, a Colômbia. Raúl Castro e Dilma Roussef não somente tem um ponto de encontro nos crescentes investimentos brasileiros (construtoras, petroleiras) em Cuba, assim como nos governos de El Salvador e da Nicarágua, que devem bastante ao maquinário eleitoral que o Brasil vem usando com êxito em diversos países.
            As alternativas que poderiam negociar a dupla lulo-castrista são, no entanto, limitadas. A Venezuela enfrenta uma crise econômica e social fora do comum. O ‘ajuste’ que delineia seu desequilíbrio financeiro é enorme; A Venezuela necessitaria de um grande financiamento internacional, que estaria condicionado a que seu governo coloque um freio brutal no sistema de planos sociais. O ‘ajuste’ converteria-se em um ‘harakiri’ para o chavismo; seria incompatível  com o governo e o regime político vigentes. Uma possibilidade de golpismo oficial retomaria uma alternativa já mencionada na imprensa internacional no passado recente, ou seja a de um governo transitório de militares chavistas, encarregado de uma normalização política. Seria uma espécie de golpe a Jaruzelski, o militar polaco ‘comunista’ e ‘pró soviético’ que presidiu, precisamente por isso, a transição da Polônia ao capitalismo a la Otan. A oposição gorila o receberia com grande repúdio, é lógico, porém e sobretudo, com uma expectativa ainda maior, porque um golpe dessas características teria minado de forma irreversível a autoridade histórica do movimento bolivariano. Uma parcela da esquerda saudaria, em sua ignorância, com regozijo o golpe, que seria o sepulcro do chavismo.
            A perola de Cristina Kirchner de que “os extremos se juntam”, poderia encontrar na Venezuela uma confirmação inédita, pois as marchas opositoras, com um definido propósito golpista, somente poderiam materializar-se no caso de que o próprio chavismo oficialize um estado de exceção, ou seja, arbitrariedade estatal. As reivindicações estudantis opositoras são justas; é lamentável que não as tenham levantado, na Venezuela, as juventudes ‘socialistas’, assim como na Argentina são levantadas pela FUBA (Federação Universitária de Buenos Aires), privando, de passagem, a direita de uma arma de demagogia popular. Nos referimos às mobilizações contra os estupros, tentativas de sequestro e sequestro efetivo de universitárias, atos criminais que contam, na Argentina, com a cumplicidade policial. O mesmo vale para a luta contra o desabastecimento e contra a carestia ou contra o enriquecimento descomunal dos capitalistas amigos e os sobre-preços das obras públicas. Porem, ao inverso do que ocorre na Argentina, na Venezuela, este movimento tem uma direção política de direita e definidamente golpista. Isto é o que importa na hora de sua caracterização. Ao mesmo tempo, a repressão criminosa por parte de grupos chavistas paralelos, que são designados como “coletivos”, com a cumplicidade do poder político, colocam a nu uma tendência reacionária e fascistizante do governo, cuja implicação política é apontar a tendência à instauração de uma ditadura. As conspirações que impulsionam a direita, valendo-se de uma demagogia democrática e popular, devem ser combatidas em primeiro lugar com a mobilização das massas e, sobretudo, com a passagem do poder político e da estrutura social aos trabalhadores e a classe operária. A Venezuela está governada por uma camarilha política e econômica e pela chamada ‘boliburguesia’ (burguesia bolivariana).
            Fruto da crise estão se desenvolvendo mobilizações operárias, por exemplo na indústria automobilística , neste caso encabeçada pela UNT, dirigida pelo chavismo. Os trabalhadores exigem a nacionalização da indústria para assegurar os postos de trabalho. Trata-se, no entanto, de uma reivindicação insuficiente, isto a partir do fracasso impressionante das nacionalizações chavistas, que colaboraram com a crise econômica industrial. O que importa é o controle e a gestão operária coletiva da economia nacionalizada, a qual implica um governo dos trabalhadores. Ainda com essas limitações, ante os protestos patronais, tanto o poder judicial como a guarda nacional intervieram contra os trabalhadores. A burocracia sindical mobilizou no domingo passado aos trabalhadores petroleiros e automotrizes para apoiar o governo. Um setor minoritário encabeçado por dirigentes petroleiros classistas rechaçou esta cooptação e convocou a um Encontro Nacional Sindical e Popular de Setores em Luta para discutir um Plano Econômico e Social de Emergência e um plano de mobilização nacional em defesa dos direitos dos trabalhadores e do povo. O problema da independência política do movimento operário segue sendo o problema crucial da situação política venezuelana.
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1 - Zugzwang no xadrez, indica uma dada posição no tabuleiro, na qual os dois enxadristas não têm igualmente nenhuma opção favorável. Simplesmente, refere-se àquelas posições em que a obrigação de jogar é prejudicial; posições em que seria preferível “passar” a vez, se isso fosse possível no jogo. Quando o único movimento viável, é não mover-se de nenhuma forma.