Osvaldo
Coggiola
Notas no final da terceira e última parte do texto
Em
reunião plenária do Senado, a 11 de maio de 2016, foi aprovado, por
55 votos favoráveis e 22 votos contra, a admissibilidade do
impeachment de Dilma Rousseff, afastada do cargo por um período de
até 180 dias, para que o processo seja concluído com sua previsível
destituição (para a qual bastam 54 votos do Senado). Um mês antes
disso, um conceituado jurista, vinculado às Forças Armadas e
conspícuo defensor do impeachment, afirmou o que segue num dos
jornais mais lidos do país, no exato dia da votação da matéria na
Câmara de Deputados: “A presidente Dilma tornou o país
ingovernável, sem condições de reverter a recessão, o desemprego,
o crescimento da inflação para dois dígitos, os juros altos e a
pestilência da corrupção que inundou sua administração. O
impeachment será, pois, julgado politicamente à luz do imperativo
da governabilidade do país e dos elementos jurídicos que o
embasam”.
Em bom português: os “elementos jurídicos” do impeachment são
apenas funcionais à questão central da capacidade ou da
incapacidade do governo para enfrentar a crise econômica e política,
ou seja, possuem uma função ornamental.
O
impeachment de Dilma Rousseff, só por causa disso, pode ser
qualificado politicamente
como um golpe de Estado. Quem limita o uso desse conceito aos golpes
militares, ou às mudanças de regime político obtidas mediante o
uso explícito da força, possui um conceito estreito e formal, não
só do conceito de golpe, mas também do próprio Estado e de seus
regimes políticos. A ascensão de Hitler e a concentração em suas
mãos de todas as alavancas de poder, que concluiu rapidamente na
criação do Estado nazista, foram realizadas mediante o uso dos
mecanismos constitucionais existentes na República de Weimar. Foi
uma maioria parlamentar do Reichstag
(com
o Partido Comunista da Alemanha já posto na ilegalidade) que
concedeu os plenos poderes ao ditador, que os usou depois para
dissolver o parlamento e criar um regime declaradamente
antidemocrático, racista, corporativo e genocida (e também, claro,
para suprimir a Constituição precedente).
Contrariamente às esperanças do reformismo de todas as cores, pela
porta da democracia burguesa não passou o socialismo, mas o regime
político mais reacionário da história.
O
golpe-impeachment brasileiro pôs na berlinda um prato que vinha
sendo cozinhado como possível alternativa política havia mais de um
ano (ou seja, apenas três meses depois da posse do governo Dilma II)
em reuniões mensais de parlamentares opositores e situacionistas (da
“base aliada”), além de juristas e economistas de todas as cores
políticas e ideológicas, reuniões organizadas por um deputado
federal piauiense do PSB em Brasília.
Tudo concluiu na apresentação da moção de destituição da
presidenta por juristas de origens políticas diversas, como Hélio
Bicudo e Miguel Reale Jr, além de uma professora de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) até então desconhecida do grande
público.
Que
o impeachment estivesse sendo preparado quase desde o início da
quarta administração petista tem um significado político que
transcende sua circunstância imediata. Dilma Rousseff foi, no
momento de suas duas vitórias eleitorais, qualificada (ou melhor,
desprezada) como um “poste” de Lula não só pela oposição, mas
também pelos aliados parlamentares do PT, partido responsável pela
vitória eleitoral da coalizão que a tinha como candidata
presidencial. Sua substituição por um vice-presidente peemedebista
que ninguém ousaria qualificar de “poste” significa que foi
usada como “escada” para a chegada ao poder do partido mais
fisiológico e coberto de denúncias de corrupção do país, que não
teria podido conseguir esse feito por si só, posto que amargou
resultados eleitorais lamentáveis em todas as eleições posteriores
à “redemocratização” brasileira em que apresentou candidatos
presidenciais próprios.
A
votação do impeachment na Câmara de Deputados, como se sabe,
apresentou um espetáculo digno de um circo, capaz de desmitificar
historicamente o parlamento brasileiro e, com ele, todo o regime
político vigente no país.
Dos 513 deputados presentes somente cem, menos de 20%, poderiam
mostrar um curriculum
vitae
não manchado pela corrupção. Para dez deles só caberia, como
notou um correspondente estrangeiro, o qualificativo de assassinos.
Isso explica que o julgamento político da presidenta se baseasse em
denúncias sobre as pedaladas fiscais, ou seja, sobre a maquiagem das
contas públicas para esconder o déficit público, prática muito
comum, que já fora usada no passado pelo governo federal de Fernando
Henrique Cardoso, e continua sendo usada por governos estaduais
encabeçados por partidos favoráveis ao impeachment. O relator do
impeachment no Senado, o ex-governador mineiro Antônio Anastasia,
também praticou no seu estado as “pedaladas” pelas quais se
busca destituir a titular do Poder Executivo federal.
Não
entraram no rol das acusações contra Dilma as denúncias de
corrupção na Petrobras e sua rede de empreiteiras. A omissão se
deve ao fato de que os deputados que propuseram e votaram o
impeachment carregam nas costas também denúncias de corrupção
nesse assunto. A lista é encabeçada pelo agora ex presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, possuidor de contas no exterior não
declaradas, negadas em depoimento juramentado (embora comprovadas
pela Justiça), que não se apresentou à citação da Justiça
amparando-se nos foros parlamentares. Até um afilhado político de
Cunha (Fábio Cleto, ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal)
denunciou seu padrinho como beneficiário de uma propina de R$ 52
milhões em apenas um de seus “negócios” escusos. Denúncias
desse tipo também atingem o vice-presidente, “presidente em
exercício”, Michel Temer. A pressa em votar o impeachment
respondeu ao interesse de garantir a impunidade dos próprios
acusadores de Dilma. Por isso, o presidente da comissão de
impeachment no Senado, Raimundo Lira (PMDB), decidiu não incluir as
denúncias da “Lava Jato” no processo de julgamento da
presidente.
Em
editorial de 30 de abril de 2016, a Folha
de S. Paulo,
partidária ostensiva do impeachment, titulou seu editorial
principal: “Chega de Cunha”, consciente de que a presença do
ultracorrupto deputado à frente do processo de destituição
presidencial lhe tirava até os enfeites mais elementares da chamada
“legitimidade política”.
O STF, como se sabe, atendeu o pedido. Diga-se, de passagem, que a
tomada de posição “fora Cunha” do jornal da família Frias foi
realizada depois que, no dia seguinte à votação na Câmara, o
setor mais graúdo da imprensa internacional, a começar pelo The
New York Times,
titulasse ironicamente que corruptos reconhecidos se aprestavam a
destituir uma presidente contra a qual não existia nenhum cargo
dessa natureza, em um processo judicial motivado pela corrupção. A
grande imprensa brasileira não se caracteriza pela independência
nem pela originalidade.
A
votação parlamentar em favor do impeachment superou todos os
prognósticos prévios, reunindo 367 votos. Os deputados que estavam
indecisos se inclinaram pelo “sim” devido à pressão exercida
por grandes empresários e grupos de interesse poderosos, que
financiaram suas campanhas eleitorais. A classe capitalista trabalhou
abertamente em favor do impeachment, incluindo a passagem para o
campo do golpismo da burguesia industrial de São Paulo, que até
havia pouco era parte da base social e política do governo de
coalizão encabeçado pelo PT; trata-se de uma burguesia que está
sendo arrasada economicamente pela concorrência da China,
especialmente as grandes siderúrgicas.
A
classe empresarial apoiou o golpe para brecar os processos contra
inúmeros grandes empresários. Marcelo Odebrecht, na prisão, se
somou à “delação premiada” para reduzir sua pena e blindar sua
empresa das consequências patrimoniais derivadas da punição
econômica pelas propinas pagadas nos contratos da Petrobras. A
Andrade Gutierrez, do seu lado, se adiantou às consequências
judiciais e se prontificou a devolver um bilhão de reais aos cofres
públicos, em oito prestações (uma cifra que deixa entrever o
tamanho das negociatas propiciadas pelo histórico “modelo de
negócios” da maior empresa do país). A função de um governo
Temer será a de pôr um freio às investigações,
que evidenciam a base apodrecida do regime político e da própria
classe capitalista brasileira. No início do século XXI, no entanto,
foi essa mesma classe social a que precisou da presença do PT no
governo do país, um processo que vale a pena reconstituir a partir
de suas origens.
A
“Transição Democrática”
A
crise econômica mundial da década de 1970, que levou à crise do
“milagre brasileiro” na segunda metade dessa década, colocou
duas opções básicas, de um ponto de vista capitalista: resgatar
uma parte do ativo fixo em mãos do Estado ou da burguesia nacional
para pagar os credores externos, ou impor uma disciplina ao grande
capital externo e o intervencionismo estatal. A política de Delfim
Netto, em 1979, expressou um curso intermediário, ao tratar de
resolver o impasse com métodos antigos: subsídios às exportações,
desvalorizações, controle limitado dos preços, redução do
orçamento das empresas estatais. O resultado disso, especialmente
nas condições de recessão de 1980/82, foi o agravamento da crise
social (com grande aumento do custo de vida) e a ruína progressiva
do sistema financeiro (mercado negro, fuga de capitais, inflação
crescentemente fora de controle). Enquanto o crescimento anual médio
do PIB atingira 7,1% no período 1947/1980, essa taxa se reduziu a
1,6% nos anos 1980, a chamada “década perdida”.
Entre
fins dos anos 1970 e meados dos anos 1980, as oposições sindicais
realizaram uma dura crítica à estrutura do sindicalismo de Estado.
Esta fase de retomada das mobilizações da classe trabalhadora
brasileira na luta contra a ditadura militar ficou conhecida como
“novo sindicalismo”. Nas condições de crise e de renascente
luta das massas exploradas, a continuidade política da ditadura só
foi possível pela existência de um acordo com a oposição burguesa
(MDB) que limitava suas divergências à questão das datas do
calendário da abertura, evitando formular qualquer medida de ruptura
com a finança internacional (no máximo colocava, como fez Celso
Furtado, uma renegociação da dívida do Brasil com os governos dos
países credores). A irrupção das massas trabalhadoras, presente no
cenário político a partir das greves do ABCD em 1978-79, questionou
esse acordo até pô-lo em crise, crise cuja expressão foi a
campanha pelas "Diretas-Já" (1984). Nesse ano, o movimento
operário retomou o caminho iniciado no ABCD um quinquênio antes,
diante da fabulosa expropriação salarial expressa na inflação de
222%.
Lançada
pelo PT, a campanha pelas eleições diretas para presidente, que
levou milhões às ruas, poderia ter sido a projeção política
antiditatorial da luta contra a exploração, encabeçada pela classe
operária. Não foi isso, devido a que sua direção
burguesa/emedebista - aceita pelo PT - limitou sua projeção à
pressão sobre as instituições (com a emenda parlamentar Dante de
Oliveira) surgidas no ventre da ditadura militar. Para contornar a
crise, o regime teve que pagar o preço da divisão da ex ARENA
(transformada em PDS, do qual se cindiu o PFL, representando setores
oligárquicos nordestinos) e transferir o governo para a coalizão
civil resultante dessa divisão, a Aliança Democrática (PFL/PMDB),
estruturada com base no candidato de consenso (das Forças Armadas,
do imperialismo e da burguesia) Tancredo Neves. Isto evidenciou a
continuidade da tendência para uma saída bonapartista, mas agora
com centro civil.
A
morte de Tancredo pareceu coroar a operação, realizando de maneira
oblíqua os planos de Geisel-Golbery (transferência do governo a um
civil da ARENA), cooptando a oposição burguesa no quadro de um
regime tutelado, ao levar à presidência o ex-presidente da ARENA,
José Sarney. Mas dez anos de crise e lutas populares não tinham
passado em vão, e o personalismo de Sarney foi uma espécie de
bonapartismo às avessas. Foi para enfrentar a ascensão das massas
(em 1985 as greves bateram recordes históricos, feito repetido nos
primeiros meses de 1986), assim como para condicionar as eleições
de governadores (1986) e o processo da Constituinte (1987), que
Sarney lançou uma iniciativa pela via do decreto, o Plano Cruzado de
“combate à inflação”. Sua finalidade foi sustar o lançamento
de uma nova campanha pelas diretas-já. A iniciativa - com os
"fiscais de Sarney" e o hipotético "partido do
presidente" - visou adiar um enfrentamento político/social,
intervindo audaciosamente na crise partidária. Os trabalhadores
deveriam aceitar salários reduzidos, para evitar o aumento da massa
salarial, fixando também um limite para a expropriação salarial,
resultante de congelar os preços no pico e os salários na média.
Essa
tentativa de estruturar um poder-árbitro entre as classes teve
fôlego curto, devido à própria magnitude da crise econômica, mas
serviu, junto com o PNRA (Reforma Agrária), para modelar em grande
medida o processo eleitoral posterior, apoiando-se nos
condicionamentos antidemocráticos do regime militar. Assim, o PMDB
foi o grande vitorioso eleitoral em novembro de 1986 (vencendo as
eleições em 22 dos 23 estados) e na Constituinte, iniciada em 1987,
que concluiu em 1988 sagrando a grande propriedade fundiária, a
tutela militar do regime político, o conjunto da estrutura
capitalista, pondo só restrições formais à penetração do
capital estrangeiro em setores estratégicos. As "conquistas
trabalhistas" incorporadas ao texto (40 horas semanais, licença
maternidade/paternidade, direito de greve para o funcionalismo
público) apenas visaram contemporizar com direitos já existentes de
fato, aguardando uma regulamentação para anulá-los na prática.
Uma oposição revolucionária deveria ter denunciado o conjunto da
manobra, preparando sua derrota, mas o PT, além de "apoiar
criticamente" o Plano Cruzado, integrou-se na manobra,
limitando-se a não assinar a nova Constituição.
A
Constituinte, sancionada em 1988, não fechou a crise política
crônica do Brasil, nem criou um novo regime político: o país
continuou sendo governado através de decretos-lei por um poder
sustentado principalmente nas Forças Armadas. No entanto, no segundo
semestre de 1988 fracassou totalmente a tentativa de Sarney de
subordinar o processo constituinte ao seu próprio poder. O fracasso
do Plano Cruzado refletiu a incapacidade do governo em estruturar uma
arbitragem entre as classes. A tendência democratizante, imposta
pelo aprofundamento da luta de classes, se esgotaria só quando este
aprofundamento alcançasse um ponto incompatível com a estabilidade
do Estado. Na Constituinte, os cinco anos de mandato para Sarney
foram arrancados por uma pressão organizada pelos empresários
ligados à ditadura militar e pelos próprios militares. Em nenhum
caso, a mudança do regime militar para um regime civil significou a
implantação de uma democracia política, mas apenas de uma fachada
constitucional para instituições com origem na ditadura militar. Os
compromissos internacionais, eixo do processo de exploração
internacional da América Latina, foram respeitados pela “democracia
brasileira”, em especial a dívida externa.
No
Brasil, como em toda a América Latina, a transição política para
regimes civis foi motivada pelo esgotamento econômico e político
dos regimes militares, no quadro da crise econômica mundial (a
“crise das dívidas”, em 1982, evidenciou a incapacidade desses
regimes em continuar pagando a dívida externa, expressão da
decomposição econômica em escala mundial), de crises
internacionais cada vez maiores (guerras civis e internacionais na
América Central, guerra Equador-Peru, e guerra das Malvinas em 1982)
e de mobilizações populares sem precedentes, guerrilha com apoio de
massas em toda a América Central e na Colômbia, mobilizações
antiditatoriais nos países do Cone Sul, greves de massa e
mobilização pelas “Diretas Já” no Brasil. Um panorama
semelhante acontecia na política mundial, expressado na revolução
iraniana de 1979, e nas crises no Oriente Médio, o que levou os EUA
a mudar o eixo de sua política externa.
Explicitando
o sentido da mudança, afirmou um documento oficial dos EUA: “O
autoritarismo de extrema direita tem sido um importante fator que
contribuiu para uma nova e crescente ameaça à democracia: a ameaça
do totalitarismo comunista... O apoio à democracia, a própria
essência da sociedade americana, está se tornando o novo princípio
em torno do qual se organiza a política externa norte-americana. O
apoio à democracia promove os interesses dos Estados Unidos de
várias formas importantes. A democracia ajuda a garantir a segurança
dos Estados Unidos. Os governos democráticos, precisamente porque
devem ser sensíveis aos desejos dos seus povos, tendem a serem bons
vizinhos. A competição política aberta e regular diminui a
polarização e as extremas oscilações do pêndulo (como aconteceu
no Chile, em Cuba e na Nicarágua) e
torna as nações mais resistentes à subversão.
Os governos democráticos são
mais confiáveis como signatários de acordos e tratados porque
seus atos são sujeitos ao exame do público. A democracia também
favorece importantes interesses políticos e econômicos dos Estados
Unidos” (grifo nosso).
Os
regimes civis surgiram no ventre dos regimes militares: no Brasil,
garantiram a sua participação direta no poder através dos
ministérios militares, e sua continuidade política com a Lei de
Segurança Nacional e a Polícia Militar; no Chile, a oposição
(incluídos o PC e o PS) aceitou governar na base da Constituição
pinochetista de 1980, e garantir oito anos de mando de tropa para os
comandantes do ditador; no Peru, a Constituinte legislou sob a tutela
do governo militar de Morales Bermúdez; no Uruguai, o regime civil
se baseou no “Pacto do Clube Naval”, que garantiu a impunidade
militar, reforçada em plebiscito; na Argentina, as crises militares
foram aproveitadas pelos "democratas" radicais, peronistas
e liberais para institucionalizar o poder militar no Conselho de
Segurança Nacional, e para inocentar os genocidas através do "ponto
final" e da "obediência devida"; no Paraguai, o
governo civil sequer transcendeu os limites familiares, pois o
presidente Andrés Rodriguez era da família do ditador Stroessner.
A
política democratizante não foi sequer o contrário do
intervencionismo militar externo: foram os democratas bolivianos os
que admitiram a intervenção de tropas ianques no país, sob o
pretexto de combate ao tráfico de drogas; o mesmo pretexto foi usado
para o bloqueio naval da Colômbia; foi reforçado o cerco militar de
Cuba, e invadida a ilha de Granada; foi militarizada como nunca a
América Central, através da "contra" nicaraguense e do
envio de tropas norte-americanas para Honduras e El Salvador e, caso
extremo, mas exemplar, foi invadido o Panamá para impor um governo
“democrático". A política ianque consistiu em combinar a
manobra democratizante com o velho big
stick.
Em
meio a agudas disputas e crises políticas, os regimes
democratizantes latino-americanos surgiram sob a hegemonia preservada
do capital financeiro internacional, e da burguesia local a ele
associada, preservando a integridade (e até os interesses) das
camarilhas militares precedentes. O governo Sarney, produto de
eleições indiretas, caiu em meio a um fracasso econômico
contundente, com uma hiperinflação galopante (que atingiu 53.000%
anual, determinando várias mudanças de moeda), provocada pela
especulação financeira com os títulos públicos.
A
Crise da Transição
Na
virada para o novo século, o governo Lula se originou tanto na
ascensão eleitoral sistemática do PT nas duas décadas precedentes,
quanto numa combinação inédita de crise interna (crise do Plano
Real e do governo FHC) e externa (crise econômica mundial), que o
tornaram possível e até necessário para a burguesia brasileira e o
grande capital internacional. Em 1989, ano da queda do Muro de Berlim
e das grandes esperanças capitalistas, ao contrário, Mário Amato,
presidente da FIESP, apelou para o terrorismo econômico verbal,
ameaçando publicamente com uma fuga maciça de capitais do país
caso Lula vencesse o segundo turno das eleições presidenciais,
vencidas por Fernando Collor de Mello.
O
problema consistia em que a política burguesa brasileira se apoiava
numa base social explosiva e padecia, por esse e outros motivos, de
instabilidade crônica, como constataram dois analistas das
“transições democráticas”: “O Brasil tem, de longe, a
distribuição de renda mais desigual e os piores níveis
educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e
sul-americanos, fato que não ajudou na tarefa de consolidar a
democracia. Além disso, o Brasil tem historicamente o menos
estruturado sistema de partidos políticos... Nesse contexto, entre
1985 e 1993, sete diferentes pacotes de reformas foram lançados,
fracassaram e foram abandonados por uma sociedade política incapaz
de unir-se para forjar uma coalizão sustentável para a formulação
de novas políticas”.
O
governo Collor, surgido das eleições de 1989, assim como os outros
governos “democráticos” latino-americanos (cujo conteúdo
econômico não foi o de opor uma resistência limitada ao
imperialismo, mas o de aprofundar a entrega nacional, levando-a a
níveis inéditos, até quando comparada com as ditaduras militares)
aceitou o princípio do pagamento integral dos juros
como garantia para a renegociação da dívida impagável, e também
o princípio de "capitalização da dívida", liquidando o
aparelho produtivo nacional, entregando-o em troca de títulos
desvalorizados aceitos pelo seu valor nominal. Collor acabou com a
histórica reserva de mercado para setores estratégicos e elaborou o
primeiro plano econômico em que a privatização das empresas
estatais era o eixo da política do Estado. Collor cobrou o preço
por ter livrado à burguesia do “sapo barbudo” montando uma
roubalheira monumental baseada num esquema de saques, comissões e
desvios de verba, comandada pelo seu ajudante PC Farias, de US$ 8
bilhões; mas todos os vitupérios posteriores contra o
“presidente-ladrão” não mexeram uma palha do norte estratégico
de sua política econômica entreguista, que foi mantida pelos
governos sucessivos.
Collor
não foi destituído, em 1991, por causa desse programa, mas pelos
seus patológicos excessos cleptomaníacos, que foram o eixo de uma
mobilização popular – cuja iniciativa coube à esquerda petista –
manipulada pela burguesia, pela mídia crescida na ditadura (Rede
Globo e Folha
de S. Paulo),
com os estudantes “carapintadas” na rua. O esquema político de
Collor excedia em muito sua base social e política real, e a própria
burguesia preferiu livrar-se do embaraçoso corrupto e de sua “corte
dos milagres” – depois deste ter cumprido sua tarefa de impedir a
vitória eleitoral de Lula, e de ter atacado a hiperinflação
mediante a maior expropriação realizada no Brasil do salário e das
poupanças das classes pobres (“Plano Collor”).
Essas
foram as bases econômicas e políticas de seus sucessores (Itamar
Franco, seu vice-presidente, e, finalmente, FHC). Estes enfrentaram
movimentos de luta desgastados pela castração política da luta
contra a ditadura militar e contra Collor. Itamar Franco não foi um
simples governo “de travessia”, pois continuou a repressão
contra a classe operária e o MST, assim como o programa de
privatizações, mas fez isso cooptando até lideranças petistas,
como a ex prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, que geriu a área
“social” do governo, enquanto, na Fazenda, FHC lançava o plano
econômico que estabilizou e unificou temporariamente a burguesia e o
capital financeiro internacional.
O
governo Itamar Franco deu continuidade às políticas precedentes,
principalmente no que diz respeito à ampliação de espaços na
educação para o setor privado. Instituiu a Lei 8.958, que abriu o
espaço das universidades públicas para as fundações privadas. A
CPMF foi criada em 1993, como Imposto sobre Movimentação Financeira
(IMF), por iniciativa do ministro da Saúde Adib Jatene; ele deveria
incidir sobre toda movimentação financeira durante apenas um ano,
com recursos completamente destinados à saúde. O ministro
empenhou-se para a aprovação da proposta no Congresso, primeiro
como imposto com vigência de um ano e depois como contribuição
provisória de duração indefinida, que acabou se transformando em
um confisco parcial dos salários para equilibrar as contas públicas.
A
viabilização do governo Itamar Franco foi favorecida pelo relativo
refluxo das lutas da classe trabalhadora, devido à frustração
política das lutas precedentes. No interior do establishment
brasileiro,
no entanto,
ganhou
vigência a necessidade de uma mudança política. As catástrofes em
que tinham concluído os dois primeiros governos civis haviam
demonstrado a incapacidade dos partidos burgueses para sustentar a
estabilidade do regime político (a candidatura Collor, recurso de
crise contra a ascensão do PT, por exemplo, fora lançada por um
inexistente “Partido da Juventude”).
O
programa federal de privatizações, saneamento monetário e
tributação regressiva, exigido pelo capital internacional e local,
era incompatível com governos como os de Sarney, Collor e Itamar
Franco, sustentados em partidos demasiadamente comprometidos com as
oligarquias regionais, com seus interesses disparatados e sistemas
próprios de falcatruas. Do PMDB surgiu assim o “moderno” PSDB
(com apoio de frações de outros partidos), no qual, ao lado de
políticos regionais tradicionais (como Franco Montoro ou Mário
Covas, de São Paulo, ou Tasso Jereissatti, do Ceará) a hegemonia
política ficou nas mãos de representantes da intelectualidade
paulista “de esquerda moderna” (Fernando Henrique Cardoso, José
Serra, e sua geração de discípulos-agregados do Cebrap).
A
explosão da inflação no governo Itamar Franco (952% em 1992, 1928%
em 1993, 2050% em 1994, o que fez ruir as poupanças e a renda dos
setores de rendimentos varáveis) decretou a falência dos “choques
econômicos” precedentes, baseados no congelamento de preços e
salários, ou seja, retratou a incapacidade do regime político em
estabelecer a mais elementar arbitragem entre as classes. Os planos
anteriores ao Real foram marcados pelos congelamentos de preços e
salários (Cruzado, 1986; Bresser, 1987; Verão, 1989; Collor I e
Collor II); seu insucesso foi creditado à “falta de
credibilidade”, ou seja, à perda de capacidade reguladora e
arbitral do Estado. A virada dos anos 1980-1990 foi marcada pela
crise desses “modelos de estabilização”, pela eclosão da
hiperinflação e, ao mesmo tempo, pelo surgimento de outro “modelo”,
baseado na introdução de âncora cambial. México (1989), Chile
(1990), Argentina (1991) e Brasil (1994), além de outros países
latino-americanos, asiáticos e do Leste europeu, introduziram uma
nova modalidade de estabilização com estrutura básica semelhante.
A
base para a implantação desse modelo foi o excedente de
capital-dinheiro na economia mundial, resultante de várias fontes: a
queda da taxa de juros dos Estados Unidos; o grande volume de
recursos provenientes do crime, com a expansão da produção e da
comercialização de drogas que, juntamente ao tráfico de armas,
passou a representar em torno de um trilhão de dólares por ano; a
renegociação da dívida externa latino-americana através do Plano
Brady, que revitalizou um grande volume de recursos sob a forma de
títulos públicos, passando a servir de base para novos créditos; e
os recursos que advinham do deslocamento de capital imobilizado para
a esfera financeira, atuando no mercado de títulos públicos e no
mercado de câmbio, somado aos grandes lucros financeiros que não
conseguiam ser reinvestidos produtivamente, além da expansão dos
fundos de pensão: os novos planos eram, na sua base, um novo método
de resgate do capital excedente num mercado mundial em crise.
Isso
foi a base econômica do Plano Real, lançado por FHC como ministro
de Fazenda de Itamar Franco, capturando inclusive a esquerda, que
aceitou o plano com críticas secundárias. FHC sabia que o Plano
Real não bastaria para se eleger, era necessária uma aliança com
aqueles que detinham a técnica da fraude eleitoral, movida pelas
oligarquias regionais: o “moderno” PSDB articulou, desse modo,
uma aliança com toda a direita arcaica brasileira, que foi a base de
seu governo. A “novidade” econômica do plano de estabilização
monetária (a “âncora cambial” – que supunha um constante e
consistente fluxo de investimentos externos para se sustentar)
escorava, na verdade, em condições políticas que, por sua vez,
supunham uma entrega nacional sem precedentes.
O
Governo FHC
O
governo FHC deveu sua relativa estabilidade ao longo de oito anos
(1995-2002) ao fato de postular-se como expressão de uma “grande
coalizão” burguesa. O Plano Real foi diverso dos planos de
estabilização monetária precedentes, porque introduzia as
políticas de ajuste do BIRD e do FMI, tendo como eixo as
privatizações. Os organismos internacionais exigiram várias
reformas: do Estado, da previdência social, universitária, quebra
do monopólio estatal em setores estratégicos (petróleo)
e flexibilização dos direitos trabalhistas. A questão monetária,
ponto culminante do plano, privilegiou essa finalidade, não tocando
em questões como a distribuição de renda e a estrutura da
propriedade rural (reforma agrária), investimentos e geração de
empregos. No primeiro governo FHC foram aprovadas as chamadas
“reformas constitucionais da ordem econômica”, com a quebra dos
monopólios estatais, a igualdade de tratamento entre empresas
nacionais e estrangeiras, e a desregulamentação de atividades até
então consideradas estratégicas.
Os
benefícios concedidos pelo governo às empresas compradoras das
estatais chegaram a US$ 45 bilhões, valor maior do que o patrimônio
vendido e mais que o dobro do “ganho” obtido com as
desestatizações (o lucro alegado foi de US$ 17,9 bilhões). Parte
das estatais foi comprada com financiamento do BNDES com recursos do
Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Houve também a abertura
comercial do país com a drástica redução das tarifas
alfandegárias, ampliando a oferta de produtos importados. A
contrapartida de ampliação das exportações não se consolidou; o
resultado foi a passagem de uma situação de superávit comercial
(US$ 29,5 bilhões em 1989) para uma de déficit (US$ 45,8 bilhões
em 1999), combatendo a inflação com produtos importados a preços
menores do que os nacionais ("a indústria nacional precisa se
modernizar para competir", foi o discurso oficial). Cadeias
produtivas inteiras foram desarticuladas, a dependência externa
aumentou, com a desvalorização dos patrimônios nacionais vendidos
a empresas multinacionais a preços baixos, para garantir a entrada
de dólares e cumprir as obrigações com o capital financeiro
(dívida externa).
As
privatizações renderam, ao todo, US$ 63,6 bilhões. Mesmo assim, a
dívida externa pulou de US$ 123,9 bilhões em 1991 para US$ 236
bilhões em março de 2002. Durante o primeiro mandato de FHC
(1995-1998), o país desembolsou cerca de US$ 126 bilhões a título
de juros e amortização da dívida externa. As despesas líquidas de
juros subiram de US$ 8,2 bilhões em 1995 para US$ 15,2 bilhões em
1999. As consequências sociais, com a recessão econômica e os
cortes orçamentários, foram o desemprego aberto e o “trabalho
precário” generalizado. Sob a denominação de “trabalho
informal” escondeu-se o crescimento da exploração sem limites
(sem nenhuma contribuição previdenciária e sem taxas patronais de
qualquer natureza), com jornadas de trabalho de até 70 e 80 horas
semanais, modalidade responsável por 60% dos empregos criados no
Brasil no período FHC.
O
Plano Real dependia por inteiro da prosperidade econômica mundial,
da propensão do capital financeiro para investir no Brasil, para o
qual se ofereceu uma remuneração extraordinária através da
elevação dos juros, reforçando a tendência parasitária
(“rentista”) do capital financeiro. Os “planos de
estabilização” na América Latina se inseriram no contexto de
crise e da batalha econômica mundial. Um novo papel dos organismos
econômicos e financeiros internacionais foi imposto pelos países
imperialistas. Os planos de estabilização apontaram para a
recuperação do dólar como moeda de troca (comercial e financeira)
mundial, ou seja, para a recuperação do capital financeiro e do
imperialismo norte-americano.
O
endividamento externo foi o principal instrumento desse processo. A
“renegociação das dívidas” foi o solo no qual floresceu a
“estabilização dolarizada” e o processo de crescente
expropriação do excedente econômico nacional dos países
latino-americanos pelo capital rentista internacional. No meio da
"globalização", a América Latina foi submetida a uma
nova colonização econômica por meio da drenagem do esforço
nacional (dívida externa e remessas de lucros), da entrega do
patrimônio acumulado (privatizações) e da submissão monetária ao
Banco Central dos EUA (planos de conversibilidade e, em alguns casos,
dolarização da economia). Isso não poupou o continente da crise
mundial do capitalismo, crise que se traduziu nas crises da Ásia, da
Rússia e do Brasil (1997-99), na quase falência bancária dos EUA
em 1998, no impasse da UE, na desagregação dos blocos comerciais,
como o Mercosul
e os blocos asiáticos; no fracasso do Japão em sair de uma
depressão econômica profunda e duradoura. A essa crise vinculou-se
o acirramento da luta de classes e da instabilidade política no
mundo todo.
Entre
1990 e 1997, a América Latina foi o mercado mais dinâmico para os
Estados Unidos, recebendo 20% das exportações estadunidenses,
enquanto o Japão e a Ásia Oriental recebiam conjuntamente 25%. Isto
permitiu aos EUA enxugar uma parte de seu déficit comercial com
Japão e Europa. Como resultado da abertura propiciada pelo Plano
Real, desde 1994 as importações brasileiras cresceram 86%, enquanto
as exportações se ampliaram de 58,9%, um ganho de 31,6% para as
importações.
Em
1995, com um ano de governo FHC, o serviço da dívida externa
representava (parcela da dívida mais juros) 38,9% das exportações
brasileiras. Em 2002, último ano desse governo, o mesmo serviço
representava 92,7% das exportações. Em 1995, a dívida externa
representava 27,9% do PIB; em 2002, elevou-se para 44,2% do PIB. A
dependência do país da entrada de capital especializado em
operações de curto prazo aumentou drasticamente. Com a economia
estagnada, a desvalorização do real buscou elevar as exportações
para cobrir o serviço da dívida. No entanto, ela continuou a
crescer.
No
setor-chave da indústria brasileira (o setor automotivo), os números
são os que seguem: em 1980, 133.683 empregados produziam 1.165.174
veículos anuais; em 1993, 106.000 empregados produziam 1.390.871
veículos (passou-se de 8,7 veículos por empregado para 13,1). O
Plano Real causou um impacto positivo nos balanços das empresas. Um
levantamento de amostras de 72 empresas realizado pela revista Exame
constatou que as mesmas haviam lucrado US$ 5,5 bilhões em 1994,
comparados a somente US$ 867 milhões no ano anterior; a taxa de
retorno sobre o ativo aumentou de 3,1% em 1993 para 9,8% em 1994.
Os
ganhos em produtividade não foram devidos, essencialmente, a
investimentos tecnológicos do setor privado (que ficaram,
proporcionalmente, aquém daqueles da década de 1970), e muito menos
ao investimento do setor público, em que pesem as privatizações e
o sucateamento do setor. Ao arrocho salarial e às demissões,
deve-se acrescentar a flexibilização trabalhista, como causas
principais. O Brasil perdeu 2,060 milhões de empregos formais nos
anos 1990, conforme dados do Ministério do Trabalho.
Com
a entrada de dinheiro para a saúde por meio da CPMF (Contribuição
“Provisória” sobre a Movimentação Financeira), o governo
desviou os recursos de outras fontes destinados ao setor. Assim, o
dinheiro “a mais” que entrava devido à CPMF era, em parte,
“descontado” do repasse do governo, de forma que, no final, tudo
ficava mais ou menos na mesma para a saúde e o governo saía com um
extra de recursos que era utilizado para pagar a dívida. Assim,
desde 1996 os recursos que o governo destinava antes à saúde foram
reduzidos substancialmente. Entre 1996 e 2000, o repasse do Cofins
para a saúde caiu de 42,4% para 34,7% e o repasse da CSLL caiu de
20,8% para 13,9%. Em 2002, a CPMF arrecadou nada menos que R$ 21
bilhões.
A
CPMF era um imposto não progressivo: tributando todas as
movimentações financeiras igualmente, o imposto não cobrava a mais
dos mais ricos. O governo FHC, além disso, criou um mecanismo mais
geral de desvio de recursos dos gastos sociais: a DRU, Desvinculação
de Recursos da União, para tirar dinheiro que estava “amarrado”
– normalmente com gastos sociais – para ser utilizado para outros
fins – normalmente aumentar o superávit fiscal para pagar os
serviços da dívida pública. A DRU foi criada em 1995 com o nome de
Fundo Social de Emergência, e depois reeditada sob o nome de Fundo
de Estabilização Fiscal e, finalmente, reeditado com seu nome
atual. A DRU permite desvincular 20% de todo o orçamento da União
para o governo gastar como quiser. A maior concentração de recursos
vinculados está no sistema de Seguridade Social, que abrange a
Saúde, a Assistência e a Previdência Social, desviando dinheiro
destinado a gastos sociais para outros fins, principalmente o
pagamento da dívida.
Junto
ao saque financeiro (circulação) houve também um aumento da taxa
de exploração (produção). Nas últimas três décadas do século
XX houve um aumento da produção em 20% na indústria brasileira,
acompanhada por uma redução de 75% nos postos de trabalho. A grande
indústria, responsável pela maior parte da produção, gera menor
quantidade de empregos. Contrariamente, centenas de milhares de
pequenas firmas, responsáveis pela “informalidade”, compreendem
a maior parte da força de trabalho assalariada. Apenas 400 empresas
no Brasil geravam mais de 60% do PIB, um índice de concentração
superior ao dos países “desenvolvidos”. O Brasil combinava os
males da monopolização do capital, junto com os do seu próprio
atraso econômico.
A
colaboração de classes, junto à repressão social, foi a principal
arma política usada para impor os objetivos de superexploração do
trabalho. A CUT participou de 14 das 26 Câmaras Setoriais
impulsionadas pelo governo, das quais apenas três fecharam acordos,
com benefícios mínimos e efêmeros para os trabalhadores; ao mesmo
tempo em que se condenou ao isolamento e à derrota a greve dos
petroleiros, se isolou as lutas dos funcionários públicos federais
e estaduais no final da década de 1990, e se bloqueou
estrategicamente a aliança entre os operários industriais e os
camponeses sem-terra, estes sendo o mais importante movimento de luta
na década de 1990 e na virada para o século XXI. Isto foi a base da
estabilidade política conquistada por FHC, que conseguiu se reeleger
em 1998, sem necessidade de segundo turno, depois de aprovada,
mediante uma compra escancarada de votos parlamentares, a emenda
constitucional que instituiu a possibilidade de uma reeleição
presidencial.
Paralelamente,
o significativo aumento da representação parlamentar do PT (46
deputados e seis senadores), além da conquista de prefeituras e
governos estaduais (como RS), apresentado como "troféu de
consolação" da segunda derrota eleitoral de Lula em 1994, foi,
na verdade, a constituição de uma reserva política estratégica.
As classes dominantes eram conscientes da fragilidade do "consenso
social" estabelecido em torno de FHC: afinal, ele só fora
votado por 35% do padrão eleitoral em 1998 (aí incluído o enorme
número de votos "de cabresto") e seus índices de
popularidade despencaram pela metade só no primeiro mês do seu
segundo governo. A integração da “oposição” era um objetivo
vital para a estabilidade política. O crescente peso interno ao
partido dos parlamentares petistas (e também dos dois governadores
eleitos pelo PT, que receberam no segundo turno o apoio do próprio
FHC) inclinou a balança interna do PT no sentido dessa integração.
Criaram-se assim as condições para o PT virar um “partido de
governo”.
PT:
da Oposição ao “Partido de Governo”
O
PT não nascera de uma evolução natural ou linear do operariado,
mas de um conjunto de contradições e processos políticos
abrangendo diversas classes sociais. Na etapa aberta em 1978-1979,
com as extraordinárias greves paulistas, o proletariado não estava
disposto a reeditar as velhas experiências de conciliação de
classe de tipo varguista, nem a burguesia nativa a tentar um período
amplo de concessões trabalhistas, pois sua dependência externa
tinha se acentuado a partir de 1964, e o proletariado era
extremamente mais forte e concentrado do que no passado. A essas
tendências históricas combinou-se a crise do regime militar, em
especial a crise do sistema de atrelamento dos sindicatos, que deu
lugar, na própria estrutura sindical atrelada, ao "novo
sindicalismo", fornecendo a base política para o lançamento da
proposta do PT.
O
PT não surgiu, como é comum ler, “do interior dos sindicatos”,
mas de um processo de recomposição política não somente na classe
operária, mas também da ala esquerda da pequena burguesia (com
reviravoltas e mudanças nas posições políticas de todos os
setores de esquerda entre 1977 e 1981). Lula não era contrário a
formar um partido com a esquerda emedebista, mas não estava disposto
a abrir mão da hegemonia no processo de formação do partido, já
que era a única liderança política de fato da classe operária.
A maior parte da intelectualidade de esquerda, o PCB e o PC do B,
ficaram no MDB; por outro lado, uma série de grupos menores, muitos
vinculados à Igreja, entrou ao PT, que ficou com os sindicalistas
“lulistas” na liderança.
Se,
de um lado, a proposta do PT teve vigência desde sua origem graças
à ascensão do movimento operário, de outro, a proposta dos
sindicalistas autênticos se realizou graças ao fracasso das
negociações com a esquerda emedebista. A direção sindical, não
tendo nos partidos da oposição nenhum tipo de representação
política, e frente à reformulação partidária, lançou o PT para
buscar um lugar no novo arranjo dos partidos, e evitou lançar mão
da autoridade dos sindicatos de massa que dirigia para a construção
do partido. Isso explica o enorme peso que tiveram no movimento
setores minoritários de esquerda e alguns “autênticos” cindidos
do MDB. Em lugar de ter como base as organizações operárias, o PT
foi uma proposta de aliança de um setor da burocracia sindical com
grupos de esquerda de base pequeno-burguesa, baseada na formação de
“núcleos”.
Por
isso, em lugar de tomar a forma de um partido operário de massas
tomou a forma de um agrupamento centrista: houve até a aberração
de que boa parte dos grupos de esquerda que se puseram a formar
"núcleos" do PT continuou a atuar dentro do MDB. A
legalização do PT, no quadro do regime militar, comportou uma
derrota política imediata da burguesia, assim como a evidência de
que o proletariado continuava submetido politicamente a variantes
bastardas daquela. A legalização do PT, nos termos em que ocorreu,
refletiu o refluxo do movimento de massas, após as greves de final
da década de 1970,
assim como sua escassa diferenciação política. A legalização do
PT ratificou, no entanto, que, ao menos durante um período, esse
partido seria o quadro político principal para todas as correntes de
esquerda.
A
falência das antigas direções políticas da classe operária,
nacionalistas e, em menor medida, stalinistas
(falência que era produto da experiência histórica com essas
direções, da qual o surgimento do PT, em 1980, foi a expressão
mais contundente) deu um papel decisivo à pequena-burguesia
democratizante "de esquerda", dominante na esquerda
latino-americana. Isto foi favorecido pela conduta da direção
sindical “autêntica”, encabeçada por Lula, que limitou o
processo grevista do ABC, adaptando-o à estratégia conciliadora da
oposição burguesa (MDB) com a “abertura” patrocinada pela
ditadura militar. Um “verdadeiro PT” (um partido operário de
massas), no entanto, só poderia surgir sobre a base do amplo
desenvolvimento do movimento das massas.
Com
o esvaziamento do movimento operário e popular, a proposta do PT –
que surgira como expressão do choque dos operários em luta contra o
atrelamento de suas organizações ao Estado, e contra as direções
pelegas atreladas à ditadura e à burguesia – foi capturada por
intelectuais da classe média e por um conglomerado de grupos de
esquerda que limitavam seu horizonte político a uma fraseologia
democratizante vulgar (como o “controle da economia pelo
parlamento”, a “solidariedade internacional”, e outras
assemelhadas). A juventude, inexperiência e escasso desenvolvimento
político do movimento operário, de algum modo, faziam desse o
resultado mais provável do “sonho petista”. Mas esse resultado
foi também condicionado pelo reformismo da esquerda, pois o PT “das
origens” foi, em suas ideias, a esquerda do país em sua realidade.
Essa
esquerda se orientava pelo programa da “democracia como valor
universal”, criticando o “golpismo” da esquerda precedente3,
foquista ou stalinista, e descartava como “golpista” o programa
revolucionário.
Sua fusão política com os “novos sindicalistas” aconteceu no
PT. Os partidos “dos trabalhadores”, ou trabalhistas, certamente,
não se constituem sobre a base de um programa, e sim sobre a base do
movimento real ou espontâneo dos trabalhadores. Por isso, neles
desempenham um papel importante os dirigentes sindicais. Esta
característica, em que as colocações políticas se acomodam às
necessidades práticas, acaba por inviabilizar esses partidos, ou os
transforma em politicamente burgueses, como foi o caso do trabalhismo
britânico ou da socialdemocracia alemã.
O
PT, graças à esquerda antirrevolucionária que o hegemonizou,
assumiu um programa democratizante, nem sequer consequentemente
democrático, propondo "a desvinculação das empresas estatais
dos monopólios", não a expropriação do imperialismo; "a
nacionalização do latifúndio improdutivo", não a reforma
agrária através da expropriação do capital agrário, culminando
na "democratização do Estado", que deveria ser “submetido
ao controle das organizações sociais e do povo", o que não
era uma formulação consequentemente democrática, já que não
propunha a destruição do aparato de Estado, da ditadura militar e
do conjunto do regime político baseado nela.
Quanto
ao “socialismo”, o conceito foi inicialmente recusado, e
posteriormente admitido (1981) como "o socialismo que será
definido pela luta diária do povo brasileiro", o que rechaçava
explicitamente uma definição do socialismo como regime político de
classe, baseado na expropriação do capital, na liquidação do seu
Estado e no governo operário e camponês; e diluía o socialismo em
considerações sobre a "participação das massas" e o
"controle social". Sobre essas bases políticas foi se
desenvolvendo o PT, interessando a setores cada vez mais amplos da
classe operária, estendendo-se nacionalmente, obtendo sua
legalização eleitoral (1981) e seu primeiro resultado eleitoral
expressivo (11% dos votos nas eleições para governador em São
Paulo, em 1982), que deu a base para a sua projeção futura, baseado
principalmente no voto da classe operária.
Paralelamente,
“ao organizar-se, o PT criou uma elite separada de suas bases, que
se reproduziu independentemente delas e das classes trabalhadoras que
foram o suporte do partido... No Brasil, apesar de inúmeros partidos
socialistas nacionais ou locais, nunca houve uma socialdemocracia
estabelecida antes do PT... O PT cumpriu todas as etapas da
socialdemocracia europeia, mas de maneira concentrada. A primeira
fase predominantemente de oposição extraparlamentar e socialista,
ditada pela pressão das bases operárias e por intelectuais de
extrema esquerda, serviu para forjar a identidade partidária... A
segunda fase, como partido de oposição predominantemente
parlamentar, coincidiu com o refluxo das lutas sindicais... Na
terceira fase o PT se tornou finalmente um partido de governo e
sobrepôs à sua identidade nacionalista e socialista uma tendência
tecnocrata eivada dos vícios da política tradicional brasileira.
(Ele) cumpriu suas etapas muito mais rápido do que seus congêneres
europeus. Isto também se deveu à nossa história.
“O
Brasil nunca foi um país liberal porque as tarefas históricas da
burguesia (reforma agrária, democracia, educação pública, etc.)
foram relegadas
e caíram no colo do PT, tornando-se exigências socialistas... O PT
acelerou o tempo histórico e condensou aquelas fases ‘europeias’
em 22 anos. Foi o suficiente para chegar ao poder e manter-se nele”.
Ao custo, como veremos, do sacrifício de todas as “tarefas
históricas da burguesia” e até de tarefas bem menos do que
históricas.
A
partir de 1989, a candidatura de Lula e as candidaturas do PT já não
mais se apresentaram como candidaturas independentes da burguesia,
nem sequer formalmente (em 1982, o slogan da campanha de Lula para a
eleição do governo de São Paulo, como candidato nº 3, fora: “Vote
no três, o resto é burguês”). Em 1989, foi definida a “Frente
Brasil Popular”, que concretizou uma aliança com figuras políticas
secundárias da burguesia (por exemplo, o candidato à
vice-presidência, o desembargador gaúcho João Paulo Bisol), com
políticos marginais, aliança feita, porém, sob o pretexto de
tornar o PT “aceitável” para as classes médias. Foi no quadro
de uma crise política galopante da burguesia (degringolada do
governo Sarney, afundamento das candidaturas e partidos oriundos da
oposição burguesa à ditadura militar) que o PT conheceu um
espetacular desenvolvimento eleitoral, até obter 32 milhões de
votos no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, se
credenciando como alternativa política.
A
base desse desenvolvimento foi dada também pela histórica virada
classista do proletariado, que teve na CUT (criada em 1983) sua
primeira central operária nacional. O processo foi entrando em
contradição com a política da direção petista, e até com a
participação do PT em importantes instâncias do Estado: em 1989, o
PT já dirigia três das prefeituras mais importantes do país, que
foram postas abertamente na contramão do movimento grevista. Para
resolver essa contradição de modo decisivo e “pelo alto”, o PT
lançou a candidatura presidencial de Lula, em 1989, não como
candidato independente dos trabalhadores, mas de uma frente de
colaboração de classes (a Frente Brasil Popular, adotada no VI
Encontro Nacional do PT) onde sobreviveu o stalinismo brasileiro (PC
do B), deu-se um lugar de destaque a políticos burgueses
desconhecidos (como João Paulo Bisol), numa frente política que a
direção petista pretendeu estender até os representantes da
burguesia paulista (o PSDB de Covas) e os remanescentes do varguismo
(o PDT de Leonel Brizola).
A
derrota no segundo turno de 1989 deveu-se à exploração política
que Collor fez das contradições da Frente Popular; de pouco serviu
que a FBP declarasse a intangibilidade da propriedade privada e dos
grandes bancos, assim como da dívida pública, nessa altura já
atingindo os 300 bilhões de dólares. As direções sindicais
bloquearam todas as lutas no período pré-eleitoral. Uma vitória de
Lula, ainda assim, teria significado uma derrota da burguesia. As
massas populares viam em Lula um representante de seu próprio
movimento de classe (embora fosse um representante da burocracia
sindical e da pequena burguesia que invocava a representação dos
explorados, atuando em coalizão com partidos burgueses).
A
precária saída política achada pela burguesia brasileira ao
derrotar Lula por uma margem pouco relevante (as 14 milhões de
abstenções e votos brancos ou nulos no segundo turno superaram em
quase quatro vezes a diferença de quatro milhões de votos em favor
de Collor) não ocultou a derrota política sofrida pela classe
operária, pois todas as tendências eleitorais prévias apontavam a
possibilidade da vitória de Lula.
Um
PT “Depurado”
Entre
1989 e 2002, o PT percorreu o caminho que o levou da aliança com a
“sombra da burguesia” até a aliança com a própria burguesia,
definida pela chapa presidencial e pelas alianças da campanha
presidencial de 2002 e, sobretudo, pela composição do governo
resultante da vitória eleitoral de Lula. Para virar “partido de
governo” o PT necessitou também consolidar uma direção política
claramente hegemônica e acertada numa perspectiva de convergência
com as classes dominantes e a ordem do capital, o que foi atingido
através de um processo político eivado crises e exclusões das
tendências de esquerda do partido (Causa Operária e Convergência
Socialista, dentre outras).
A
estruturação de um campo político hegemônico no PT teve por
“protagonistas principais duas organizações cujas trajetórias
convergiram, na década de 1990, para a formação do bloco político
conhecido como campo
majoritário do PT,
a Articulação e o coletivo que, organizado inicialmente como
Partido Revolucionário Comunista (PRC) passou a denominar-se Nova
Esquerda
em 1989 e, após 1992, Democracia
Radical
(DR). A história dessas organizações é marcada por profundas
reviravoltas teóricas e programáticas, e por uma mudança radical
em todas as dimensões no conteúdo de seu projeto político:
conceitos, perspectivas de análise, propostas de atuação, formas
de organização, práticas, sujeitos sociais a quem se dirige”.
Esse
processo político “interno” foi simbolizado na figura dos dois
principais dirigentes das correntes mencionadas acima, José Dirceu e
José Genoíno, que foram bem mais do que articuladores políticos de
bastidores e lideranças públicas do PT. Lula parecia ser a “figura
pública” de um aparelho controlado, na verdade, por líderes
políticos experimentados (com um passado na luta clandestina,
inclusive armada, contra a ditadura militar, o que lhes conferia uma
“legitimidade política” popular diversa daquela dos líderes dos
partidos burgueses).
Esteve
bem longe de ser um processo linear ou tranquilo: no I Congresso do
PT, as tendências (teses) reconhecidas foram nada menos que
dezesseis. No VII Encontro Nacional do partido (1993), a Articulação
só obteve 29% dos votos; a hegemonia ficou com as correntes de
esquerda (“Na Luta PT” e “Articulação Hora da Verdade”,
depois Articulação de Esquerda, AE) que, somadas, tiveram 56% dos
mandatos. A Articulação recuperou penosamente a hegemonia
partidária aliando-se com as tendências de direita (aberta e
declaradamente pró-burguesas) e com cisões das tendências de
esquerda, inclusive da AE (Rui Falcão, ora presidente do partido).
O
relativo sucesso eleitoral do partido (se medido pela quantidade de
votos) permitiu ao PT ser o motor da “neoesquerda democratizante”
em todo o continente: o Foro de São Paulo, criado em 1990 (através
de um acordo do PT com o PC cubano), iniciou a preparação política
da esquerda continental como alternativa de governo, projetando
internacionalmente a política frente-populista brasileira. O PT
tomou a iniciativa e aglutinou quase toda a esquerda latino-americana
na reunião, convidando não apenas partidos socialistas ou de
esquerda, como também partidos burgueses (o Partido Revolucionário
Democrático do México, de Cuauhtémoc Cárdenas, e o Partido
Democrático Trabalhista de Leonel Brizola, por exemplo). Nessa
reunião foi debatida a situação internacional, discussão
aprofundada numa segunda reunião no México, depois na Nicarágua,
em 1993, e finalmente em Cuba em 1994.
A
conclusão política principal do Foro foi a seguinte: a queda do
Muro de Berlim e o "fracasso" do socialismo na URSS
significavam o fracasso das tentativas operárias, no curso da
história, para resolver seus problemas, e também os problemas da
humanidade, por meio da revolução proletária. O fracasso da URSS
seria o fracasso dessa revolução, o fracasso da tentativa de
derrocar a burguesia, assim como da perspectiva estratégica da
ditadura do proletariado. A segunda conclusão foi que a democracia,
que os marxistas sempre consideraram como uma categoria histórica,
sendo a República Democrática a forma clássica e aperfeiçoada da
dominação capitalista, era “um valor universal” que estaria no
foro íntimo do ser humano, sendo necessário manter-se no campo
democrático e numa perspectiva em que a luta dos trabalhadores se
limitasse a ampliar os direitos democráticos: por esse meio, os
trabalhadores poderiam chegar ao governo e transformar pacificamente
a sociedade, por meio de uma política de “justiça social”.
Finalmente,
o Foro afirmou que América Latina estava sofrendo um processo de
exclusão internacional, com seu comércio internacional diminuindo e
a pobreza crescendo: daí a necessidade da integração na “nova
ordem econômica internacional”. A negação da revolução
proletária, a reivindicação da democracia e a integração no
mercado mundial capitalista foram as conclusões estratégicas com as
quais a esquerda latino-americana, com o PT à sua cabeça, preparou
sua candidatura ao governo, na década de 1990. Todas essas
conclusões foram votadas no Foro de São Paulo, com apenas o voto
contrário, dentre as 150 organizações participantes do Partido
Obrero
da Argentina (o MAS “trotskista” do mesmo país retirou-se
silenciosamente do Foro depois de sua primeira reunião, onde fora
responsável por um dos quatro informes introdutórios).
Em
novembro de 1991, o PT realizou, finalmente, seu Primeiro Congresso
Nacional (entre sua fundação, em 1980, e essa data, quase doze anos
depois, aconteceram oito “Encontros Nacionais”, não destinados,
pela sua própria natureza, a discutir programa e estatutos). Só
esse fato (esse prazo) ilustrava a demagogia contida na famosa
“democracia de base” apregoada pela sua direção.
Depois da adoção da política frente-populista, o Congresso adotou
o seu correlato organizativo, a “regulamentação das tendências
internas”. Descaracterizado como partido de real base operária
organizada, o PT era já, a essa altura, uma federação de
tendências de esquerda funcionando na base do consenso. As
tendências de esquerda se viram, no entanto, fortalecidas pelo forte
movimento de recuperação classista (ou, simplesmente, de eliminação
da velha pelegada) acontecido em um número importante de sindicatos
durante a década de 1980, movimento que não fora hegemonizado,
sequer seriamente impulsionado, pela “Articulação”, a tendência
“lulista” do PT (e da CUT).
O
Congresso foi precedido por um “Manifesto” de Lula (lançado por
cima de qualquer instância partidária) de conteúdo programático:
o documento se posicionava pela “redistribuição da renda”,
contra o poder dos trabalhadores; o Estado só deveria conservar “os
setores estratégicos para o desenvolvimento nacional”: em resumo,
era contra a expropriação da burguesia e pelo capitalismo. E também
de conteúdo organizativo: “concluiu o ciclo do partido organizado
em tendências”, dizia o documento. Esse foi o resultado final do
famoso “programa elaborado pela base”. O programa, na verdade,
tinha sido ditado previamente, em agosto, pela Gazeta
Mercantil:
“As doze tendências ultrarradicais abrigadas no PT têm seus dias
contados”. Sem a “normalização” do PT, a política de Frente
Popular, com garantias dadas à burguesia, não o habilitaria como
alternativa de governo. A completa eliminação das tendências,
preconizada por Lula, foi, no entanto, impossível, devido à
precariedade do acordo político entre as tendências majoritárias e
à força das tendências de esquerda, reflexo da radicalização da
classe operária e da juventude.
A
“esquerda” petista (nesse momento, principalmente, a “Democracia
Socialista”, DS, e a “Convergência Socialista”, CS) defendeu o
“direito de tendência”, mas sobre bases puramente organizativas,
isto é, sobre a base de um princípio democrático abstrato, sem
caracterizar nem denunciar a política das tendências majoritárias
como a verdadeira base da “normalização” interna (isto
preparava a derrota da esquerda, ou sua capitulação: ambas acabaram
acontecendo). Nessas condições, a “normalização” do PT
avançou aos trancos e barrancos, por etapas, e com “experiências
piloto”, pois era impossível excluir toda a “esquerda” em
bloco, sem provocar uma crise e, provavelmente, um novo e importante
reagrupamento político, concorrente com o próprio PT. Primeiro
foram expulsos, com alegações diversas, alguns grupos e militantes
(sob o pretexto de sua defesa pública da “luta armada”), depois
a “Causa Operária”, ao mesmo tempo em que sofriam intervenção,
pela Direção Nacional, os Diretórios Municipais de Bauru e Volta
Redonda, pela sua oposição à FBP. A expulsão da CO passou sem
grandes histórias, devido à debilidade política do grupo expulso.
As
correntes trotskistas não foram excluídas porque representassem uma
ameaça à hegemonia das correntes majoritárias na direção do PT
(não o eram nem de perto), mas como uma prova da capacidade da
direção petista de disciplinar o partido dentro a uma política
situada no regime social vigente, embora também com um certeiro
instinto ideológico: foi mobilizado para a “depuração” do PT o
velho stalinista Apolônio de Carvalho, quem, nas páginas da revista
petista Teoria
e Debate,
despejou contra o trotskismo todas as velhas calúnias outrora
paridas nas usinas ideológicas do Kremlin e da KGB: o “novo
socialismo” do PT concluía, assim, na repetição – farsesca –
do stalinismo.
Origens
do Governo Lula
O
PT e Lula venceram, finalmente, as eleições presidenciais de 2002,
conquistando uma votação esmagadora de mais de 52 milhões de votos
no segundo turno do pleito eleitoral. Anteriormente, a candidatura
presidencial de Lula fora derrotada em três ocasiões: 1989, 1994 e
1998, sendo que nas duas primeiras ocasiões chegara a disputar o
segundo turno. O fator decisivo que catapultou o PT ao governo foi a
crise econômica e política internacional e suas repercussões no
Brasil. Em dezembro de 2001, o argentinazo
que derrubou o governo De la Rua mudou os dados da situação
sul-americana e internacional.
A
crise argentina era um ponto avançado da crise capitalista mundial.
O capital financeiro internacional, com excedentes (sobreacumulação
de capital) sem precedentes, precisando encontrar novos circuitos de
valorização, conseguira-o passeando pelo mundo (“globalização”),
com investimentos de carteira ou, em menor medida, produtivos (em
proporção de 85% para os primeiros contra 15% para os segundos). O
que mais pesava na decisão de investimento era o risco de cambio:
variações da taxa de câmbio levavam para colapsos dramáticos,
como aconteceu na Ásia em 1997, na Rússia e no Brasil em 1998-1999.
Em
1997, na Ásia, a crise atingiu as moedas da Coreia do Sul,
Filipinas, Indonésia e Malásia, que receberam US$ 60 bilhões do
FMI para sair do buraco. Em 1998, na Rússia, o mesmo FMI entrou com
um pacote de U$ 22 bilhões, para evitar a quebra do país, com a
desvalorização do rublo e o calote nos pagamentos externos. Nos
EUA, houve a quebra do Long
Term Capital Management,
um dos maiores fundos de investimento. No mesmo ano, o Brasil sofreu
um ataque especulativo, tendo recorrido também ao FMI, que emprestou
US$ 41 bilhões para “defender o câmbio fixo” (o empréstimo foi
na verdade usado para salvar os investidores externos expostos no
Brasil, financiando a fuga de capitais).
Formas
de dolarização direta ou indireta (como o currency
board
argentino) tentaram fazer frente à crise, garantindo ilusórias
margens de segurança aos capitalistas. A crise da dívida argentina,
que provocou o maior calote soberano da história do capitalismo, era
a outra face da crise do crédito do capital mundial. As repercussões
mais fortes da falência econômica e da crise política na Argentina
se fizeram sentir no Brasil, pelo fechamento de um dos seus
principais mercados de exportação (através do Mercosul), pelo
calote das operações comerciais e financeiras já realizadas, e
também pelas suas repercussões políticas. O Mercosul sofrera um
baque com a crise brasileira de 1998, mas a crise argentina de finais
de 2001 o precipitou na direção do abismo.
Comércio
no Mercosul
Importações
e exportações entre os quatro países-membros
(Em
milhões de dólares)
1995:28,416
1996:34,182
1997:41,171
1998:40,822
1999:30,583
2000:35,336
2001:30,537
2002:23,000*
*
estimativa
Fonte:
CEI (Centro de Economia Internacional)
Como
pano de fundo da estabilização monetária conquistada no Plano
Real, a concentração bancária e a penetração do capital
estrangeiro no setor financeiro haviam sido a consequência principal
da política econômica dos governos de FHC (1995-2002). Um calote
brasileiro teria consequências muito graves para o sistema
financeiro mundial, muito mais do que as provocadas pelo calote
argentino.
A
crise econômica brasileira agravou a situação social do país,
abrindo a perspectiva de enfrentamentos de classe sem precedentes.
Durante o período dito “neoliberal” (a década de 1990), o
desemprego urbano no Brasil sofreu uma expansão qualitativa,
agravada pela crise, mais do que duplicando, em termos percentuais,
na maior região metropolitana e industrial do país. O desemprego
paulista em 1999 atingia nada menos que 1.715.000 pessoas, alcançando
patamares vizinhos a 30% nas principais capitais do Nordeste.
Levando-se em conta o crescimento demográfico, as cifras absolutas
são maiores das indicadas pelos percentuais: o processo criou uma
nova piora da realidade social, em especial nas regiões urbanas. A
distância entre o número de pessoas aptas ao trabalho e o número
de trabalhadores que conseguiam emprego tendeu a crescer, criando um
exército
industrial de reserva
de novas dimensões.
Taxa
de desemprego total
Regiões
Metropolitanas – 1989-1999 (em %)
Regiões
Metropolitanas
|
1989
|
1990
|
1991
|
1992
|
1993
|
1994
|
1995
|
1996
|
1997
|
1998
|
1999
|
Belo
Horizonte
|
|
|
|
|
|
|
|
12,9
|
13,4
|
15,9
|
17,9
|
Distrito
Federal
|
|
|
|
15,5
|
15,1
|
14,5
|
15,7
|
16,8
|
18,1
|
19,4
|
21,6
|
Porto
Alegre
|
|
|
|
|
12,2
|
11,3
|
10,7
|
13,1
|
13,4
|
15,9
|
19,0
|
Recife
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
21,6
|
22,1
|
Salvador
|
|
|
|
|
|
|
|
|
21,6
|
24,9
|
27,7
|
São
Paulo
|
8,7
|
10,3
|
11,7
|
15,2
|
14,6
|
14,2
|
13,2
|
15,1
|
16,0
|
18,2
|
19,3
|
Fonte:
Adilson Marques Gennari. Globalização,
Neoliberalismo e Superpopulação Relativa no Brasil nos Anos 1990.
Araraquara, Departamento de Economia da UNESP, 2005.
Por
outro lado, a carga tributária crescia junto com a degradação da
situação social: o governo tucano, assim, desagradava a todas as
classes sociais, exploradas e exploradoras.
Com
o déficit comercial crescendo, a dívida pública indo às nuvens,
e enfrentando numerosas greves operárias e rebeliões agrárias, a
conta regressiva do governo FHC tinha começado. Nas condições
políticas internas e internacionais, a perspectiva de uma “transição
ordeira” em substituição do governo de centro-direita de FHC
viu-se questionada. Uma candidatura direitista aventureira, a de
Roseana Sarney, apostou na conquista do apoio do capital financeiro
internacional e do empresariado brasileiro, sem consegui-lo, pois
carecia de bases sociais claras e propunha uma política
exclusivamente repressiva que levaria o Brasil para uma explosão
política e social. O PSDB e a Globo enterraram a candidatura
Roseana, que havia estado momentaneamente à frente nas sondagens
eleitorais prévias. O PFL, que a lançara, ficou reduzido a sua
verdadeira dimensão: partido essencialmente nordestino e
oligárquico, escorchante da população local e parasita do
orçamento público.
A
crise do Plano Real e do governo FHC deveu-se, porém, menos ao
desenvolvimento da luta de classes no país do que à crise da
economia mundial. Após sofrer uma fuga de capitais de US$ 32 bilhões
em menos de cinco meses, o Brasil adotou o câmbio flutuante (com uma
forte desvalorização) em janeiro de 1999. A insatisfação popular
e o deslocamento à esquerda, principalmente da classe média, foi
canalizada nas eleições municipais de 2000 pelo PT, que aumentou em
vários milhões seus votos, tendo sido vitorioso em várias
capitais, inclusive São Paulo. No final do ano seguinte, a débâcle
econômica argentina, somada à própria crise de sua dívida, pôs o
Brasil à beira da catástrofe econômica e aprofundou a crise
política. Com a crise da Argentina houve redução do comércio em
todas as direções (as importações argentinas provenientes do
Brasil e do Uruguai caíram 70%), questionando o próprio Mercosul.
O
projeto da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas), por sua
vez, era um instrumento de pressão dos EUA sobre Europa e sobre as
“economias em transição”, especialmente a chinesa, lhes opondo
América Latina como uma plataforma de exportação dos capitais
norte-americanos, mas não dava ao empresariado latino-americano a
possibilidade de abrir o mercado norte-americano à sua produção
agrícola eliminando os subsídios estatais aos produtores do Norte.
A ALCA, porém, foi morrendo em meio à crise mundial de 1997-2002. A
integração de América Latina à economia mundial escorou-se no
aumento de preços das matérias primas e no crescimento do
endividamento (a penetração do capital financeiro na América
Latina foi, na década de 1990, a mais alta da história). A rodada
comercial de Doha, na qual se chegara a um acordo do Brasil com
Europa e os EUA, entrou em crise pela oposição da Índia e da
Argentina. Brasil acordara com os EUA exportar etanol sem impostos
desde América Central, em troca da autorização de inversões
norte-americanas na indústria dos biocombustíveis no Brasil.
Um
novo pacote brasileiro com o FMI, em 2002, adiou o default do país e
provocou uma curta euforia nas Bolsas de todo o mundo. O FMI procurou
dosar a fuga de capitais (que, sem o crédito outorgado, poderia
atingir dimensões semelhantes às da Argentina em dezembro de 2001).
O “risco Brasil” ultrapassou 2.400 pontos. O pacote estava
destinado a resgatar os bancos Citigroup e o FleetBoston,
expostos em mais de US$ 20 bilhões no Brasil (em troca da ajuda
econômica ao Brasil, ambos grupos financeiros se comprometeram a
financiar a campanha eleitoral do Partido Republicano nos EUA, que
concluiu com a vitória de George W. Bush).
Foi
o terceiro empréstimo contratado pelo governo brasileiro junto ao
Fundo. O primeiro, em outubro de 1998 (US$ 41 bilhões) fora
realizado para adiar a desvalorização do real, às vésperas da
reeleição de FHC. O Fundo conseguiu estabelecer um instrumento de
monitoramento do Estado brasileiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal,
que assegurava o pagamento da dívida externa em detrimento dos
investimentos em serviços públicos. Paralelamente, desde o início
de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso instruiu seu
embaixador em Washington, Rubens Barbosa, a auxiliar os petistas a
adentrar o meio político e econômico norte-americano. Em meados do
ano, José Dirceu desembarcou nos Estados Unidos para avançar nesses
contatos. Quando as eleições de outubro consagraram Lula como
futuro presidente do Brasil, o staff
do presidente Bush já tinha um conhecimento mais detalhado do líder
brasileiro.
Em
junho de 2002, antes das eleições de outubro, na Carta
ao Povo Brasileiro,
a direção do PT comprometeu-se com essa lei e com o superávit
primário, ou seja, com o pagamento da dívida externa e a submissão
às políticas do FMI. Esses compromissos facilitaram o apoio de
importantes setores do capital interno e externo à candidatura Lula.
A “longa marcha” de Lula rumo à presidência repousou também no
fortalecimento do PT como um aparato de políticos integrados ao
Estado, nos diversos estados e municípios em que o PT já governava,
e nos pactos políticos com a direita, que o tornaram um “parceiro
de governo” confiável.
Em
setembro de 2002, o governo FHC tomou novamente emprestados US$ 16
bilhões do FMI, como “seguro” frente ao perigo do contágio da
insolvência argentina. O Fundo impôs a meta de superávit primário
de 3,75% do PIB, economia dos gastos públicos em saúde, educação,
reforma agrária. O novo acordo era uma operação condicionada a
metas impostas pelo FMI para refinanciar a dívida. O FMI
estabeleceu, de fato, as bases do programa para os quatro anos de
mandato do futuro governo, a ser eleito no final do ano. O
“empréstimo preventivo” do FMI foi concedido com o aval de Lula
(e dos outros três candidatos presidenciais principais, José Serra,
Garotinho e Ciro Gomes) ao acordo político que o condicionava, para
“acalmar o mercado”, condição imposta pelo FMI e mediada pelo
próprio presidente (FHC).
A
ajuda em conta-gotas do FMI sugeria dosar a saída de capitais dos
bancos internacionais no Brasil que, de outra maneira,
transformar-se-ia num estouro. Isso punha a nu a causa que
inviabilizava as operações de resgate, que só serviriam para
financiar uma fuga incontrolável de capitais e precipitar a
declaração de bancarrota. De acordo com o presidente do Bank
of Boston
do Brasil, os bancos estrangeiros estavam obrigados a reduzir sua
exposição no país, se não quisessem terminar numa convocação de
credores, devido ao crescimento da carteira de cobrança duvidosa dos
bancos.
O
banqueiro explicava que, “como consequência da crise argentina, o
Banco Central dos Estados Unidos solicitou que os bancos informassem
sobre todas as suas linhas de crédito”,
ou seja, independentemente de o crédito compromissado ter sido
efetivamente outorgado. Os bancos europeus fizeram o mesmo: o
Santander decidiu reduzir em 31% sua exposição no Brasil.
Dos US$ 154 bilhões da dívida externa do capital privado no Brasil,
metade se encontrava nas mãos de vinte bancos. A bancarrota do
Brasil podia detonar em Wall Street; o FMI atuava, não para salvar o
Brasil, mas para que quando este caísse, não levasse consigo a
Bolsa de Nova York. A fuga da dívida empresarial por parte dos
financistas não concernia apenas à dívida externa.
Os
fundos de investimentos, que colocavam o dinheiro em dívidas de
empresas, tiveram uma evasão de cerca de R$ 10 bilhões somente no
mês de junho de 2002, que foram parar nos depósitos a prazo nos
bancos, provocando uma contínua desvalorização dos títulos e
ações em poder dos bancos e, portanto, uma desvalorização do seu
capital: “A renovação de linhas bancárias caiu de 78% em abril
para 34% em julho. No caso dos títulos comerciais a relação passou
de 136% a 11%”.
A dívida pública e privada externa de quase US$ 300 bilhões se
desvalorizara em 40%, o que implicava uma perda patrimonial de
capital de US$ 120 bilhões. Se continuasse, ainda que por pouco
tempo, a retirada dos depósitos bancários, o Brasil deveria usar o
controle cambial. O acordo com o FMI autorizava o Brasil a utilizar
suas reservas em dólares até o patamar de US$ 10 bilhões.
Mas
gastar tal soma anunciaria o colapso financeiro. Qualquer aumento da
taxa de juros interna, para incentivar o investimento dentro do país,
aumentaria enormemente a dívida externa em reais, indexada em
dólares. Sem uma forte guinada na situação financeira
internacional, a sorte do Brasil estaria lançada. Alguns analistas
aconselharam os investidores a pegar o dinheiro e correr para a
saída, ou seja, que levassem o dinheiro do FMI para uma conta na
Suíça, ou melhor, em Nova York. Segundo Morris Goldstein, ex
subdiretor do FMI, havia “70% de probabilidades de que em 2003 o
Brasil [entrasse] em default”.
É
sob essa luz que se devia julgar o apoio de Lula ao acordo do FMI,
com o argumento de que o dentista podia ser desagradável, mas, às
vezes, era o único recurso. A solução do FMI previa a extração
dos dentes e sua substituição por uma dentadura postiça, a que
somente se teria acesso por meio de algum empréstimo usurário.
Quando se examina a real função do “apoio” do FMI, observa-se
que, embora não resgatasse a economia brasileira nem os bancos
estadunidenses, constituía um socorro último para o governo FHC.
Nas vésperas do “pacote” havia fortes indícios de que Fernando
Henrique seria obrigado a antecipar as eleições e inclusive a
transmissão do seu mandato.
O
“pacote” fundo-monetarista era o último balão de oxigênio para
aguentar até as eleições. Por isso os assessores econômicos de
Lula e, em seguida, ele próprio, anteciparam seu apoio. Isso
equivalia a um acordo de governabilidade e antecipava que o primeiro
passo de um eventual governo Lula seria chegar a um acordo com o FMI.
O pacote foi uma manobra política de alcance internacional, para
condicionar o processo político brasileiro e, nesse sentido, teve
êxito com o apoio que recebeu por parte do PT: o PT antecipara sua
completa integração à ordem mundial hegemonizada pela banca
internacional.
A
Vitória Eleitoral do PT
Desse
modo, em outubro e novembro (segundo turno eleitoral) de 2002, Lula
chegou, enfim, ao governo, desta vez com a luz verde da burguesia
local e do capital financeiro internacional, que tinha estado ausente
nas três tentativas precedentes: “Lula conseguiu enfileirar atrás
de seu projeto 500 grandes nomes entre industriais e agropecuaristas
que representam uma boa porção do PIB. Mas também conseguiu o
impensável: associar politicamente executivos de bancos estrangeiros
e consultoras internacionais como o presidente da Ernst
& Young”.
Entre estes se encontrava Roberto Teixeira da Costa, o nº 1 da
Câmara de Comércio Brasil-EUA. Roberto Setúbal, presidente do
Banco Itaú, assegurou que “a comunidade empresarial está
preparada para apoiar Lula”.
Em 28 de outubro de 2002, o presidente Bush e o presidente Lula da
Silva tiveram seu primeiro contato. O presidente norte-americano
telefonara ao Brasil para felicitar o brasileiro por seu sucesso
eleitoral. Mês e pouco depois, em 10 de dezembro, ambos se reuniram
no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, e iniciaram ali uma
intensa relação.
O
vice de Lula fora escolhido para completar uma estratégia política
de sedução da classe capitalista. O grande capital fizera sinal
negativo à continuidade de FHC em 2002. A possibilidade de que a
crise chegasse ao Brasil também preocupava a cúpula do PT que, como
vimos, deu garantias explícitas aos grandes investidores externos em
reuniões em Nova York imediatamente prévias às eleições. Para se
ajustar a essa perspectiva ampliou sua aliança político-eleitoral a
setores dentre os mais reacionários da política brasileira: o
industrial e evangélico José Alencar, candidato à vice-presidência
pelo PT; o paulista Orestes Quércia e o ex-presidente José Sarney.
Depois, Lula conseguiu o apoio da mais importante empresa do ramo
eletrônico nacional, o grupo Gradiente; foi publicado um texto do PT
e da Bolsa de Valores de São Paulo, a 3 de outubro de 2002. Os dois
líderes mais reconhecidos da direita brasileira, o paulista Paulo
Maluf e o baiano Antônio Carlos Magalhães, chamaram a votar por
Lula no segundo turno.
A
vitória eleitoral do PT nas eleições presidenciais de 2002 era um
fato previsível, não só pela expectativa popular, que aguardava
uma vitória da candidatura Lula há quase uma década e meia, mas
também pela própria degringolada do governo FHC. João Paulo Cunha,
deputado e líder parlamentar do PT, fez, em finais de 2002, uma
listagem conclusiva dos “45 escândalos que marcaram o governo
FHC”.
Lula apareceu em 2002 como a garantia política mais segura para
evitar o contágio brasileiro da derrubada econômica argentina e
suas consequências políticas. Nesse ano, um princípio de suspensão
de pagamentos externos obrigara o Brasil a emitir dinheiro para
cancelar as amortizações com os bancos locais e para socorrer os
fundos de investimentos que estavam perdendo depósitos de seus
clientes. Essa emissão levou o dólar de 3,18 a 3,80 reais.
Lula
era também a carta política que poderia bloquear a expansão da
rebelião popular argentina à América do Sul e sufocá-la em seu
isolamento, sua candidatura tinha projeção internacional. Lula
deixou claro ser contrário às ocupações de terra, enquanto seu
vice declarou a necessidade de uma ofensiva contra o MST. Sua
campanha eleitoral tendeu a desencorajar toda militância popular.
Verbalmente e por escrito, Lula, o PT e a Frente Brasil Popular
renegaram seu antigo programa: a recuperação das empresas
privatizadas; a suspensão do pagamento das dívidas interna e
externa; a reorientação da produção e do consumo para o mercado
interno; o aumento real sistemático dos salários; o fim do
latifúndio; a luta pela independência nacional, econômica,
política, produtiva, tecnológica.
No
dia do segundo turno eleitoral, o editorial d'O
Estado de S. Paulo,
sob o título “A metamorfose do PT na rota do poder”, era mais do
que significativo: Em
23 anos, no lugar de fazer a revolução que sonhava para o Brasil, o
PT se revolucionou a si mesmo... A metamorfose custou anos de
discussões, mas lentamente a maioria do partido enrolou a bandeira
do socialismo e adotou um programa moderado e nacionalista, sem
rupturas e sobressaltos, dirigido a atrair o empresariado. Em
fevereiro de 1980, o PT pedia a reforma agrária ampla sob o controle
dos trabalhadores, a educação e a saúde pública e gratuita. A
palavra socialismo ingressou oficialmente no vocabulário petista em
1981, introduzida por Lula no Primeiro Encontro Nacional do PT. O
discurso esquerdista foi a marca do PT nos anos seguintes. Em 1985
atacou o que em 2002 se transformaria em sua própria bandeira: o
pacto social. A flexibilização começaria antes das alianças com
outros partidos. Em 1983, com o Manifesto
dos 113,
se propôs um projeto que blindasse a direção petista contra as
organizações da esquerda que atuavam no partido. Foi o surgimento
daquilo que se transformaria na moderada “Articulação Unidade e
Luta”, que sustenta Lula até o presente. Por proposta do grupo, o
PT mudou a consigna de “governo dos trabalhadores” para “governo
democrático popular”, abrindo o terreno para as alianças [...]
Ainda
mantinha posições históricas como o não-pagamento da dívida
externa, a ruptura com o FMI e as estatizações. Foi com esse
programa que Lula se candidatou a presidente em 1989. Em 1994 foi
derrotado por Cardoso e seu Plano Real [...] Em 1998, tendo Brizola
como candidato a vice-presidente, mas ainda longe do centro, Lula
tentou um discurso a favor da estabilidade econômica. Abandonou-se a
proposta de suspender o pagamento da dívida, mas o programa propunha
ainda revisar as privatizações, um imposto sobre as empresas
privatizadas e renegociar a dívida interna. Um erro que o PT não
repetiu em 2002, quando definitivamente se vestiu de moderado,
defendeu o pagamento das dívidas interna e externa, comprometeu-se a
cumprir os contratos com as privatizadas e o acordo com o FMI.
Nas
eleições de 2002, na Câmara dos Deputados, o PFL perdeu 14 cargos,
o PMDB, 13, e o PSDB (partido de FHC), nada menos que 23. O vácuo de
50 cadeiras assim criado não chegou a ser preenchido totalmente pelo
PT, que passou, no entanto, de 58 a 91 deputados, não chegando a
totalizar 20% da Câmara, mas também por candidaturas aventureiras.
O segundo turno assistiu uma vitória de Lula baseada numa
direitização ainda maior do PT. A Frente Brasil Popular venceu,
desse modo, o pleito presidencial com 46,44% dos votos válidos
emitidos no primeiro turno (pouco mais de 39,4 milhões, para um
eleitorado de 115,2 milhões) graças à presença dominante de Lula
e do PT na coalizão, ambos vistos e considerados popularmente como
os representantes dos interesses da classe operária, dos camponeses
e dos pobres do país em geral. Ainda
que Lula tivesse vencido com 62% dos votos no segundo turno e em
todos os estados com exceção de Alagoas, o PT não ganhou nenhum
governo estadual salvo o do Mato Grosso do Sul. Pior ainda, o PT
perdeu o estado do Rio Grande do Sul e a eleição em Porto Alegre,
que se haviam convertido em emblema do que seria um governo nacional
do PT.
Em
sua primeira declaração depois da vitória de Lula, em janeiro de
2003, a direção nacional do PT afirmou: O
governo foi formado com uma configuração de centro-esquerda, com
clara hegemonia da esquerda, definida pela forte presença do PT e de
seus aliados tradicionais. Além dos partidos de esquerda – PT, PC
do B, PV, PMN, PCB, PSB, PDT e PPS – e os partidos de centro –
PTB, PL e setores do PMDB –, o governo está marcado por um matiz
não-partidário importante, representado pelos ministros da
Agricultura, Indústria e Comércio. Esse matiz expressa a tentativa
de construção de uma aliança com o empresariado nacional. Essa
afirmação era uma tergiversação, começando pela qualificação
“de esquerda” para aparatos vazios do clero evangélico e do
oportunismo político em todos os seus matizes, e ocultando o papel
central do capital financeiro internacional no governo Lula.
Não
por acaso, o novo governo “debutou” mais na areia da política
externa do que na doméstica. Logo de cara, o governo do PT e de seus
aliados foi peça decisiva no desenho da política norte-americana na
América do Sul, desmobilizando o proletariado brasileiro e
intervindo ativamente na contenção da radicalização popular
“andina”, o que não lhe poupou conflitos derivados dos
interesses específicos do Brasil na Bolívia, Equador e Paraguai. A
burguesia brasileira e os capitais estrangeiros instalados no Brasil
passaram a investir pesadamente nas nações vizinhas, em especial em
petróleo, obras públicas e siderurgia, vendo-se obrigados a ter sua
própria política nesses países, ajudados pelo governo Lula, que
fez um “meio de campo” entre os EUA e os regimes “radicais”
(Chávez, Evo Morales, Correa).
Em
20 de junho de 2003, o presidente Lula, durante curta visita aos
Estados Unidos, assinou um comunicado junto ao presidente dos Estados
Unidos, George W. Bush, assumindo o compromisso de “cooperar para a
conclusão bem-sucedida” da implantação da Alca dentro do prazo
previsto (janeiro de 2005). Uma semana antes, em 13 de junho, catorze
ministros latino-americanos, reunidos em Maryland num encontro
organizado pelo representante de comércio dos Estados Unidos, Robert
Zoellick, haviam se comprometido informalmente a destravar as
negociações da Alca para criar uma zona de livre comércio com a
participação de 34 países, com um potencial de 800 milhões de
consumidores. O Brasil, que compartilhava a presidência do processo
negociador com os Estados Unidos, avançou a ideia de uma Alca
reduzida, que não vingou. No final da estória, “o Mercosul se
revitalizou”, concluíram os jornais depois da viagem do presidente
argentino Nestor Kirchner ao Brasil, em junho de 2003.
A
esquerda brasileira, no entanto, assegurou que a vitória eleitoral
de Lula “dará ânimo a todo o povo brasileiro e vai gerar um
processo de ascensão do movimento de massas”, como disse João
Pedro Stédile, coordenador nacional do MST.
Ao contrário, o que houve foi uma crescente desmobilização,
inclusive do MST. Onze dos ministros de Lula tinham sua origem na
CUT, além de outros 66 sindicalistas com funções no primeiro
escalão do governo. Ficou novamente demonstrado que os governos de
tipo “Frente Popular” não constituíam necessariamente a véspera
de uma irrupção revolucionária das massas: dependendo das
circunstâncias políticas poderiam ser um fator de desmobilização
e de retrocesso maior do que um governo da direita burguesa.
A
“Estabilidade Econômica” de Lula
Tanto
nas trincheiras do PT como nas do capital financeiro, insistiu-se em
que o Brasil não corria o risco de quebrar por ter 75% de sua dívida
pública em reais e, portanto, poderia refinanciar continuamente a
dívida mediante emissão monetária e sem cair no calote. A segunda
diferença em relação à Argentina seria que, sem a camisa de força
da “conversibilidade monetária”, as autoridades monetárias
brasileiras não teriam de vender dólares a preço de leilão, com
um tipo de câmbio fixo muito baixo. Com a desvalorização do real,
evitar-se-ia o default, mas à custa de maior inflação ou custo
fiscal.
Os
“mercados” encabeçaram o gabinete de Lula, que indicou um homem
de Wall Street para a direção do Banco Central, Henrique Meirelles,
cujo banco estava envolvido em atividades fraudulentas no Brasil e na
Argentina.
Um executivo sênior do Citigroup, Cassio Casseb Lima, foi posto como
presidente do Banco do Brasil. O Banco Central definiu uma taxa de
juros real de 18% ao ano: a dupla Lula-Meirelles pretendia convergir
com a tendência principal da especulação financeira mundial. A
reforma previdenciária foi definida como “a prioridade nº 1 na
agenda de reformas”, buscando abrir um mercado de aproximadamente
US$ 40 bilhões para os fundos de pensão privados. A equipe
econômica do PT, no entanto, abandonou a ideia de eliminar o sistema
de repartição por outro de capitalização na previdência social;
a manutenção dos aposentados teria um enorme custo fiscal, no mesmo
momento em que o FMI queria hipotecar as finanças públicas para
resgatar os credores e subsidiar o capital financeiro.
A
“reforma” concentrou-se em um golpe às aposentadorias do setor
público, e provocou a primeira greve nacional de servidores,
impulsionada pelo sindicalismo classista, mas boicotada pela CUT. A
reforma previdenciária e a greve do funcionalismo público
provocaram uma crise no PT, com a saída de uma senadora (Heloísa
Helena) e de três deputados federais, que acabaram criando o PSOL.
A decisão da Direção Nacional de expulsar os dissidentes se baseou
na imputação de “infidelidade partidária”, desobediência às
diretivas do partido e do governo, e até de aliança com os partidos
opositores, em especial o PSDB, por parte dos quatro legisladores
(Luciana Genro, João Batista de Araújo “Babá”, João Paulo
Fontes, e a senadora Heloísa Helena). Mas os dissidentes haviam se
limitado a votar de acordo com o programa aprovado organicamente pelo
PT no seu Encontro Nacional de dezembro de 2001, contra as reformas
privatistas da previdência e tributária.
O
governo Lula não agiu por imposição do FMI, mas por sua própria
conta, ao implementar cortes suplementares de R$ 14 bilhões no
orçamento de 2003, e ao elevar para 4,25% a meta do superávit
primário. O adiamento da reforma agrária, o beneficiamento de
empresas nacionais e multinacionais com recursos públicos, os
acordos de anistia a devedores da Previdência, foram os indicadores
da política estratégica do governo. Os investimentos em saneamento,
assentamentos rurais, manutenção das estradas, saúde, educação,
foram sendo diminuídos. O superávit primário da União, estados,
municípios e empresas estatais superou, no primeiro ano de governo,
os R$ 15,4 bilhões exigidos pelo FMI. Com a “estabilidade” assim
conquistada, as empresas no Brasil retomaram a captação de capitais
externos.
Nas
palavras de Heinrich Koeller, diretor-gerente do FMI: Sou
entusiasta [em relação à administração Lula]; mas é melhor
dizer que estou profundamente impressionado pelo presidente Lula, na
verdade, e em particular porque penso que ele tem a credibilidade que
muitas vezes falta um pouco a outros líderes, e a credibilidade está
em que é sério para trabalhar a fim de combinar política orientada
para o crescimento com equidade social. Isto é a agenda certa, a
direção certa, o objetivo certo para o Brasil e, para além do
Brasil, para a América Latina. Assim, ele definiu a direção certa.
Segundo, penso que o governo é eficaz e não apenas de intenções
aéreas, pois elas funcionam ao longo do processo desta enorme agenda
de reformas. Entendo que a reforma das pensões e a reforma fiscal
são prioritárias na agenda, e isto é correto. O terceiro elemento
é aquilo que o FMI ouve do presidente Lula e da equipe econômica, e
é a nossa filosofia, naturalmente, para além do Brasil.
No
orçamento real houve déficit de 12% do PIB, já que os encargos
financeiros equivaliam a 23% do PIB. No primeiro trimestre de 2003, a
dívida pública aumentou de R$ 43,7 bilhões. Somada essa quantia
aos R$ 22,8 bilhões do superávit primário oficial, resultavam R$
66,5 bilhões. O aperto fiscal só permitia gastar em juros. A moeda
nacional ficava quase toda no giro da dívida pública, cujos
beneficiários a reaplicavam na compra de mais títulos. O aperto
monetário foi reforçado pela elevação, em 15%, dos depósitos
compulsórios dos bancos no Banco Central, implicando em redução de
45% no capital disponível para empréstimos. Quase já não havia
crédito privado para as atividades produtivas, e a taxas de juros
eram proibitivas, em torno de 150% ao ano. A supressão do crédito e
da moeda nacional foi de tal ordem que houve apreciação cambial,
mesmo sem expressiva variação na entrada líquida de capitais. Esta
foi de US$ 4 bilhões no primeiro trimestre de 2003, inferior em US$
1 bilhão à do primeiro trimestre de 2002.
Essa
queda foi, porém, compensada pela redução do déficit de
transações correntes com o exterior. Os capitais especulativos de
curto prazo cresceram de US$ 148 milhões para US$ 1,96 bilhão. A
rentabilidade do sistema bancário chegou a 24,5% anuais. O ingresso
de capital de curto prazo aumentou 1.300%. A remuneração e a
contratação de capital tornaram-se os grandes negócios do momento.
Nos dias que antecederam a reunião do Comitê de Política Monetária
do Banco Central (Copom), empresários industriais manifestaram-se
favoráveis a um corte na taxa de juro de 1,5% (Horácio Lafer Piva,
presidente da Fiesp) até 3,5% a 8% (setores empresariais
representados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social, CDES, nomeado pelo governo).
No
próprio governo, José Alencar e Luiz Alfredo Furlan, empresários,
e dirigentes petistas (Guido Mantega e Aloizio Mercadante) eram
partidários de cortes nas taxas de juros; o mesmo manifestava o
titular do principal banco privado nacional (Bradesco). O Copom
decidiu manter a taxa básica em 26,5%. O principal porta-voz
jornalístico da “comunidade de negócios” comentou imediatamente
que “é sintomático que os aplausos à decisão tenham partido dos
agentes do mercado financeiro. Poucas vozes produtivas engrossaram
esse coro. Juros altos significam, para as instituições bancárias,
a possibilidade de grandes lucros, com a aplicação de recursos em
títulos públicos, remunerados sem os riscos da atividade”.
O
principal articulador político de Lula, José Dirceu, precisou sair
a público para disciplinar os membros mais incrédulos de seu
próprio governo. A decisão do Copom garantia uma taxa de juro real,
descontada a inflação, de 18% ao ano, cifra que chegava ao absurdo,
caso fossem considerados os valores praticados “no mercado”. O
crédito para o consumo superava a taxa de 200% ao ano, enquanto o
crédito para pessoas jurídicas custava, em média, mais de 78% ao
ano (com máximas de 105%). A Folha
de S. Paulo
afirmou em seu editorial de 18 de maio de 2003 que, “se adotar o
catecismo conservador era inicialmente inevitável, já chegou a hora
de questionar não apenas sua persistência como sua exacerbação.
Sem a exigência do FMI, o ministro Antonio Palocci ofereceu ao
mercado financeiro mais superávit fiscal, ou seja, abriu espaço no
orçamento para pagar uma conta de mais de R$ 100 bilhões em juros.
Ignorando o custo extorsivo do crédito, o BC manteve a trajetória
crescente da taxa de juro”.
Até
o investimento estatal entrou na área da privatização, através um
novo modelo de obras e serviços (Parcerias Público-Privadas, PPPs)
em que a iniciativa privada poderia contar com uma parcela da
arrecadação de tributos para garantir retorno para seus
investimentos. As duas mais importantes leis que regulavam as
relações do Estado com a iniciativa privada – a das licitações
e a das concessões – seriam “flexibilizadas” para abrir
caminho às PPPs. Elas seriam responsáveis por grande parte dos R$
36,28 bilhões em investimentos privados previstos pelo governo na
área de infraestrutura, em todo o seu mandato. O Plano Plurianual
(PPA) previu parcerias para a “universalização” dos serviços
de energia elétrica e a construção de hidrelétricas, ferrovias e
rodovias.
O
primeiro governo Lula “economizou” R$ 40 bilhões do orçamento,
em seis meses, para pagar juros; confiscou parte da aposentadoria dos
servidores públicos; destinou só R$ 162 milhões para a reforma
agrária, o que não dava para assentar nem quinze mil camponeses;
renunciou a R$ 342 milhões em impostos para as montadoras de
automóveis, sem falar nas “facilidades” concedidas às
indústrias por meio da redução do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI). Os sem-terra foram cada vez mais sendo
vítimas da truculência e violência de latifundiários e
governadores. Os servidores públicos em luta foram reprimidos e
estigmatizados. Os sindicatos dirigidos pela corrente majoritária da
CUT (Articulação, vinculada à maioria petista) reivindicaram menos
que a reposição integral da inflação nos dissídios coletivos.
A
“estabilidade econômica” lulista, desse modo, teve por base um
vasto e tácito acordo político, que ia do FMI e os EUA até a
burocracia sindical brasileira. A
redução do “risco Brasil” e a baixa do dólar não foram um
reflexo da “estabilidade”, mas da crise mundial, pois a recessão
mundial e a guerra do Iraque promoviam um movimento especulativo de
capitais árabes para os títulos do Brasil. Essa estabilidade foi
garantida por uma fase expansiva do comércio mundial, em especial
dos preços das matérias primas. As exportações subiram, enquanto
as importações caíram, produzindo grandes superávits comercias.
No novo cenário, os segmentos produtivos ligados à exportação
avançam aceleradamente, esgotando suas capacidades produtivas
(celulose, papel e outros), enquanto os ligados ao mercado interno
(eletrodomésticos, têxteis, alimentos etc.) estagnaram.
Nesse
quadro comercial internacional favorável, as classes dominantes
brasileiras, durante o primeiro governo Lula, levaram novamente o
país para um sistema econômico baseado na exportação
agropecuária, esperneando contra o “protecionismo dos ricos” e
por um acesso maior na feira livre mundial de soja, de carne, de
açúcar, de frutas. A estratégia econômica foi definida a serviço
da agroindústria, dos exportadores de matérias-primas e de gêneros
agrícolas. Houve uma forte investida capitalista no campo, com
crescimento tecnológico, mecanização, concentração de terras e
exploração do trabalhador. Das 500 maiores empresas incluídas no
ranking de vendas, 144 tinham negócios dependentes da atividade
agropecuária.
O
agronegócio era controlado pelas multinacionais – Monsanto,
Novartis, Pioneer e Agrevo – tanto na produção, quanto na
transformação e distribuição. Começa com a produção de
sementes transgênicas, passa pela produção de agrotóxicos,
máquinas e equipamentos, o controle das terras e, em algum caso, das
águas, indo até a distribuição, atuando na produção de
alimentos, fertilizantes, agrotóxicos, máquinas, madeira, celulose,
borracha, têxteis e comércio varejista. Essas companhias são a
ponta mais visível de um setor que, em 2009, geraria 534 bilhões de
reais (33% do PIB brasileiro), proporcionaria 37% dos empregos no
país, e responderia por 42% das exportações brasileiras e pela
totalidade do superávit comercial. O Brasil foi transformado em
primeiro produtor mundial de soja, sua cultura se apropriou da região
Norte, ocupou o cerrado e começou a avançar na selva, ameaçando a
biodiversidade da região.
Apesar
do crescimento do saldo comercial favorável, o déficit em
transações correntes aumentou para US$ 20 bilhões anuais. E apesar
dos choques localizados em torno de questões comerciais, a política
externa de Lula situou-se no esteio da política internacional
imperialista, com o envio de tropas brasileiras (encabeçando a
Minustah,
força militar de ocupação) ao Haiti, o que foi solicitado pelos
próprios EUA, que estavam impossibilitados de fazê-lo diretamente
por estarem embrenhados militarmente no Iraque e no Afeganistão.
A
Estabilidade Social
Os
programas sociais compensatórios do Brasil, lançados no primeiro
governo Lula, pela sua dimensão e alcance foram propostos como
exemplo mundial.
Os países “emergentes” membros do chamado BRIC (Rússia, Índia,
China, além do Brasil) anunciaram sua intenção de adotar programas
semelhantes. Os gastos sociais no Brasil cresceram de R$ 1,3 bilhão
em 1995 (primeiro ano do governo FHC) para R$ 18,8 bilhões em 2005
(terceiro ano do governo Lula), um crescimento superior a 1.400% em
moeda corrente. A diminuição estatística da pobreza absoluta foi
acentuada: ela passou de 35,6%, em 2003, para 26,9%, em 2006. Os
gastos sociais per capita apresentaram igualmente uma trajetória de
crescimento em um breve período de tempo para as categorias mais
pobres. As políticas sociais compensatórias, por outro lado,
criaram um novo modelo de clientelismo político associado ao
controle dos cadastros e também à cooptação dos “movimentos
sociais”: o modelo assistencialista perpetuava a dependência dos
beneficiados, e estabelecia uma divisão na classe trabalhadora entre
os que recebem e os que não recebem.
Dos
dez milhões de novos empregos registrados prometidos, no entanto,
foram criados só 4,8 milhões, mantendo entre 8% e 9% a taxa de
desemprego. Boa parte desses “novos empregos”, por outro lado,
foram a formalização (regularização com carteira assinada) de
empregos já existentes. O desemprego real não sofreu alterações
importantes no primeiro governo Lula, o que explica as 50 milhões de
pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF),
¼ da população brasileira (índice que chegou a 50% em regiões do
Nordeste, onde se repassaram inicialmente benefícios a mais de 5,7
milhões de famílias, ou 25 milhões de pessoas).
Depois
de uma forte expansão, em 2008 o PBF demandou R$ 11,1 bilhões do
orçamento público, ou 0,4% do PIB (o pagamento dos juros da dívida
pública equivaleu a 3,8% do PIB, quase dez vezes mais). Comparados
com o PIB e, sobretudo, com os lucros gerais do capital, os programas
sociais constituem um percentual baixo. O PBF custara ao governo, em
2005, R$ 5,5 bilhões (aproximadamente US$ 2,3 bilhões), que pagaram
benefícios a 8,7 milhões de famílias, ou seja, aproximadamente 35
milhões de pessoas. Mas, em 2006, o setor financeiro recebeu R$ 272
bilhões em conceito de pagamento dos juros das dívidas, quase 50
vezes o que se gastou com o PBF.
Depois
de um quarto de século de lutas dos sem-terra, a reforma agrária
era, por óbvios motivos, a mais esperada das “reformas” do
governo Lula. O Brasil tinha o maior latifúndio do planeta,
pertencente à construtora CR Almeida, de Curitiba (PR), com 4,5
milhões de hectares, quase metade do estado do Sergipe. 27.556
latifundiários com fazendas acima de 2 mil hectares cada um eram
donos de 178.172.765 de hectares de terra, o equivalente a 43% de
todas as terras do Brasil. Havia, também, 4,6 milhões de famílias
sem-terra.
No
Brasil, por causa da concentração da propriedade da terra, são
cultivados 40 milhões de hectares, 10% do potencial existente: a
maior parte dessas lavouras está nas propriedades com menos de 500
hectares. Durante os anos de 1995/2002 (governo FHC), a concentração
da propriedade da terra aumentou: os latifundiários com mais de 2
mil hectares aumentaram suas propriedades em 57 milhões de hectares.
As empresas estrangeiras possuem no Brasil mais de 30 milhões de
hectares de terra. O
governo FHC promovera um simulacro de reforma agrária, assentando
famílias em localidades sem nenhuma infraestrutura e despertando,
via postal, uma ilusão de acesso à terra que frustrou a esperança
de milhões.
A
queda dos assentamentos de camponeses sem terra no primeiro ano do
governo Lula foi um amortecedor dos conflitos sociais e um fator de
esvaziamento dos movimentos dos sem-terra. No início do governo, o
crescimento das ocupações de terra levou ao grito de alarme: “as
massas estão escapando ao controle”. Lula havia prometido assentar
60 mil famílias em 2003 (havia 130 mil famílias acampadas
“ilegalmente”). Para salvar a política de não tocar o
latifúndio privado, o ministro Miguel Rossetto reciclou uma velha
ideia: assentar as famílias em terras do Estado. Mas essa política,
sem resolver a questão (as 130 mil famílias estavam acampadas em
latifúndios privados), deixaria uma bomba relógio para 2004.
Uma
notícia banal, sob o título “Acabou a luta de classes!”,
referia o novo clima político no campo: A
presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em clima de
descontração e otimismo, na tradicional feijoada oferecida pelo
pecuarista Jonas Barcelos, em sua fazenda Mata Velha, após a
inauguração da Expo-Zebu, foi uma cena jamais imaginada pelos
empresários do agronegócio. No almoço do ano passado, Lula também
foi o centro das discussões, mas, ao contrário deste ano, todos
estavam preocupados, apreensivos e curiosos com o que aconteceria no
país se o candidato petista fosse eleito. No sábado, os ruralistas
faziam filas para posar para fotos ao lado do presidente. E elogios
não faltaram: “O setor está contente e surpreso positivamente com
o presidente Lula”, comentou o pecuarista Jovelino Mineiro, sócio
do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na Fazenda Córrego da
Ponte, em Buritis (MG), resumindo o clima do almoço. Jovelino, que
já sofreu com a invasão de suas terras pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), elogiou a determinação de
Lula de colocar a agricultura na agenda do país e de escolher
Roberto Rodrigues, “que é do setor”, como frisou, para o
Ministério da Agricultura. O discurso do presidente Lula na
Expo-Zebu agradou aos fazendeiros.
Lula
alegou não ter caixa para gastar os R$ 668 milhões necessários
para cumprir as modestas metas agrárias de 2003 (gastando 300 vezes
essa cifra para pagar juros da dívida externa e interna). O número
de famílias que invadiram terras de latifúndio improdutivo no
Brasil caiu de 65.552, em 2003, para 44.364, em 2006; uma queda de
32,3%. Nesse mesmo período, a quantidade de famílias acampadas
despencou de 59.082 para 10.259 - uma diminuição de 82,6%. A
contradição entre os interesses da base do movimento dos
trabalhadores rurais e a direção do MST, que priorizou a defesa do
governo Lula, impulsionou a criação de novas organizações de
camponeses despossuídos (no “Triângulo Mineiro”, por exemplo).
Em
julho de 2003, a prisão de José Rainha apareceu como um símbolo da
nova situação política no campo.
Ela foi seguida da prisão da sua mulher, Diolinda de Souza.
A
dívida pública consumia, por outro lado, 42% do orçamento
federal:
os serviços da dívida passaram de 16% do orçamento federal, em
1995, para 42%, em 2005, ou de R$ 26 bilhões para R$ 257 bilhões
anuais. A dívida pública caiu de 57,2% do PIB, em 2003, para 49,5%,
em 2007. Em 2005, o governo federal aplicou 26,49% do orçamento em
áreas sociais, frente a 42,45% em serviços da dívida pública. A
verba restante, 31,06%, foi destinada para a Previdência Social. A
carga tributária cresceu, portanto, no Brasil, basicamente para
cobrir o aumento dos encargos da dívida pública. Foi desse modo
que, em uma fase de expansão da economia e da arrecadação
tributária, tornou-se possível a coexistência de políticas
sociais com uma forte remuneração da especulação financeira.
O
salário mínimo foi, aos poucos, valorizado, mas a média salarial
não sofreu variações significativas. Os pisos salariais acima de
três salários mínimos caíram de 4,6% em 2005 para 3,8% em 2006.
Na média, em 2005, os pisos salariais médios pagos pelas empresas
caíram de 1,69 salário mínimo para 1,52 mínimo. No mesmo ano, o
salário mínimo subiu de R$ 260 para R$ 300 e, em abril de 2006, foi
para R$ 350. O reajuste real (descontada a inflação) do salário
mínimo, nesses dois anos, alcançou 22%. Durante o governo Lula, no
entanto, não regrediu a regressão tributária, além de se manter a
trajetória ascendente da carga impositiva. As pessoas com renda até
dois salários mínimos (R$ 930, quase 33% da PEA, população
economicamente ativa) continuaram levando mais dois meses do que os
demais para quitar suas obrigações tributárias.
A
questão racial imbricou-se diretamente com a questão do emprego e
do salário: no Brasil são os negros e as negras os que mais sofrem
com o desemprego, perfazendo 40% do desemprego total. Também são os
negros os mais atingidos pelo “trabalho informal”, sendo seus
salários 50% menores que os dos brancos. As mulheres negras são o
setor mais empobrecido da sociedade e são as que mais sofrem com a
violência doméstica. A violência contra a juventude negra e
indígena tem altas taxas de homicídios; os negros são os primeiros
a serem demitidos, os que mais caem na “informalidade”, nome
eufemístico dado à exploração sem limites legais nem sociais.
Esse quadro tornou mais grave o processo de cooptação, pelo governo
Lula, das lideranças do Movimento Negro, o que culminou com a
aprovação de um Estatuto da Igualdade Racial, com apoio da bancada
ruralista do Congresso Nacional, retirando bandeiras históricas do
movimento, e também a concessão de titulação de propriedade das
terras dos remanescentes de quilombos. Além disso, Lula retirou o
dispositivo que garantia a alocação de verbas para o ensino de
História da África na educação básica.
Cabe
também mencionar a atuação das ONGs, verdadeira base política
operacional do governo Lula. O papel das ONGs na execução dos
programas sociais as caracterizou como a principal articulação
entre o governo e a sua base social-eleitoral. Com elas, Lula
conseguiu fazer um governo que agradasse ao capital em geral e que
mantivesse, ao mesmo tempo, o apoio das camadas mais pobres da
população. Na medida em que os programas compensatórios são
financiados por fundos estatais, as funções do Estado se ampliaram
na regulação do mercado de trabalho com a transferência do fundo
público, em proporção crescente, para o financiamento do setor
privado, assumindo os custos da reprodução da força de trabalho: o
Estado (depositário do fundo público) transformava-se assim, mais
do que no passado, em pressuposto geral da acumulação de capital. A
questão da pobreza no Brasil, no entanto, continuou em trajetória
precária.
Os
recursos consagrados aos “direitos universais” estabelecidos
constitucionalmente experimentaram, ao contrário dos programas
sociais, um retrocesso relativo durante o governo Lula: os gastos com
saúde e educação, embora crescessem em termos absolutos,
decresceram em termos percentuais, passando de 1,79% para 1,59% do
PIB, e de 0,95% para 0,77% do PIB, respectivamente (de 1995 até
2005). Uma diferença de 0,4% do PIB, enquanto os “gastos sociais”
foram incrementados, em prazo semelhante, em 0,7% do PIB. A diferença
de 0,3% foi coberta pela taxação (direta e indireta) dos salários.
Colaboração
de Classes e Burocracia Sindical
O
“modelo Lula” de governabilidade consistiu, basicamente, na
estruturação como base política e organizadora de seu governo das
ONGs e dos funcionários públicos encarregados de gerenciar os
“programas sociais”, e na aliança com a burocracia sindical;
dotando de estabilidade o financiamento do exército industrial de
reserva com programas sociais condicionados que não tocavam o lucro
capitalista. O “modelo” levava, no entanto, a marca da
precariedade e da condicionalidade que ele imprimiu ao seu principal
instrumento, devido à sua dependência umbilical de uma prosperidade
econômica conjuntural. Os programas sociais, por outro lado,
atingiram seu limite em termos de erradicação da miséria absoluta.
A natureza capitalista da produção de alimentos, e a própria crise
do capital, impuseram um limite intransponível à ação anticíclica
e socialmente paliativa do Estado.
A
função política central do governo Lula, pela qual o capital
financeiro internacional lhe concedeu a “estabilidade
macroeconômica” desejada, foi a instauração de um sistema
completo de colaboração classista. Uma iniciativa tomada pelo
governo foi a instalação do Fórum Nacional do Trabalho (FNT),
constituído por representantes dos trabalhadores, governo, patronato
e de micro e médias empresas, mecanismo ao qual foi atribuída a
tarefa de discutir e consolidar uma proposta de reforma sindical e
das relações entre capital e trabalho. Houve declarações de Lula
no sentido de alterar em profundidade a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) e reconfigurar o modelo sindical existente, criticando
o “sindicalismo de contestação”.
No
Fórum Nacional do Trabalho, a bancada dos empregadores e a bancada
dos trabalhadores chegaram a um consenso em torno da questão do
direito de greve nos chamados “serviços essenciais”: a “bancada
dos trabalhadores” coincidiu com a limitação do direito de greve
dos servidores públicos.
A complacência das centrais sindicais com as políticas
governamentais teve seu prêmio, viabilizando sua maior
burocratização. Um de seus mecanismos foi o “crédito em
consignação”, descontado diretamente na folha de pagamentos.
Esses empréstimos tornaram-se uma fonte de arrecadação e
financiamento dos sindicatos (ou seja, da burocracia sindical).
A
base material da burocracia é o Imposto Sindical, criado pelo regime
varguista (em 2008, seu montante atingia um bilhão de reais, ou 600
milhões de dólares), ao qual se acrescentaram outras taxas
compulsórias (taxa assistencial, “negocial”, federativa,
confederativa) cobradas do conjunto dos assalariados, e recebidas por
mais de dez mil sindicatos, metade deles “de carimbo” ou “de
cartório” (só existem no papel, para receber esses impostos e
taxas), uma autêntica máfia com milhares de supostos sindicalistas
de “carteira esquentada”, que “representam” categorias nas
quais nunca trabalharam e que às vezes sequer conhecem pessoalmente.
Além
disso, passou a existir uma importante “carreira” pós-sindical,
na administração do FAT, do FGTS e outros fundos expropriados do
salário dos trabalhadores, sem esquecer o negócio mais florescente
da era lulista, os fundos de pensão privados, favorecidos pelas
reformas previdenciárias privatizantes de FHC e Lula,
em cima das quais se montou uma camada “gestora” encabeçada por
setores da burocracia sindical. No seminário sobre fundos de pensão,
patrocinado pela Previ, Petros e Funcef, o presidente Lula defendeu
explicitamente que os sindicatos deveriam estabelecer fundos de
pensão. João Vaccari, tesoureiro da CUT, defendeu a constituição,
pela central, de seu próprio fundo de pensão.
Em
1981, 5.030 militantes sindicais, na 1ª Conferência Nacional das
Classes Trabalhadoras (CONCLAT), considerada o embrião do "novo
sindicalismo", Lula e os “novos sindicalistas” defenderam a
necessidade de que os sindicatos se desatrelassem economicamente do
Estado. Prometeram lutar para quebrar a espinha dorsal das entidades
"pelegas", fechando a torneira dos recursos financeiros
compulsórios. A evolução política do país reconfigurou várias
vezes a burocracia sindical. A legalização das centrais sindicas
(CUT, FS, CTB, UGT, NCST, CGTB, e CTB) não foi uma conquista dos
trabalhadores, mas um episódio da luta burocrática por fatias das
taxas compulsórias.
O governo Lula, apoiado por setores que lutavam pelo fim do Imposto
Sindical (a CUT, até a chegada de Lula ao poder, preconizava a
eliminação das contribuições compulsórias e da unicidade
sindical), finalmente aperfeiçoou esse instrumento de
arregimentação, reformulando-o.
Pela
nova lei,
as centrais que comprovassem “representatividade” poderiam
abocanhar 10% do total arrecadado com o Imposto Sindical (uma quantia
superior a R$ 100 milhões). Por decreto (“portaria”), Lula
concedeu ao Ministério do Trabalho o poder de atuar como instância
de conciliação no caso de conflito entre entidades que disputassem
a representação de uma mesma categoria de trabalhadores ou
atividade econômica. CUT e Força Sindical mantiveram seus feudos e
os ampliaram: em 2010 a CUT tinha 1985 sindicato filiados e 22
milhões de associados; a Força Sindical, 1506 sindicatos e 16
milhões de filiados de base. O mecanismo de arregimentação
burocrática da classe operária no Brasil tornou-se o mais
aperfeiçoado da América Latina, e levou até suas últimas
consequências as tendências à integração dos sindicatos ao
Estado. Lula também vetou o antigo mecanismo que permitia ao
Tribunal de Contas da União fiscalizar os recursos provenientes da
“contribuição negocial”, que irrigam os cofres sindicais com
verbas da ordem de R$ 1 bilhão anual. A montanha de dinheiro que
jorra sobre a burocracia sindical é expropriada do salário operário
pelo Estado.
A
CUT, depois de apoiar a reforma da Previdência, furar a maior greve
dos servidores públicos federais da história do país,
enterrar várias campanhas salariais e também as greves dos
trabalhadores dos Correios, passou a defender o aumento da
lucratividade dos bancos, ampliando, pelo mesmo mecanismo, as dívidas
e a quantidade de trabalhadores endividados. Isso foi produto do
convênio entre as centrais sindicais e os bancos para a abertura de
linhas de microcréditos para trabalhadores contraírem empréstimos,
dando como garantia de pagamento o desconto em seus holerites. O
empréstimo consignado (com desconto em folha de pagamento)
ultrapassou o patamar dos R$ 100 bilhões em 2009 (os juros médios
cobrados pelos bancos eram de 28% anuais). A burocracia sindical
brasileira virou uma agência da agiotagem. É de se estranhar que,
nesse quadro, a CUT propusesse, contra o desemprego, não a escala
móvel de horas de trabalho (redução da jornada sem redução do
salário), mas a criação de frentes de trabalho (trabalho quase sem
custo para os capitalistas ou o Estado)?
As
votações sobre a reforma previdenciária, pela primeira vez desde
os tempos da ditadura militar, transcorreram de madrugada, com as
galerias do Congresso vazias e vigiadas pela polícia. O projeto
“modificado” do governo Lula manteve o imposto de 11% para as
aposentadorias e pensões, a quebra da integralidade e da paridade
entre ativos e aposentados, o teto das aposentadorias de R$ 2.400, o
aumento da idade mínima de aposentadoria (55 anos de idade e 30 de
contribuição – não de serviço – para as mulheres; 60 e 35,
respectivamente, para os homens; além de 20 anos no serviço público
e 10 anos no cargo exercido, para ambos). As pensões de menores e
viúvas sofreram reduções. A lei estabeleceu os fundos
“complementares” (privados) para as aposentadorias superiores a
esses tetos. O lucro fiscal supostamente obtido se reduzia a menos de
10% do suposto passivo previdenciário.
O
governo precisava de 308 votos (60% da Câmara, de 513 deputados),
para aprovar sua emenda constitucional. A coalizão governamental
possuía 325 deputados (incluídos os 92 do PT), dos quais apenas 261
votaram a favor do projeto Lula-Berzoini-Gushiken; houve 42 votos
contrários (entre eles, três do PT), nove abstenções e doze
“ausências” na bancada governista (incluídos doze
representantes do próprio PT). O projeto foi, contudo, aprovado com
358 votos, graças aos votos favoráveis de 97 deputados da
“oposição” de direita. Para isso, Lula e seu gabinete
distribuíram generosamente nada menos que R$ 2 bilhões do orçamento
nacional para seus “projetos”.
A
“reforma sindical” acordada com a CUT combinou a possibilidade de
sindicatos por empresa com o arbítrio em última instância da
central sindical ou de uma comissão das centrais sindicais,
impulsionando a desregulamentação trabalhista, já que passariam a
valer os acordos coletivos firmados entre o patronato e a entidade
representativa, permanecendo na legislação constitucional e
infraconstitucional apenas direitos mínimos: a fixação das regras
de proteção do trabalho seria temporária, vinculada a acordos
coletivos. A contrapartida seria a definição das centrais sindicais
como instâncias últimas de julgamento sobre representação.
Uma
CUT “integrada” à política do governo (e ao próprio governo),
cada vez mais burocratizada e desconectada do movimento dos
trabalhadores, em especial de seus setores mais submergidos
(“informais” e desempregados), foi o saldo do processo. O aparato
sindical da CUT passou a ter mais de 100 mil pessoas “liberadas”
(do trabalho) e mais de 20 mil diretamente empregados, um verdadeiro
exército de “dependentes”. O presidente da CUT foi nomeado
Ministro do Trabalho. Em 2006, ainda durante o primeiro governo Lula,
a direção da CUT pactuou com a patronal a demissão de 3.600
operários da fábrica da Volkswagen: a direção do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo aceitou o “plano de
demissão voluntária” (PDV) imposto pela empresa, em que pese a
forte resistência da base operária.
Mensalão
e
Corrupção
Política
Na
proposta de reforma tributária apresentada ao Congresso, o governo
Lula propôs não apenas a manutenção da CPMF, mas a transformação
de seu caráter provisório (previsto para expirar em 2004) para
permanente. O Congresso rejeitou, inclusive com boa parte dos votos
contrários da “base aliada”. Além dessa redução drástica de
recursos financeiros, no terceiro ano do governo Lula a revelação
do escândalo do “mensalão”
abalou profundamente o governo, provocando a exoneração do ministro
chefe da Casa Civil (José Dirceu) e sua posterior cassação
parlamentar, mas não provocou a queda do governo, que chegou a ser
posta no tapete político.
O
mensalão revelou o preço (monetário), R$ 30 mil por mês (em
espécie), da estabilidade política do governo, isto é, o preço do
apoio parlamentar que, em caso de ausência, o teria inviabilizado
como governo politicamente viável e útil ao capital. A colaboração
classista tinha preço, mas não só em dinheiro: o governo Lula
ficou refém da maioria parlamentar da chamada “base aliada” e,
com o mensalão, também do Poder Judiciário, cuja composição
tentou alterar em seu benefício. O julgamento do mensalão projetou
um juiz do STF, Joaquim Barbosa, como figura de primeira linha da
política nacional, e pôs o Judiciário na linha de frente da
estabilidade do Estado, o que, para além da óbvia presunção de
alguns protagonistas, era um índice certo da decomposição política
dos outros dois poderes. O Judiciário preservava a ordem política,
a Polícia Militar (o “Capitão Nascimento”) a ordem social
(vários filmes bem sucedidos divulgaram essa nova imagem).
Levantou-se
a hipótese de que a causa da “neocorrupção petista” fosse que
“novas classes sociais ascenderam ao poder e, com elas, novos
hábitos de apropriação do espaço e do dinheiro públicos,
administrados com a fúria que somente uma lumpemburguesia associada
a um lumpemproletariado são capazes de demonstrar”.
O sociólogo Francisco de Oliveira (que chegou a ser processado por
calúnia por Delúbio Soares, tesoureiro do PT e um dos principais
envolvidos nos esquemas corruptos), que se integrou à mini cisão do
PT que deu origem ao PSOL, levantou até a hipótese de que o governo
Lula e o PT representassem uma nova fração da burguesia brasileira,
ou uma nova classe social, originada na burocracia sindical e
partidária (PT), a fração responsável pela gestão do fundo
público e dos fundos de pensão privados.
A
cassação de José Dirceu, deputado federal e ministro chefe da Casa
Civil, em virtude do mensalão, eliminou o mais provável candidato
petista à sucessão de Lula. No entanto, finalmente, prevaleceu um
arranjo político geral para recuperar o governo Lula dos escândalos,
arranjo que não obedeceu apenas ao temor de que as investigações
de corrupção também alcançassem os “opositores”, como já
começava a ocorrer com o PSDB (“mensalão mineiro”). Como
constatou Wladimir Pomar, o STF “aceitou a tese do mensalão, sem
qualquer consistência objetiva, pois se houvesse teria que ter
julgado a maior parte da Câmara dos Deputados”.
A
crise do PT, com a prisão do presidente do partido (José Genoíno)
e do articulador político do governo (José Dirceu) não produziu
uma mudança em suas linhas ideológicas, políticas e programáticas:
a quebra do PT não propiciou uma ruptura, mas uma continuidade. A
“normalização” do PT contra as “tendências de esquerda”,
iniciada no V Encontro Nacional (de 1987), e continuada do I
Congresso Nacional (de 1991), preparara o PT para ser um “partido
de governo”. Com o processo judicial do mensalão, os executores da
caçada à esquerda partidária da década de 1990 foram, como
aconteceu outrora (de modo muito mais violento, claro) com os
executores dos Processos de Moscou, fritados e postos à margem.
A
queda de José Dirceu foi bem mais do que a marginalização de um
homem do aparelho partidário corrompido, pois ele fora o principal
formulador estratégico da perspectiva política do PT/governo:
“Dirceu acreditava que o empenho do PT na defesa dos interesses
burgueses conquistaria o apoio do empresariado para as ‘nossas
propostas de reformas estruturais’. A burguesia, antes apontada
como inimigo de classe, sócia do imperialismo e beneficiária do
subdesenvolvimento, agora era vista como aliada estratégica para
desenvolver o país. Os termos originais em que fora concebido o
princípio da independência de classe ficavam, assim, abandonados”.
O
arranjo interno ao governo e ao PT incluiu a vitória de Ricardo
Berzoini (candidato da direção partidária) nas eleições internas
do PT; a eleição de Aldo Rebelo (PC do B) à presidência da Câmara
dos Deputados; o enterro melancólico das CPIs (comissões
parlamentares de inquérito) dedicadas a investigar os esquemas de
corrupção; a confirmação da política econômica e de seu
ministro, Antonio Palocci – respaldado pela oposição de direita
–, também acusado de liderar diversos esquemas de corrupção na
cidade da qual fora prefeito, Ribeirão Preto.
Também
o grande capital financeiro internacional meteu a mão na crise
política: “Os problemas enfrentados pelo presidente Lula trazem
perspectivas negativas para o avanço do livre mercado na América
Latina, e para os interesses dos EUA na região”, advertiu The
Wall Street Journal.
O representante do Tesouro dos EUA (John Snow) e o próprio
presidente George W. Bush visitaram Brasil e se pronunciaram
claramente em defesa do governo Lula. O mesmo fizeram os principais
jornais brasileiros.
As
razões disso eram palpáveis. Em dois anos, Lula e seu ministro da
Fazenda Antonio Palocci pagaram R$ 300 bilhões aos credores da
dívida pública (enquanto aplicavam menos de um bilhão para a
reforma agrária, ou cinco bilhões para as universidades públicas),
o que não serviu para reduzir a dívida. O governo Lula reforçou
sua aliança com os especuladores financeiros nacionais e
internacionais. O Itaú anunciou, em meados de 2005, o maior
benefício da história bancária nacional para um semestre: quase
2,5 bilhões de reais; na semana seguinte, o Bradesco bateu o recorde
anunciando lucros superiores a 2,6 bilhões de reais. E os
industriais? Vale do Rio Doce (CVRD), principal empresa privada,
anunciou, para o mesmo semestre, lucros de... 5,1 bilhões de reais.
Petrobras, “estatal” controlada pela Bolsa... 9,9 bilhões de
reais.
A
dívida contraída pelo governo com a emissão de títulos públicos
cresceu R$ 470 bilhões no primeiro mandato de Lula, chegando a R$
1,094 trilhão no final de 2006. O aumento de 75% se explica pelos
elevados juros praticados no país, e pela estratégia de substituir
o endividamento externo por dívida interna. Em 2005, os encargos da
dívida somaram R$ 140,9 bilhões; em 2006, a carga de juros que
incidiu sobre os títulos públicos em circulação no mercado foi de
R$ 142 bilhões, 17 vezes mais do que o valor destinado aos
beneficiários do Programa Bolsa Família.
Entre
o Capital e a Pobreza
Na
campanha para a nova eleição presidencial, contra as cifras que
evidenciavam uma piora na situação econômica do Brasil no período
2003-2006, o governo Lula deu a conhecer um balanço econômico que
lhe era, ao contrário, claramente favorável. Certamente, alguns
itens (como “transferência de renda”) foram apresentados de modo
demasiadamente geral como para serem analisados. E outros índices
(como o aumento da carga tributária, principalmente sobre os
salários) foram simplesmente ignorados. O essencial é que o quadro
não apresentou uma diferença de concepção de política econômica
e social em relação aos governos precedentes, mas uma diferença de
resultados. As cifras relativas à queda percentual da dívida
líquida do setor público ocultavam seu aumento absoluto. Os índices
selecionados não apontavam uma quebra de tendência, mas a atenuação
de algumas tendências destrutivas da economia e do trabalho que
tinham se acentuado muito durante o governo FHC.
A
renúncia fiscal do Estado em benefício dos capitalistas cresceu 12%
em 2005, alcançando um recorde histórico de 27 bilhões de reais.
Mas as crises políticas deixaram suas marcas eleitorais: em final de
2006, Lula não repetiu o feito de FHC (vencer a reeleição já no
primeiro turno) em que pese a oposição ter lhe oposto um candidato
“boi de piranha” (Geraldo Alckmin, que conseguiu a façanha de
ter menos votos no segundo turno do que no primeiro). Lula conseguiu
uma recuperação “miraculosa” do seu fracasso no primeiro turno,
obtendo no segundo turno mais de 60% dos votos válidos emitidos
contra 39% de Alckmin, uma diferença de cerca de 20 milhões de
votos. No Nordeste, Lula obteve mais de 80% dos votos em alguns
estados. Um importante jornal dos EUA informou que “a reeleição
de Lula representa boas novas para Washington”.
Tornou-se
lugar comum afirmar que os programas sociais “focalizados” do
Brasil foram, especialmente no Norte-Nordeste, a garantia da base
eleitoral que permitiu a Lula vencer com folga o segundo turno das
eleições de 2006, abrindo-lhe o caminho para um segundo mandato
(2007-2010).
No ano imediato anterior à reeleição de Lula, o índice de pobreza
do país caiu de 30,5% para 26,9%, uma redução de 3,5% (ou 6,5
milhões de pessoas), o menor índice desde 1997.
O ministro do Desenvolvimento Patrus Ananias declarou a intenção do
governo Lula de aumentar a faixa etária do Programa Bolsa Família:
o presidente encaminhou o projeto de lei a respeito para o Congresso
Nacional, onde não foi votado. No final de 2007, enviou Medida
Provisória para garantir a expansão do benefício para jovens de 16
e 17 anos.
Segundo
as interpretações mais comuns, os mais pobres, basicamente, teriam
reconduzido Lula à presidência da República: apenas 11% de seus
eleitores ganhavam mais de cinco salários mínimos por mês. Dos
cidadãos que recebiam até dois salários mínimos, 56 % votaram
nele. Desse contingente, em 1989 só 37 % haviam dado seu voto ao
candidato do PT. Em 2006, apenas 6% dos eleitores de Lula tinham
curso superior. Em 1989 eles somavam 11%, o mesmo índice dos que
haviam atingido só a quarta série do ensino fundamental. Agora,
estes somavam 35%. Subjazia a ideia de que a manipulação, econômica
e política, de uma massa “excluída” através de programas
sociais focalizados, era suficiente para garantir a estabilidade
política do governo.
As
coisas não eram assim tão simples. A estabilidade do governo, em
que pesem as repetidas crises políticas, deveu-se mais a razões
macroeconômicas. O crescimento do PIB, bem longe de espetacular, foi
maior do que se acreditava: pelos dados revistos do IBGE, no primeiro
governo Lula, o crescimento foi de 3,3% ao ano (ao invés dos 2,6%
a.a da série de dados original), um ponto percentual superior ao
governo de FHC. Em 2006, o PIB cresceu 3,7%. Parte desse desempenho
foi estimulado pelo notável crescimento das exportações, que quase
duplicaram no período, passando de US$ 73 bilhões para US$ 137,5
bilhões.
Motivado
pelo aquecimento da demanda mundial, esse boom
exportador teve importantes efeitos eleitorais nas eleições
presidenciais de 2006. Fora a presidência do governo federal, no
entanto, o PT só controlava cinco dos 23 estados de Brasil, sendo
uma minoria pequena no Senado. E a esquerda do PT, que na década de
1990 chegara a ter maioria no partido e em sua direção, teve forte
redução de sua representação parlamentar na segunda eleição de
Lula, com suas bancadas reduzidas para menos da metade; além disso,
muitos dos petistas eleitos estavam envolvidos com os escândalos do
mensalão. Houve também o apoio explícito do MST à reeleição, um
instituto que fora criado por FHC, mediante subornos parlamentares,
em 1998.
Lula
foi mais votado nos municípios menos “desenvolvidos” do Brasil.
A análise desses dados sugeria que sua votação estivesse
inversamente relacionada com a renda per capita do município e
diretamente com a taxa de mortalidade infantil, analfabetismo e
desigualdade. Essas características estavam presentes nos municípios
potencialmente mais favorecidos pelo PBF, mas não havia senão uma
fraca evidência do impacto positivo do programa na eleição. Mais
convincente era a hipótese de que os ganhos de bem-estar dos mais
pobres fossem os responsáveis pela reeleição de Lula.
Tomando-se
a variação dos índices de preço, era notável a diferença entre
eles de acordo com as faixas de rendas consideradas. Observando o
período entre a posse de Lula, em janeiro de 2003, e as eleições
ocorridas em 2006, o índice de Preços ao Consumidor Ampliado
(IPCA), que considera as rendas das famílias de até 40 salários
mínimos, aumentou 24%. No mesmo intervalo, o preço da cesta básica
calculado pelo Dieese teve aumentos bem menores: nas capitais do Rio
Grande do Sul e de São Paulo esse indicador teve uma elevação de
8,5% e 10,4%. Em Recife e Fortaleza, a cesta básica teve uma
variação nesse período de 4% e 3% (no segundo turno de 2006, Lula
recebeu, em Pernambuco, 82% dos votos, e no Ceará, 75%).
Segundo
os analistas citados, teve mais peso no eleitor brasileiro a
estabilização dos preços: os eleitores optaram por votar no
candidato que lhes pareceu mais comprometido com sua continuação.
As mudanças que amenizavam a pobreza já estavam em curso quando
Lula chegou ao poder, e foram ampliadas graças à conjuntura
favorável da economia mundial. O IPEA (Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas), porém, afirmou que “existem evidências de
que a desigualdade de renda continuou caindo ao longo de 2005 e a
expectativa é que possamos ter pela frente uma quebra recorde em
termos de redução da desigualdade. A renda média dos pobres
aumenta proporcionalmente mais do que a dos ricos”.
Isso
explicaria a popularidade do governo Lula: “A queda da desigualdade
é suficiente para que os mais pobres percebam um nível de
desenvolvimento no país e um aquecimento da economia que outros
grupos de renda não estão percebendo”. Analisando o comportamento
da curva de redução da desigualdade no ano de 2004, o IPEA observou
que 75% do aumento da renda dos 20% mais pobres resultou da
diminuição do grau de desigualdade: “O tão celebrado crescimento
econômico (de 2004) foi responsável por menos de 1/3 da queda
observada na extrema pobreza e, portanto, para os pobres, a redução
no grau de desigualdade foi três vezes mais importante”.
Mas
também “do outro lado” havia percepções otimistas, e por
razões muito boas. O faturamento real (descontada a inflação) das
empresas brasileiras cresceu 41% de 2000 para 2007. Uma consultoria
divulgou um levantamento sobre o desempenho das 257 companhias que
faziam parte da Bolsa de São Paulo desde o início do governo Lula
(2003). O lucro total das empresas dobrara do início do governo Lula
até o final de 2007, passando de R$ 61,6 bilhões para R$ 123,7
bilhões (um aumento de 100,76%). O resultado de 2007 foi o melhor de
todo o período Lula. O crescimento dos ganhos das companhias foi de
20,16% em relação aos R$ 102,9 bilhões de 2006. A Petrobras e a
Vale do Rio Doce juntas lucraram R$ 41,5 bilhões, o que correspondia
a metade da soma dos ganhos das outras 255 empresas listadas. Sem
contar essas duas companhias, o lucro das demais somou R$ 82,2
bilhões em 2007, com alta de 139,64% sobre os R$ 34,3 bilhões
registrados em 2003.
O
capital financeiro foi o outro grande beneficiário da política
econômica. Os bancos lideraram a lista, em termos de lucratividade,
em todos os cinco anos analisados. O lucro total do setor passou de
R$ 12,7 bilhões em 2003 para R$ 28,7 bilhões em 2006, um aumento de
225%. As empresas de energia elétrica tiveram o segundo maior lucro
em 2007, de R$ 14,5 bilhões, uma alta de 414% em relação a 2003.
Em 2007, finalmente, o setor bancário teve um lucro de R$ 45,4
bilhões, batendo todos os recordes precedentes. Enquanto isso, os
gastos com saúde e educação, como vimos, embora crescessem um
pouco em termos absolutos, decresceram em termos relativos.
O
governo federal também formalizou o pagamento antecipado de US$ 15,5
bilhões ao FMI. Lula, discursando para uma plateia de militares
anunciou que "não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo com
o FMI porque não precisávamos mais do FMI. E tomamos a decisão de
devolver um dinheiro sobre o qual estávamos pagando juros, que
custava mais caro para nós do que o juro que a gente recebia dos
nossos depósitos, das nossas reservas no exterior". E
continuou: “O Brasil, hoje, está consolidado com as suas reservas
internacionais, está numa situação privilegiada de reservas".
O pagamento antecipado de parte da dívida externa do Brasil
somava-se à maior taxa de juros real do mundo, com superávit
primário recorde de 4,97% do PIB e superávit comercial de US$ 44
bilhões da balança comercial em 2005. Nessas condições favoráveis
para os rentistas financeiros, o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) de Lula foi uma clonagem do programa “Avança
Brasil”, do governo FHC. Na forma, no conteúdo e até na lista dos
projetos. O Avança Brasil fora um grande fracasso, mesmo no vácuo
de uma cavalar desvalorização cambial. E o pagamento do serviço da
dívida pública mais que dobrou entre 1995 e 2005: como porcentagem
do orçamento da União, esses gastos saltaram de 18,75% em 1995,
primeiro ano do governo de FHC, para 42,45% em 2005, terceiro ano do
governo Lula. Em meio a termos como "prorrogação",
"reativação" e "ampliação", a política
industrial do governo recauchutava programas e benefícios criados
nos últimos quatro anos em sucessivos pacotes de desoneração
tributária.
Enquanto
isso, os gastos com previdência e assistência social, que
correspondiam a 34,05% do orçamento em 1995, caíram para 31,06 % em
2005. Os “outros gastos” do orçamento, saúde, saneamento,
educação, transportes, cultura, que correspondiam a 47,20% em 1995,
caíram para 26,49% em 2005, incluindo os subsídios ao setor
privado. O orçamento do Ministério da Educação para o segundo ano
de mandato de Lula aumentou em 23% o dinheiro destinado a financiar
estudantes de universidades privadas. As verbas do Fies passam de R$
673,8 milhões para R$ 829,2 milhões. A ampliação do financiamento
para estudantes em instituições privadas antecipou um dos temas da
reforma do ensino superior.
A
política geral não provocou uma inflexão na tendência histórica
de aumento da taxa de exploração do trabalho, considerando tanto o
salário direto quanto o indireto (saúde, previdência e educação):
a remuneração do trabalho tinha um peso na renda nacional, em 2008,
de 39,1%; em inícios da década de 1980, ela superava 50%. As
condições criadas, de retrocesso da pobreza mais acentuada, se
encontravam vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura
prevalecente até meados de 2008, sem mudanças importantes na
produção e na distribuição de renda. A constituição e uma
população cuja sobrevivência dependia de programas de ajuda social
governamental, não incorporados à estrutura institucional do país,
se configurava como um paliativo conjuntural, dependente de fatores
principalmente externos.
Com
a política econômica voltada a transformar de modo crescente o país
numa plataforma de exportações, para obter os saldos comerciais que
permitissem continuar rolando as dívidas, definiram-se "circuitos
espaciais de produção" que, por meio de um uso monopólico do
território, estabeleceram uma hierarquia territorial. Essa crescente
concentração econômica dos circuitos fez com que eles se
comportassem como fragmentos autônomos em relação ao resto do
território. Os lugares que ficam como resíduos desse processo não
contam na divisão territorial do trabalho. Nesse contexto, uma
disputa entre "fragmentos" seria sempre uma disputa
desigual. Os primeiros, com sua parcela de produção ampliada na
escala internacional, ficam fortalecidos; os segundos, com sua área
de ação localmente delimitada, permanecem fragilizados: o processo,
em vez de fortalecer a unidade do território nacional, estimula sua
fragmentação e fragilidade.
O
esgarçamento econômico e político conclui na fragmentação
geográfica que, pela dinâmica do capital, se desdobra na
fragmentação urbana, derivada do desemprego e do confronto brutal
do capital com o trabalho. A divisão social, sempre existente nas
concentrações urbanas, se transformou, no Brasil, no confronto
crescente entre duas cidades, a “protegida” (que fez nascer e se
desenvolver uma monumental indústria da segurança privada, um
negócio capitalista situado à beira do crime, e que dele se
alimenta) e a favelada-precária, submetida a um estado de exceção
policial permanente. A repressão policial é exercida principalmente
pela Polícia Militar, instituição criada durante a ditadura
militar, com fórum judicial próprio, isto é, situado fora de
qualquer controle judiciário civil. À sua sombra, floresceram as
“milícias” privadas, verdadeiro governo independente nas regiões
mais pobres das grandes cidades. A acumulação de capital que teria
situado o Brasil à beira do “Primeiro Mundo”, produziu uma
decomposição social sem precedentes, com dois filhos legítimos: a
expansão espetacular do consumo de drogas (em todas as classes
sociais) e o “crime organizado” (PCC, Comando Vermelho e muitos
outros), expressões, não de uma revolta social, mas de uma
indústria capitalista (a das drogas, principalmente) situada fora da
legalidade comercial.
Os
canais de lavagem de dinheiro transformam esse processo em
“crescimento do PIB”. A barbárie (sem aspas) virou o cotidiano
do Brasil urbano e “moderno”. Entre jovens de 15 a 24 anos, o
desemprego pulou de 35% para 40% a partir de 2001 e ficou por aí
desde então. Alguma surpresa com a explosão da criminalidade entre
os jovens nessa faixa etária? Mais da metade dos trabalhadores
brasileiros não tinha emprego formal (51,2% em 2004). O governo Lula
melhorou a inspeção do trabalho, reduzindo significativamente esse
percentual, mas os dados gerais da criminalidade, incluindo a elevada
taxa de homicídios (das mais altas do mundo) permaneceram
basicamente inalterados. Processo geral em toda a América Latina,
que possui 43 das 50 cidades mais violentas do planeta.
Lula
II
Logo
de cara, no segundo mandato de Lula, a “segunda etapa” da reforma
da previdência propôs um programa de Renda Básica do Idoso, em
substituição da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (de
dezembro de 1993) que estabeleceu, em seu artigo primeiro: "A
assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é
política de Seguridade Social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de
ações de iniciativas públicas e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas".
A lei vinha sendo gradativamente substituída pelo “programa”.
Mas este recurso começava a mostrar seus limites.
No
plano externo, a Unasul apareceu como um projeto dos interesses do
empresariado brasileiro para “integrar” uma indústria militar e
civil regional sob seu controle, e para impulsionar gastos em
infraestrutura para suas empresas. Mas pôs o Brasil no limiar da
ruptura diplomática com Equador, devido às violações trabalhistas
e ambientais da Odebrecht no país (o BNDES respaldou financeiramente
a obra com empréstimo de US$ 243 milhões, que o Equador foi
obrigado a quitar). Evo Morales nacionalizou o consorcio petroleiro
Chaco, do qual fazia parte a empresa argentina Bridas, devido à
negativa daquele a aceitar os termos das nacionalizações
bolivianas. As bandeiras “integracionistas” se transformaram
crescentemente em ficção, em face dos conflitos regionais que se
acumularam, expressando a defesa dos diversos (e contraditórios)
interesses empresariais de cada país.
No
país, “modernidade” e pobreza, avanço técnico e fragmentação
social, latifúndio improdutivo e mercado de futuros da soja se
fortaleceram reciprocamente em um paradoxo aparentemente sem fim,
expressão do desenvolvimento desigual e combinado das forças
produtivas nacionais. Com a "guerra fiscal" entre os
estados, destinada a criar melhores condições para os investimentos
(estrangeiros, principalmente), originou-se um caos impositivo que
questionou o próprio pacto federativo. A guerra fiscal, por outro
lado, é paga pela população trabalhadora e pobre com cortes
crescentes nos gastos sociais e no orçamento público em geral
(saúde, educação, transporte, etc.), produto das isenções
impositivas (“renúncia fiscal”) oferecida competitivamente (via
decretos) pelos estados ao grande capital (a desoneração fiscal em
2007 chegou a R$ 5,25 bilhões) que foi obtendo lucros cada vez
maiores no Brasil, especialmente no setor financeiro, cujos
benefícios se situaram entre os mais altos do planeta (o lucro médio
dos bancos no Brasil é de 26% ao ano, enquanto nos EUA varia entre
10% e 15%).
O
segundo mandato de Lula, por outro lado, foi apanhado pela nova fase
da crise capitalista mundial, a partir de 2008. Mundialmente, a
primeira metade da década inicial do novo século seria lembrada
como a época em que as “inovações financeiras” superaram a
capacidade de avaliação de riscos tanto dos bancos como das
agências reguladoras de crédito. O caso do Citigroup foi
emblemático: o banco sempre esteve sob a fiscalização do Federal
Reserve,
e seu quase colapso indica que não apenas a regulamentação vigente
foi ineficaz como também que o governo dos EUA, mesmo depois de
deflagrada a crise, subestimou sua severidade. O Citigroup não
esteve sozinho entre as instituições financeiras que se tornaram
incapazes de compreender os riscos que estavam assumindo. À medida
que os ativos financeiros se tornaram mais e mais complexos, e cada
vez mais difíceis de serem avaliados, os investidores passaram a ser
garantidos pelo fato de que tanto as agências internacionais de
avaliação de crédito como os próprios agentes reguladores
aceitavam como válidos os complexos modelos matemáticos usados
pelos criadores dos novos produtos financeiros, que "provavam"
que os riscos eram muito menores do que veio a se verificar na
realidade.
Contrariando
a tese do “desacoplamento” (ou a da “marolinha”, exposta pelo
próprio Lula), a crise mundial bateu com força na América Latina e
no Brasil. Durante o período 2003-2007, América Latina recebera um
volume recorde de investimentos estrangeiros diretos, superior a US$
300 bilhões. Suas empresas lançaram-se a outros mercados comprando
importantes ativos. O PIB da região cresceu numa média de 5% anual
entre 2003 e 2008, com um incremento médio superior a 3% no produto
bruto per capita.
Um
fator muito alardeado foi a redução drástica das dívidas
denominadas em dólares. Isso ocultou a natureza real do processo
econômico, embutida na valorização monetária propiciada pela
“estabilização”. A dívida externa foi “zerada”, a partir
de que as reservas internacionais do país – o total de moeda
estrangeira conversível – superaram o montante da dívida externa,
pública e privada, o que criou a ilusão da superação da
dependência financeira externa. Mas o endividamento assumiu outras
características. A dívida real, passível de ser saldada em moeda
conversível, devia ser avaliada em conjunto com a situação da
dívida interna em títulos públicos, a dívida mobiliária federal,
por ser viável a troca de títulos da dívida externa por papéis da
dívida pública. Um título público brasileiro, por exemplo, com
vencimento em 2045, oferecia 7,5% de interesse por cima da inflação,
o mesmo título do Japão pagava somente 1%.
A
crise mundial estava potencialmente presente no Brasil desde o seu
início nos EUA, em agosto de 2007. O crescimento da Bolsa de Valores
foi alimentado, no Brasil, por bancos locais que recorreram à
liquidez internacional, ou seja, ao endividamento. Em apenas cinco
dias de 2008, as empresas brasileiras cotadas em Bolsa de Valores
perderam 227 milhões de dólares de seu valor. A repentina
desvalorização da cotação das empresas era o primeiro sinal da
crise. Houve divulgação de perdas consideráveis da Aracruz
Celulose, do grupo Votorantim, da Sadia. No terceiro trimestre
daquele ano, a crise do subprime
dos EUA virou abertamente uma crise financeira internacional de
grandes proporções.
Assim,
depois de um período de ilusões no “desacople” (decoupling)
da economia latino-americana da crise econômica mundial, América
Latina começou a sentir diretamente os efeitos dessa crise, em
primeiro lugar pela redução de suas exportações, que reduziram
drasticamente os saldos favoráveis da balança comercial de suas
principais economias, e também pelas restrições de crédito,
vinculadas ao credit
crunch
internacional. Em 2008, houve ainda uma forte expansão: Argentina
(7%); Brasil (5,2%); Chile (3,2%); Equador (6,52%); México (1,3%);
Peru (9,8%), Venezuela (3,2%), tiveram desempenho positivo. Mas, no
primeiro trimestre de 2009, na América Latina toda, o PIB caiu 3%,
com destaque para a brutal queda do México: 9,31%. A recessão
começou “oficialmente” no quarto trimestre de 2008. Ainda em
dezembro de 2008, a CEPAL previa para 2009 um crescimento de 1,9%,
mas, em abril de 2009 já estimava uma contração de -0,3% (em junho
elevou-a para -1,7%). Durante o quarto trimestre de 2008, México,
Brasil, Argentina e Chile registraram quedas anualizadas do PIB de
-10,3%, -13,6%, -8.3%, e -1,2%, respectivamente. No primeiro
trimestre de 2009, México registrou uma queda anualizada sem
precedentes, -21.5%.
A
queda do emprego no primeiro trimestre de 2009 atingiu um milhão de
vagas em toda a América Latina, calculando-se uma perda total de até
quatro milhões até o final de 2009. O México sofreu especialmente,
embora com uma taxa de desemprego ainda baixa pelos padrões
regionais (mas em crescimento de 4,9% para 6,1%), sobretudo nos
setores que “puxaram” seu crescimento no período precedente,
especialmente o setor automotivo, que empregava quase 600 mil
trabalhadores. As exportações mexicanas de veículos caíram 57% já
em 2008, a GM de Guanajuato deixou em paro técnico 10 mil
funcionários, e 6.600 em outras três fábricas. Volkswagen demitiu
900 trabalhadores, Delphi (fabricante de autopartes), 1.700. Em abril
de 2009, o governo mexicano recebeu do FMI uma linha de crédito
preventivo de US$ 47 bilhões para socorrer as empresas (outro país
latino-americano que usou essa linha foi a Colômbia, US$ 10,5
bilhões, mormente usados para gastos militares e para o combate
contra a guerrilha).
No
Brasil, o efeito imediato da crise foi a baixa das cotações das
ações, provocada pela venda maciça por parte de especuladores
estrangeiros, que se atropelaram para repatriar seus capitais a fim
de cobrir suas perdas nos países de origem. Em razão disso, ocorreu
também uma súbita e expressiva alta do dólar. Posteriormente,
grandes empresas brasileiras exportadoras sentiram o baque da falta
de crédito no mercado mundial para concretizar seus negócios com
parceiros estrangeiros. Empresas como Embraer, com seus faturamentos
altamente dependentes de vendas ao exterior, tiveram que cortar
postos de trabalho e reduzir drasticamente o ritmo de produção.
Grandes empresas siderúrgicas no Brasil também desligaram alguns
fornos. Empresas menores fornecedoras desses grandes conglomerados
também foram atingidas. No mercado interbancário, houve uma
paralisação dos empréstimos normalmente concedidos pelos grandes
bancos aos menores.
Num
primeiro momento, o Banco Central do Brasil decidiu isentar os
grandes bancos de uma parte do depósito compulsório, que deveria
ser destinada a empréstimos aos bancos menores. Mas, devido ao clima
de pânico que se instaurou nos mercados financeiros, a medida não
se revelou suficiente: os grandes bancos continuavam não concedendo
empréstimos. Assim, o Banco Central decidiu adquirir as carteiras de
crédito de que os bancos pequenos desejassem se desfazer, desde que
oferecessem garantias. Houve pressão ainda para que os bancos
estatais comprassem bancos menores em dificuldades. Assim, o Banco do
Brasil comprou 49% das ações do banco Votorantim, injetando
liquidez, mas não ficando com o controle acionário da instituição.
Crise
Brasileira e Crise Latino-Americana
Os
dados da conjuntura latino-americana começaram, assim, a mudar com a
crise econômica mundial. A crise possuía mecanismos diretos de
transmissão, vinculados à contração da demanda: o comércio
externo e as matérias-primas. Segundo a CEPAL, os termos de troca da
região caíram 15% durante 2009. Os preços dos produtos primários
despencaram com a crise, depois de uma alta especulativa das
commodities em 2008. Em fevereiro de 2009, os preços tinham sofrido
queda respeito ao pico da alta, nas proporções que seguem: petróleo
51%, alimentos 18%, arroz 50,6%, milho 47,9%, trigo 41,9%, metais
49%, cobre 37,9%. As quedas de remessas de migrantes afetaram,
sobretudo, México, Bolívia, Equador, e quase toda América Central
e o Caribe (estas últimas, além disso, sofriam com a acentuada
queda de ingressos pelo turismo).
As
contas nacionais paulatinamente se ressentiram de arrecadações
menores. E a situação do mercado mundial consentia cada vez menos
uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de
remessas, aplicações e investimentos diretos entraram em queda,
enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em
2009 foram dominadas pelos países da OCDE (os EUA lançaram mais de
US$ 2 trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE),
deixando pouco espaço para os “emergentes”. A dependência
financeira da região era a sua grande vulnerabilidade, somada ao
escasso desenvolvimento do mercado interno e à crescente fuga de
capitais, vinculada aos mecanismos generalizados de “desalavancagem”
e de aversão ao risco, que provocaram uma fuga em direção dos
ativos e países “mais seguros”. Nos anos 1990, considerara-se
que a forte internacionalização do sistema financeiro era positiva
para fugir das crises: a partir de 2008, verificou-se o contrário.
José
Serra distinguiu a crise latino-americana da
“europeu-norte-americana” pelo fato de que “na América Latina
em geral, assim como na Ásia, o contágio veio dos subprodutos da
crise, principalmente a retração brusca das finanças e do
comércio. Não houve colapso de instituições financeiras
importantes. As únicas exceções mais sérias foram as perdas em
derivativos no México - US$ 4 bilhões no último trimestre de 2008
- e no Brasil - estimadas em US$ 25 bilhões. Houve, sim, uma
acentuada redução na oferta de crédito às atividades produtivas,
em decorrência da perda de linhas de crédito estrangeiras”.
Chile e Peru eram mais vulneráveis à crise do que o Brasil, segundo
Serra, devido à sua maior dependência comercial, mas adotaram
rápidos pacotes anticíclicos de grande envergadura, coisa que o
Brasil, segundo Serra, não fez. Mas ainda era cedo para dizer que na
América Latina não haveria colapso financeiro, e que a própria
crise estava encerrada mundialmente. O problema do “canal de
contágio” da crise é subordinado, derivado, diante de uma crise
de natureza sistêmica e mundial. Os problemas estruturais
(históricos) da economia latino-americana, que a crise, como uma
espécie de catarse, pôs em evidência, voltavam a se evidenciar.
O
governo brasileiro pensou poder “navegar” a crise graças aos
recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros
exportados em 2008, de 24,5 bilhões produzidos) e de biodiesel, que
tinham por destino principal os EUA. Os governos “progressistas”
latino-americanos batalharam, em diversos fóruns internacionais (OMC
especialmente) pela abertura dos mercados dos EUA e da Europa,
fortemente protegidos por barreiras tarifárias e não tarifárias,
para as exportações primárias da América Latina.
Os superávits comerciais começaram a desacelerar, o Brasil começou
a registrar déficits fiscais, e a primeira queda absoluta de
arrecadação desde 2003. Os subsídios do governo brasileiro ao
grande capital, industrial e financeiro, somavam mais de R$ 300
bilhões de “renúncia fiscal”, ameaçando as reservas em
divisas. Isso estabeleceu a perspectiva de uma crise financeira,
adiada pelos investimentos externos, que atingiram US$ 80 bilhões
anuais. Revelava-se que o saldo comercial favorável se apoiava em
fatores conjunturais.
Cotações
favoráveis foram a principal explicação para o desempenho do
comércio exterior brasileiro, com exportações e superávits em
crescimento. "A única razão pela qual o déficit em conta
corrente brasileiro não explodiu são os altos preços das
commodities. Mas esse boom pode não durar para sempre", alertou
o Financial
Times.
“A bicicleta econômica se depara com a trincheira da guerra
cambial", ou seja, com a realidade da crise econômica mundial,
acrescentou. A “bolha”, sua manifestação fenomênica, já
estava presente: “Os consumidores brasileiros parecem estar
sobrecarregados, gastando mais que um quarto de suas rendas para o
pagamento de empréstimos, nível superior ao verificado nos Estados
Unidos no período anterior à crise de 2008”.
Um
fator decisivo foi o crescimento do comércio brasileiro com a China,
que pulou de US$ 760 milhões de dólares, em 1989, e US$ 2 bilhões
em 2000, para US$ 56,8 bilhões, em 2010. A corrente de comércio do
Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15% do total. Além
disso, os investimentos diretos realizados pela China no Brasil, que
somaram 250 milhões de dólares entre 1990 e 2009, elevaram-se até
13,7 bilhões de dólares em 2010, 28% de todos os investimentos
estrangeiros no Brasil. A economia chinesa, porém, não era imune à
crise mundial, e desenhou um movimento de desaceleração. A alta
mundial das commodities, por sua vez, incluía um importante
componente especulativo: os derivativos financeiros passaram a focar
fundamentalmente os mercados de commodities devido ao colapso da
especulação imobiliária, mas em volumes ainda maiores. As
commodities são negociadas nos mercados de futuros, onde cada
produto é vendido dezenas de vezes antes de chegar ao consumidor.
Os
“sucessos” econômicos da última década haviam sido relativos e
precários. Houvera uma expressiva formação de reservas
internacionais pelo Brasil, em decorrência dos saldos comerciais
obtidos pela alta de preços - puxada pelo crescimento da demanda
mundial de commodities - de produtos com forte peso nas exportações,
e também pelo fato da taxa básica de juros brasileira – base da
remuneração dos títulos públicos - ser muito elevada. Isto fez
com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios com
os papéis da dívida pública brasileira: tornou-se excelente
negócio – para grandes investidores – captar recursos no
exterior, a taxas mais baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais
elevadas, na dívida pública interna do país. O governo Lula
isentara os fundos institucionais estrangeiros, que aplicassem
recursos em títulos públicos, do imposto de renda sobre os
rendimentos.
Com
isso, aumentou a entrada de recursos em moeda forte no país, fazendo
com que as reservas crescessem. Mas o custo financeiro era muito
elevado e, no longo prazo, impagável: a remuneração dos credores
dessa dívida era de 12% reais ao ano, uma carga de juros crescente.
A dívida interna em títulos crescia sem parar, inviabilizando o
orçamento público como fonte de recursos para a realização de
investimentos na infraestrutura e nas políticas sociais universais.
Como o real se desvalorizou apenas 2,4% frente ao dólar de setembro
de 2005 até janeiro de 2006, foi garantido ao investidor
estrangeiro, um rendimento de cerca de 10% ao ano, em dólares. E o
governo Lula destinou, por diversas vias, R$ 300 bilhões a bancos e
empresas, utilizando o BNDES e os bancos estatais para recompor a
oferta de crédito na economia. Este dinheiro tinha como origem,
principalmente, recursos dos trabalhadores captados pelo Estado (FAT
e FGTS) e da caderneta de poupança. Na outra ponta, uma onda de
demissões, sobretudo na indústria, varreu o país, do último
trimestre de 2008 até meados de 2009. Muitas empresas que demitiram
em massa, como a Embraer, não só receberam recursos e empréstimos
subsidiados do governo como, depois das demissões, pagaram altos
bônus a seus executivos e ainda remeteram lucros aumentados para
seus acionistas no exterior.
Foram
os países mais desenvolvidos da América Latina os mais afetados
pela crise mundial. A “periferia emergente” do capitalismo
“global” enfrentou, em 2009, pagamentos externos incrementados
por uma dívida principalmente contraída pelas multinacionais,
superando em alguns casos as reservas internacionais. Na Argentina,
em 2008, se registrou uma saída de capitais de US$ 20 bilhões: uma
parte da nova dívida fora contraída para expatriar capitais. Não
era verdade, portanto, que no ciclo econômico 2002-2007 as nações
latino-americanas se haviam transformado em credoras no mercado
mundial: com o aumento da dívida privada externa, se mantiveram como
devedores netos; os superávits comerciais foram a garantia
financeira do endividamento privado. O capital financeiro
internacional apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento
dos preços e dos volumes exportados.
A
crise mundial, assim, penetrou a América Latina devido à sua
fragilidade financeira e comercial, e à sua fraca estrutura
industrial. Os governos da região afirmaram inicialmente que
driblariam a crise com a “solidez” das reservas dos Bancos
Centrais. Mas a queda das Bolsas de Valores regionais, a saída de
capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses
argumentos. Propostas como a da "Declaração de Caracas",
defendendo o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as
Américas) e o Banco do Sul, novas instituições econômicas
reguladas, e um acordo monetário latino-americano para enfrentar a
crise, foram se revelando irrealizáveis. Projetos que não
conseguiram avançar durante o período de crescimento econômico,
ficaram com menos fundamento diante da crise.
Os
projetos unificadores ou “integradores” latino-americanos também
entraram em crise. Gasoduto do Sul, Banco do Sul, entrada de
Venezuela ao Mercosul, não saíram do papel. A moeda comum
Brasil-Argentina seria só um recurso contábil para compensar saldos
de pagamentos externos. Acentuou-se a cooperação entre Venezuela e
Colômbia, justamente quando a segunda estava prestes a realizar um
tratado de livre comércio com os EUA. Brasil, por sua vez, reforçou
sua aliança financeira com os EUA, em oposição à decisão
argentina e chilena de nacionalizar os fundos de pensão privados.
Brasil reduziu o consumo e o preço do gás boliviano. Na
América Latina, Venezuela e Bolívia, entre outras nações, quando
favorecidas pela conjuntura favorável do mercado mundial, na
primeira década do século XXI, impulsionaram importantes campanhas
de saúde e de educação (que nunca teriam sido feitas pelas velhas
oligarquias desses países), mas não avançaram em sentar as bases
econômicas da autonomia nacional, ou seja, para sustentar no longo
prazo os planos populares e os programas sociais.
O
grau da exposição do Brasil à crise mundial se acentuou pela
acelerada internacionalização, comercial e financeira, de sua
economia na última década. A corrente de comércio (importações +
exportações) que em 2000 situava-se em R$ 100 bilhões, alcançou
R$ 383 bilhões em 2010, se encaminhando para meio trilhão. O “Fundo
Soberano” brasileiro perdeu mais de R$ 2 bilhões em 2010 devido à
queda das Bolsas. As remessas de lucros ao exterior, por sua vez,
superaram US$ 34 bilhões (74% do total correspondentes a empresas
estrangeiras que fizeram investimentos diretos no Brasil).
A
dívida pública brasileira acelerou sua trajetória ascendente. O
déficit em conta corrente do país superou US$ 30 bilhões. A
manutenção das reservas vinculou-se ao saldo positivo da conta
capital. O fator que manteve os recordes do fluxo de capitais
externos ao país foram as elevadas taxas de juros, assim como os
recordes nas exportações e no superávit na balança comercial,
enquanto os investimentos externos (de caráter especulativo,
chamados pelos economistas de “aplicação disfarçada em renda
fixa”) ultrapassaram US$ 70 bilhões.
A
situação das contas nacionais se deteriorou: Brasil gastava, em
média, mais de R$ 200 bilhões anuais (entre 40% e 50% do orçamento
federal) em juros e amortização da dívida pública, que continuou
crescendo, ultrapassando R$ 3 trilhões (R$ 2,4 trilhões a dívida
interna; mais de R$ 600 bilhões a dívida externa), ou seja, quase
um PIB. Nos quatro mandatos somados de Fernando Henrique Cardoso e
Lula (1995-2010) os gastos com a dívida somaram mais de R$ 6,8
trilhões, dois PIBs.
No
Brasil, entre 2001 e 2012, o total de benefícios diretos de
Seguridade Social (Previdência Urbana e Rural, Benefício de
Prestação Continuada, Seguro Desemprego) passou de 24 a 37 milhões
de pessoas, 2/3 dos quais equivalentes ao salário mínimo, cuja
valorização elevou a renda desse contingente em um percentual de
70% acima da inflação. Entre 2004 e 2010, o gasto social federal
per capita passou de R$ 2.100 para R$ 3.325 anuais, com um aumento
real de quase 60%. Em valores absolutos, passou de R$ 375 bilhões
para R$ 638 bilhões; como percentual do PIB, passou de 13,2% para
15,5%.
Essas
não foram, em essência, políticas socialmente redistributivas, mas
benefícios oriundos de um percentual do crescimento econômico e do
consequente aumento da arrecadação fiscal. O governo Chávez,
analogamente, se apoiara numa receita suposta a partir de cotações
de petróleo de mais de US$ 100 por barril. Os países produtores, no
entanto, concluíram dilapidando a renda extraordinária
(diferencial) da produção mineira e petroleira, na crença ilusória
de que os preços internacionais não cairiam nunca. A nacionalização
parcial, na Bolívia, das três principais jazidas petrolíferas, não
só preservou os “direitos adquiridos” pelos grupos
multinacionais que as detinham,
também fracassou em manter os investimentos previstos e aumentar a
produção. A queda dos preços dos hidrocarbonetos fez entrar em
crise as nacionalizações parciais, e abriu a via para uma nova
etapa de concessões às multinacionais.
No
entanto, segundo a propagando oficial, o Brasil estava liderando,
através do Mercosul e da Unasul, um processo de integração
continental, chegando até a exercer um papel mundial de integração
comercial, industrial e financeira dos países “periféricos”.
Foi concedido a Lula o prêmio especial de "estadista global",
criado pelo Fórum Econômico Mundial de Davos, por ser um "modelo
de estadista global", que "mostrou um verdadeiro
compromisso com todos os setores da sociedade, mantido com um
crescimento econômico integrador e justiça social". O Brasil
teria um papel inconteste de liderança continental e seria já uma
“potência global” do “Primeiro Mundo”, realizando, de modo
inesperado e oblíquo, o sonho do “Brasil Potência” outrora
acalentado pela ditadura militar. Com Lula, o regime civil brasileiro
cumpriu um quarto de século, pretendendo ter resolvido, pela via
capitalista, os problemas fundamentais da nação: independência
nacional, soberania e desenvolvimento econômicos, questão agrária,
miséria social, democracia política. O Brasil, palco de especulação
financeira internacional, inchara sua capacidade de consumo e, até
certo ponto, de investimento.
A
Reorganização da Classe Operária
A
realidade social era outra. Desde 1995, a produtividade do trabalho
aumentara 14%, enquanto os salários médios se mantiveram no mesmo
patamar. Com o aumento do desemprego e os cortes de custos pelas
empresas, aumentara a pressão sobre os trabalhadores para a
intensificação do ritmo de trabalho e da produtividade, com o
objetivo de recompor a taxa de lucro. Em 2004, os trabalhadores de
empresas privadas fizeram 114 greves, número que em 2008 saltou para
224 (no setor público, no entanto, o número de paralisações
manteve-se praticamente estável, de 185 em 2004 para 184 em 2008).
Essas greves fizeram os trabalhadores experimentarem concretamente o
papel exercido pela burocracia sindical, que utilizou todos os meios
a seu alcance para enfraquecer o movimento, desmobilizá-lo e
obrigá-lo a ceder a propostas rebaixadas da patronal ou do governo.
A sustentação material da burocracia encastelada nessas centrais
era dependente cada vez menos da contribuição voluntária dos
filiados de base, e cada vez mais dos recursos recebidos pelas mais
diversas vias, do capital ou do próprio Estado.
Sua
dependência em relação ao aparelho de Estado se manifesta nos
milhões derivados do Imposto Sindical, de recursos do FAT e de
convênios e contratos celebrados com os mais diversos órgãos do
Estado, e nos postos ocupados em diversos órgãos e conselhos do
Estado. Seus laços diretos com a patronal se estabelecem não só em
sua participação em conselhos do “Sistema S” e pela celebração
de convênios e contratos de todo tipo, mas, também, notadamente no
caso da CUT, pela via do controle dos principais fundos de pensão do
país, sócios de mais de 340 bilhões de reais investidos no mercado
financeiro, na dívida estatal e na propriedade ou no controle
acionário de algumas das maiores empresas do país.
Um
novo sindicalismo combativo começou a se organizar nacionalmente. A
Conlutas (Coordenação Nacional das Lutas, que se organizou como
“Central Sindical e Popular”, CSP) já dirigia ou estava presente
como oposição organizada nos sindicatos de maior importância
estratégica no país. Em 2006, chapas da CSP-Conlutas assumiram
sindicatos estratégicos como os dos Metalúrgicos de Volta Redonda,
Metroviários de São Paulo e parte da representação dos bancários.
E fugiu do controle da direção da CUT a greve que parou os bancos
em seis estados. Mas, assim como na ditadura, os juízes estavam
cassando o direito de greve da classe trabalhadora: inúmeras greves
foram decretadas ilegais, como a greve do INSS, que poderia
desencadear um amplo movimento nacional de todos os servidores
federais.
Anos
de derrotas e desmobilização operária cobravam seu preço. No
Brasil, nos oito anos de governo encabeçado por Lula, praticamente a
totalidade das direções políticas e sindicais da classe operária
e do campo foi integrada ao Estado. Os trabalhadores e as classes
médias viam no “lulismo” um fator de integração, de ascensão
social e de progresso econômico ininterrupto, uma situação que
começou a mudar só em 2009. Além de incorporação de numerosos
dirigentes aos diversos escalões do Estado, a cooptação, como
vimos, baseou-se no fortalecimento dos aparelhos sindicais com base
nas contribuições compulsórias.
A
desmobilização social, com escassas exceções, foi a tônica
dominante nos “anos Lula”. Desde 2009, porém, frente à crise
econômica e às demissões, se produziu uma recuperação das lutas
operárias, inclusive em setores estratégicos. No segundo semestre
de 2009, houve uma série de importantes greves. Grandes categorias,
como metalúrgicos, bancários, petroleiros (estes, pela primeira vez
em greve em 14 anos, em 17 plantas e refinarias), operários da
construção civil e trabalhadores dos Correios, dentre outras,
cruzaram os braços, saíram às ruas em defesa de seus salários e
direitos e tiveram de enfrentar, não apenas a patronal e o Estado,
mas também a burocracia sindical da CUT, da Força Sindical e da
CTB. Nos anos de 2009 e 2010, ocorreram 964 greves no país, segundo
o Dieese. Os números eram os maiores da década.