domingo, 12 de junho de 2016

IMPEACHMENT, CRISE E GOLPE: Parte 2



O BRASIL NO PALCO DA TORMENTA MUNDIAL

Osvaldo Coggiola

Notas na terceira e última parte do texto

Da Bonança à Crise Mundial

O governo de coalizão do PT com representantes da classe capitalista brasileira teve seu apogeu num período de bonança econômica mundial. No período 2002/2007, a espiral da crise econômica mundial da virada do século (evidenciada no calote soberano da Argentina e no afundamento da Bolsa Nasdaq) foi desviada por dois motores interconectados, a expansão do crédito nos EUA e o crescimento industrial da China, que conduziram ao crescimento da economia mundial. Nesse quadro, América Latina viveu cinco anos com altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com superávits. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram uma situação social abaixo da linha da pobreza (estatisticamente) durante esses anos.

Os dois motores da fase de crescimento da primeira década do novo século foram, no entanto, parando, lentamente (China) e convulsivamente (EUA). A nova contração da economia mundial tentava e tenta eliminar a massa mundial de capital excedente que obstrui o processo de acumulação capitalista. O colapso do mercado das hipotecas subprime nos Estados Unidos desatou uma avalanche financeira internacional de quebras e uma contração global do crédito (credit crunch), seguidos por uma ascensão sideral e, depois, por uma dramática queda nos preços do petróleo e das matérias-primas e, sobretudo, por uma baixa e uma recessão sincronizadas da economia mundial.

A dívida pública norte-americana pulara de US$ 3,7 trilhões em 1997, para US$ 3,9 trilhões em 2002, crescendo 5,6%. No final de 2007, a dívida federal dos EUA (9,2 trilhões de dólares) era equivalente a 64,4% do PIB. Depois, em apenas três anos, pulou de US$ 5,8 trilhões em 2008, para US$ 14,3 trilhões em 2011, crescendo 150%, a quase 100% do PIB. A dívida pública alcançava 63% do PIB da Espanha, 76,5% na Inglaterra, 81,7% na França, 93% em Portugal, 114% da Irlanda, 120% da Itália e 152% do Grécia. Os EUA, de fato, se encontravam em situação de default, com uma dívida pública federal equivalente ao PIB; o déficit fiscal do exercício 2011 superou 10% do PIB, aproximadamente dois trilhões de dólares.

Principais credores do Tesouro dos EUA

Grande parte do endividamento, no período de 2003 a 2011, se deveu aos gastos (subsídios ao grande capital) com os efeitos das crises de 2000-2002 e de 2007-2008, somados aos gastos com a invasão do Iraque e do Afeganistão. Nesse período a expansão da dívida estadunidense chegou a 270%, enquanto a expansão do PIB e das receitas foi pífia, mesmo com a aceleração dos gastos militares. 46,5% dos títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA estavam em mãos estrangeiras – bancos centrais e investidores privados.

A inflação podia desvalorizar essa dívida em relação com os preços de outros ativos e operar como uma transferência de valor entre frações do capital. Os principais credores internacionais (China, Japão, Inglaterra, Brasil) poderiam desfazer-se dos bônus e títulos dos EUA em seu poder, ruindo o mercado de capitais norte-americano e o comércio internacional, mas o prejuízo para os mesmos credores seria enorme, pois seria o acelerador explosivo da crise mundial, em condições de sobre endividamento dos principais Estados. O total de títulos dos EUA comprados pelos outros países já chegava a US$ 4,5 trilhões, representando uma parte considerável de sua dívida.

Os países que mantém reservas em dólar compram títulos do Tesouro dos EUA pela sua “segurança”. Do total das reservas cambiais brasileiras, por exemplo, dois terços se compõem das chamadas “reservas estéreis”, que derivam não de um superávit comercial, mas de atividades que levam ao endividamento público: parte das reservas vem de um endividamento com taxa básica de 12,5% ao ano, recebendo 1,9% ao comprar os títulos do Tesouro dos EUA. O impacto dessa diferença para os cofres públicos do Brasil em 2010 foi de R$ 50 bilhões. O país ainda arca com os custos de senhoriagem (lucro derivado do privilégio de emitir moeda, igual à diferença entre o custo dessa emissão e o preço dessa moeda no mercado).

A saída da crise mundial pelo gasto público imporia a estatização crescente da economia. Contra essa tendência, a crise passou a alentar o florescimento do mercado de seguros contra o calote. O retorno dos lucros bancários veio pelo lado dos bancos de investimento (através da chamada inovação financeira) em vez de vir do lado dos bancos comerciais (que fazem empréstimos para a produção e agem mais amplamente). A melhora no mercado de ações e títulos, recuperação dos preços das commodities, e a retomada de fusões corporativas abriram temporariamente novas oportunidades para a especulação. Mas a esperança maior seria que a China viesse ao resgate da economia mundial, puxando o mundo para fora da recessão.

A Desaceleração Chinesa

A causa principal do crescimento da dívida pública dos EUA é a acumulação de juros que se pagam com emissão de dívida nova. A taxa de crescimento da dívida supera a do PIB - passou de 62% a quase 100% do PIB no curso de quatro anos. China, por sua vez, é refém dos saldos comerciais favoráveis. Os principais destinos das exportações chinesas são Europa, Estados Unidos e Japão. Suas exportações tiveram alta de 20,4% em 2011 e atingiram valor recorde em julho desse ano, de US$ 175,13 bilhões. A diferença em relação às importações foi de US$ 31,5 bilhões, um novo recorde (o saldo comercial favorável havia sido de US$ 22,27 bilhões em junho e de US$ 28,7 bilhões em julho de 2010), cifra que inchou ainda mais as gigantescas reservas internacionais da China, de US$ 3,5 trilhões, as maiores do mundo. A depreciação do dólar, no entanto, reduziu o valor dos investimentos financeiros realizados pela China. Maior detentora de títulos norte-americanos, a China entra no arranjo econômico mundial com capitais obtidos com receitas de exportação e, em troca, os EUA entram com seu mercado e com a oferta de títulos públicos.

Mas, já em 2006, no pico de seu crescimento econômico, o premiê chinês Wen Jiabao afirmou que sua economia era "desequilibrada, instável, descoordenada e insustentável". E, depois, passou a sofrer os efeitos da crise mundial, que impactou à China. Janeiro de 2009 mostrou a pior queda nas importações (-41,3% no ano) e nos investimentos estrangeiros diretos (-32,7%) no país, assim como uma queda nas exportações de 17,5%. Apesar de um audacioso plano de estímulo, o crescimento PIB chinês caiu para 6,1% no primeiro trimestre de 2009, a metade dos 13% de 2007 e menor que as cifras do quarto trimestre de 2008. As taxas de crescimento de 12% e 13% haviam acabado.

No nível mais básico, a economia chinesa se estruturou, nas últimas três décadas, para ser alimentada pelas exportações e pelos investimentos estrangeiros. Juntos, continuam sendo a coluna vertebral da economia chinesa. São fortes na época de atividade econômica global, porém um peso morto em época de retração global. Internamente, só cerca de ¼ dos 1,3 bilhões de chineses são realmente economicamente ativos [consumidores], membros da ‘classe média’ ou de estratos superiores. Este é um número que deixa cerca de um bilhão de pessoas no mais profundo sofrimento”, disse a revista britânica de análises estratégicas Stratfor, em abril de 2009.

A queda na demanda de exportações chinesas devida à contração do comércio mundia;, a fuga de capital estrangeiro, devida à bancarrota mundial, e à ausência de um mercado interno capitalista desenvolvido, deixaram China vulnerável às pressões da crise mundial. Uma virada para desenvolver um mercado interno não seria possível sem extrapolar as contradições entre o campo e a cidade, levando a um descontentamento massivo e a levantamentos sociais. O processo de restauração capitalista produziu grandes lucros para o capital estrangeiro e para uma “classe média” local, criando a ideia de uma China que se elevava à hegemonia mundial no século XXI. O processo de restauração capitalista na China, por outro lado, tivera um papel fundamental para os EUA ao financiar seus gigantescos déficits e sustentar a melhora da economia mundial no período 2002-2007.

China - Produto Interno Bruto (PIB) - Taxa de Crescimento Real (%)

O efeito da crise obrigou o regime chinês a lançar seu próprio pacote de estímulos em novembro de 2008, no valor de US$ 600 bilhões, com uma injeção recorde de crédito – 1,2 trilhão de dólares em oito meses – por bancos estatais. Esses novos empréstimos, mais do que o pacote, mantiveram o crescimento chinês. A quantidade de novos empréstimos foi um recorde mundial, equivalente a quase 25% do PIB. Isso parcialmente reverteu o colapso de produção sofrido devido à queda nas exportações (que caíram 22%, também em oito meses).

O problema da China não era só aumentar a produção, diante de um mercado mundial em vias de estreitamento pela concorrência acirrada, mas a demanda interna, dados os baixos salários chineses, problemas agravados pelas rivalidades regionais, o desperdício, a duplicação de projetos e a corrupção. Com um desequilíbrio entre os investimentos (45% do PIB) e consumo (apenas 35% do PIB), os investimentos gerados pelo regime de liberação de crédito foram responsáveis por quase 90% do crescimento do PIB em 2009. Até onde vai o desperdício dos investimentos, incluindo infraestrutura e novos projetos industriais, é geralmente subestimado.73

China, com mais de 7.000 siderúrgicas, o dobro das que tinha em 2002, tinha capacidade de produzir 660 milhões de toneladas de aço anualmente, mas a demanda total para consumo doméstico e exportação era de apenas 462 milhões de toneladas; a capacidade utilizada caiu de 83% para 74%. Quase metade dos novos empréstimos dos bancos chineses foi para canais especulativos, o mercado de ações e o mercado imobiliário. O aumento dos preços das propriedades se deveu amplamente à alta liquidez. O consumo interno chinês é de cerca de US$ 1,5 trilhão, comparado a US$ 22 trilhões somados dos EUA e Europa: para compensar 1% de queda no consumo dos países ocidentais, deveria haver um aumento de 15% do consumo chinês. As políticas chinesas tiveram um escasso efeito sobre a criação de empregos e o crescimento da demanda mundial. É um pequeno segmento, de cerca de 10% da população – moradores afluentes das cidades – que conta pela maior parte do consumo na China.

Permanência da Crise


Ficou claro que a crise mundial não era um episódio cíclico nem um distúrbio conjuntural, e que não afetava somente o setor financeiro, mas toda a economia capitalista, dominada pela superexpansão do capital financeiro, que durante décadas invadiu, interligou e controlou todos os aspectos da vida econômica do mundo. Manifestou-se primeiro na esfera financeira e levou o sistema bancário internacional à crise, em 2007/2008, conduzindo para uma “Grande Recessão” e precipitando ao abismo grandes companhias como a General Motors e outras dos Estados Unidos, Europa e Ásia. Somente as intervenções estatais sem precedentes, resgates e pacotes evitaram que a “Grande Recessão” se convertesse em uma grande depressão. O prognóstico do FMI, em abril de 2009, previa uma retração de 1,3% na economia mundial, derrubando a previsão anterior de 0,5%, realizada em janeiro de 2009. Um ano antes, em 2008, o FMI prognosticava um crescimento de 3,8% do PIB para 2009. Haveria, nos cálculos otimistas, mais 60 milhões de desempregados.

No meio da crise mundial, o FMI calculou que os países ricos gastaram US$ 9,2 trilhões em apoio estatal ao setor financeiro, enquanto as “economias emergentes” gastaram um igualmente impressionante US$ 1,6 trilhão. Os governos dos principais países capitalistas transferiram as perdas do setor financeiro privado para o setor público, nas costas dos que pagavam impostos, basicamente dos trabalhadores assalariados: o chamado "socialismo para os ricos", acompanhado de desemprego, cortes salariais, privatização de empresas e cortes orçamentários.74 A nova etapa da crise consistiu na passagem da quebra financeira, detonada pela crise imobiliária nos Estados Unidos, para uma quebra dos Estados, causada pelos próprios mecanismos capitalistas que procuraram evitar o colapso do sistema financeiro e do mercado mundial.

A emissão monetária gigantesca do Federal Reserve em benefício dos bancos dos EUA foi a base da especulação nas Bolsas de Valores em 2009, e da especulação com a dívida pública nos EUA e no exterior. A emissão de moeda e o crescimento agudo dos déficits fiscal e comercial da maior potência do planeta não resolveram os problemas originais, e colocaram problemas novos: a perspectiva da quebra dos Estados e dos Bancos Centrais. Em 2009, o déficit fiscal dos EUA atingiu US$ 1,4 trilhão, 10% do PIB, seu maior montante percentual desde 1945. A dívida federal em relação ao PIB ultrapassou 100% em 2012 (ela se situava abaixo de 40% em 1980, e abaixo de 60% em 2000).

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) enfatizou em 2009 que “a economia mundial está na mais profunda e sincronizada recessão de nossas vidas, causada por uma crise financeira mundial e aprofundada por um colapso do comércio mundial”. Nos EUA, a taxa de queda da produção industrial se comparava com a da Grande Depressão da década de 1930. No Japão, já caíra tanto quanto nos EUA nos anos 1930. Grã Bretanha e os países da zona do euro entraram em recessão, com retração de 4,2% do PIB em 2009, e uma recessão em 2010, enquanto o desemprego alcançou 10,1% e 11,5%, respectivamente. A economia alemã se retraiu 5,3%, a maior queda da economia alemã, excluindo a devastação posterior à Segunda Guerra e as profundezas da Grande Depressão, quando a economia se retraiu aproximadamente 7,5%. A recessão mundial não expressou mais uma crise de superprodução, mas também o colapso as bases do processo de acumulação capitalista do último período histórico.

Na segunda década do século XXI, a capacidade da China para neutralizar uma recessão nos EUA e na Europa ficou mais limitada do que na crise de 2008, quando o governo chinês lançara um pacote de estímulo que garantiu taxas de crescimento próximas de dois dígitos e beneficiou países exportadores de commodities, como o Brasil. A injeção na economia, por parte das autoridades chinesas, de um pacote de estímulo de quatro bilhões de yuan não se sobrepôs à crise de capacidade ociosa (a capacidade ociosa na siderurgia já era, em 2005, de 120 milhões de toneladas, mais do que a produção anual do Japão, o segundo produtor mundial). Levou à formação de novas bolhas na Bolsa e de especulação imobiliária. Os empréstimos bancários na China passaram de 121% para 150% do PIB em apenas três anos.

Em 2009, o sistema financeiro chinês (estatal) concedeu US$ 1,4 trilhão em empréstimos, o dobro do ano anterior, ameaçando elevar o endividamento do país a níveis insustentáveis. A inflação na casa dos 6% diminuiu a margem de manobra para reduzir juros e adotar políticas de expansão monetária. A injeção de recursos em projetos de infraestrutura foi financiada por um espetacular aumento do crédito, criando um leito de “ativos tóxicos” no sistema financeiro chinês.75 As exigências de uma revalorização da moeda da China (yuan) têm o objetivo de abrir os mercados financeiros chineses e da transformação deste vasto país em uma semicolônia do capital norte-americano, europeu e japonês.

No segundo trimestre de 2010, o PIB chinês ultrapassou o japonês, tornando-se o segundo do mundo. Mas a agricultura continuou a ser a principal fonte de renda para mais de 30% da PEA da China (contra menos de 2% nos EUA, e 6% na Coréia do Sul): os salários operários urbanos (em média de US$ 1.500 anuais, pouco mais US$ 100 mensais) continuaram atraentes para os trabalhadores rurais, com renda ainda menor. Para chegar a uma PEA agrícola equivalente a 10% da PEA total, ponto em que se equilibrariam os salários de ambos os setores, China precisaria criar 150 milhões de empregos urbanos. Com uma taxa de crescimento de 8% anual, isso levaria ainda 30 anos (inclusive com políticas de restrição da natalidade), uma performance incerta diante do retrocesso dos mercados externos e do acirramento da concorrência mundial. Os salários médios na China atingiram a casa dos US$ 400 mensais, perdendo o “privilégio” dos salários miseráveis para Tailândia (US$ 250), Indonésia (US$ 200), Filipinas (pouco mais de US$ 100) e, sobretudo, Vietnã (menos de US$ 100).

Estimular o consumo interno na China é uma das políticas do governo chinês, para reequilibrar a economia. Mas a relação consumo/PIB caiu persistentemente, de 62% em 2000, para 47% em 2010. Os fatores da grande arrancada chinesa no mercado mundial começaram a se esgotar. A sobreprodução (interna e externa) começou a cobrar seu preço: em meados de 2012, o sistema financeiro chinês começou a oferecer os mesmos “produtos” que fizeram explodir, cinco anos antes, a crise na Europa e nos EUA. O Banco Central chinês baixou os juros em julho de 2012, e o governo lançou um novo pacote de estímulos de US$320 bilhões para aumentar o consumo interno.

No segundo trimestre de 2012, China anunciou um crescimento anual de 7,6%, o pior índice desde 2009. China anunciou um acordo comercial com o Mercosul, e acordos energéticos multilaterais (para obter energia da Sibéria, Ásia Central, Irã, Oriente Médio, África e América do Sul), pondo o país cada vez mais no centro da tormenta econômica e política mundial. China respondera à crise mundial com um vasto programa de incentivo ao consumo interno, baseado num plano de investimento em obras públicas, mas também em atitudes como o discreto apoio estatal a greves de trabalhadores. O esforço foi insuficiente. A União Europeia e os EUA cortaram as compras de bens chineses. Em alguns setores muito dependentes das compras externas, como a construção de navios, a atividade caiu 50%.

A recuperação mundial a partir da segunda metade do ano de 2009 repousou no relançamento de uma atividade especulativa enorme que reproduziu o mesmo mecanismo que havia conduzido ao colapso da “bolha” imobiliária de 2007. Uma nova “bolha” surgiu, não para resgatar as vitimas, mas os vitimadores: os bancos e companhias financeiras golpeadas pelo vendaval. A partir de 2008 se inchou um novo endividamento, desta vez às custas das finanças públicas. Seu estouro foi mais rápido que o precedente, decretando a quebra das economias de países e regiões inteiras. O caso mais notório foi da Grécia (mas também da Islândia, Irlanda e, antes, os países bálticos).

A luta pelo mercado mundial ganhou cada vez mais peso, evidenciado na disputa sino-americana pela taxa de cambio do yuan chinês. China pareceu ceder à pressão norte-americana pela revalorização de sua moeda, descolando o yuan do dólar, ao qual estava atrelado. Na verdade, China substituiu o regime de câmbio fixo por outro flotante, em que a taxa de câmbio é ajustada diariamente à uma cesta de moedas, e submetida às decisões do governo, o que não era o que os EUA desejavam, ou seja, uma revalorização explícita da moeda chinesa.

A crise iniciada em 2007/2008 provocara, de início, uma forte onda especulativa sobre os preços das matérias primas (alimentos, petróleo, minerais),76 que fez acreditar que o crescimento dos “países emergentes” (da China em primeiro lugar) seria a grande saída para a crise mundial. A bolha especulativa das matérias primas, porém, estourou logo, provocando a maior queda de preços dessas commodities desde que a sequência desses preços é registrada. O petróleo teve, no meio da crise econômica mundial, sua maior alta em toda a história (chegou a cotar na média US$ 135 o barril) para logo depois sofrer sua maior queda em todos os tempos, caindo para US$ 40 o barril até chegar a US$ 30. O colapso no preço das commodities, especialmente do petróleo e dos metais e minerais, teve efeitos devastadores para os países produtores que planejaram seus orçamentos para receitas muito maiores durante o boom econômico mundial, especialmente durante a bolha provocada pelo crescimento econômico da China.

Dilma I

A crise da sucessão presidencial de Lula se mediu pelo fato deste ter imposto (literalmente) ao PT a candidatura de Dilma Rousseff, apresentando-a como a “herdeira e continuadora” de sua política econômica, em especial do PAC, sem qualquer programa para enfrentar a fraqueza, dependência e fragilidade externa da economia brasileira (a não ser vagas e hipotéticas referências à exploração do petróleo da camada pré-sal), e sem nenhum balanço das políticas de enfrentamento da crise econômica mundial. Tratou-se de uma saída de crise à crise do PT provocada pelo mensalão e a cassação do “sucessor natural” de Lula, José Dirceu: Dilma Rousseff não possuía qualquer trajetória política no partido, que se via assim reduzido a mero instrumento do círculo político imediato de Lula: “No Congresso do PT, o plenário deu poder total ao comando para decidir as alianças que quisesse e intervir qualquer seção estadual que não se alinhasse. Grupos à esquerda dos dirigentes fizeram discursos de crítica, com poucos aplausos”.77

Dilma Rousseff, que não havia participado de nenhuma eleição antes, foi eleita presidente em 2010 como “substituta constitucional” de Lula. Dilma se elegeu em segundo turno em novembro de 2010, embora sem repetir no primeiro turno os percentuais eleitorais das duas vitórias precedentes de Lula: no segundo turno, obteve 56% dos votos, contra 44% de José Serra (PSDB). A Veja fez matéria de capa declarando seu apoio ao novo governo “petista”, incluída uma capa com a foto da presidente e a manchete: “A realidade muda, e nós com ela”... PSDB e DEM, na mesma eleição, passaram a governar estados incluindo 53% da população brasileira.

Brasil: juros básicos anuais

O primeiro governo Dilma aprofundou, em linhas gerais, as políticas do governo Lula. Quase 50% do orçamento federal foi consagrado para pagar a usurária dívida pública. O PIB cresceu menos de 1% anual por oito trimestres consecutivos. Ao recorde da dívida pública federal somou-se a dívida dos estados, em primeiro lugar do Rio Grande do Sul, devendo à União 215% de sua receita líquida, seguido por Minas, São Paulo e Rio (ou seja, os quatro maiores estados do Brasil); a dívida privada de bancos, empresas e famílias; a bolha da propriedade imobiliária (165% de valorização entre 2008 e 2012, contra 25% de inflação). A taxa de câmbio manteve inicialmente sua trajetória de valorização em relação ao dólar. O embate da crise mundial obrigou a uma redução da taxa de juros, o real sofreu desvalorizações sucessivas até atingir R$ 2,00 (Lula o havia deixado em R$ 1,60). O capital financeiro internacional passou a reclamar mais subsídios ao grande capital e novas privatizações. Entre janeiro e junho de 2011 o governo brasileiro gastou R$ 364 bilhões com juros, amortizações e refinanciamento da dívida: esses gastos representaram 53% do orçamento executado em 2011.

A tendência para a deterioração das contas públicas somou-se à crise mundial. O “pacote anticíclico” do governo Dilma em 2011, com a queda em meio ponto percentual das taxas de juros e o aumento do IPI para veículos importados (11% do consumo de veículos em 2005, quase 36% em 2011), provocaram uma desvalorização do real que se sentiu de imediato no setor produtivo, cuja dependência externa para o consumo de máquinas e equipamentos pulou de 20% em 2005 para quase 36% em 2011. Para compensar, o plano “Brasil Maior” anunciou uma renúncia fiscal de R$ 25 bilhões, beneficiando os empresários, comprimindo ainda mais as finanças e os gastos públicos, já submetidos a um recorte de R$ 50 bilhões no início do mandato de Dilma. Nos dois anos precedentes, o governo destinara R$ 635 bilhões para pagar a dívida pública, contra R$ 166,6 bilhões pagos no total aos servidores públicos federais (quatro vezes menos).

A dívida pública (interna ou externa) nunca foi no Brasil uma arma de desenvolvimento econômico independente. A CPI da Dívida Pública, concluída em 2010 na Câmara, comprovou que as altas taxas de juros foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida pública, apesar dos vultosos pagamentos anuais de juros e amortizações: a dívida pública brasileira não tem contrapartida real em bens ou serviços, se multiplica em função de mecanismos e artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de “juros sobre juros”. O Banco Central informou à CPI que para estabelecer as taxas de juros consultava “analistas independentes” em reuniões periódicas, fundamentando a definição da taxa Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom) com estimativas sobre a evolução futura da inflação, evolução de preços e taxa de juros. A CPI requereu ao BC os nomes dos participantes dessas reuniões: 95% deles fazia parte do “setor financeiro”.

Todos os gastos públicos (saúde, educação, transporte, previdência e assistência social) foram sendo afetados, com destaque para os salários do setor público que, devido ao crescente “superávit primário” (para pagar a dívida pública), foram comprimidos de 56% da receita corrente líquida (em 1995) para pouco mais de 30% (em 2010). O gasto com reforma agrária foi o mais baixo da década, R$ 526 milhões em 2010. A percentual dos salários na renda nacional se manteve constante em 43% (percentual equivalente ao de 1995), enquanto os lucros de empresas, bancos e proprietários de terras foi de 31,2% para 32,6%, no mesmo período. Nos grandes centros mundiais capitalistas, a participação dos salários na renda nacional é de, no mínimo, 50% (superando folgadamente 60% na Suíça ou nos países escandinavos).

Com Dilma, o parasitismo financeiro chegou aos seus mais altos níveis. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o BC ficara proibido de emitir títulos da dívida pública, que ficaram sob a responsabilidade exclusiva do Tesouro Nacional. Na prática, o Tesouro emite títulos e os entrega ao BC, sem contrapartida ou limite, para que este fixe a política monetária. A justificativa era a necessidade de o BC “enxugar” o excesso de moeda em circulação, que poderia provocar inflação. As “operações de mercado aberto” já ultrapassavam R$ 500 bilhões, não incluídos no saldo da dívida pública, porque seriam títulos da dívida em poder do BC.

Ora, esses títulos eram entregues aos bancos em troca do “excesso de moeda” nacional ou estrangeira, e fazem parte dos compromissos assumidos pelo Estado. Desde que o dólar começou a se desvalorizar, o volume das operações de mercado aberto aumentou aceleradamente, pois os especuladores internacionais viram no “gatilho” acionado pelo regime de metas de inflação uma oportunidade para trazer seus dólares para o Brasil e trocá-los por títulos da dívida pública, que pagam os maiores juros do mundo, isentos de qualquer tributo, podendo fugir do país engordados pela variação cambial.

O BC acompanha o volume das reservas – depósitos e saldos de caixa – dos bancos e das instituições financeiras. Se esse volume supera certo patamar, entende-se que há excesso de moeda em circulação, que precisa ser enxugado para evitar inflação: o BC realiza as operações de mercado aberto, entregando títulos da dívida aos bancos e ficando com a moeda excedente, dólares que vêm para o país para ser trocados por títulos da dívida brasileira. Assim, a crise capitalista mundial, que derrubou as taxas de juros nos países “centrais” recompôs a lucratividade de capitais desvalorizados ou falidos saqueando as finanças públicas da “periferia”. O BC fica com os dólares, como reservas internacionais, que não rendem quase nada, pois aplicados em grande parte em títulos da dívida norte-americana, que pagam juros próximos de zero. Para sair da recessão, o BC norte-americano baixou a zero a taxa básica de juros em dezembro de 2008 e injetou US$ 3 trilhões - quase um PIB e meio do Brasil - para comprar títulos de bancos e empresas falidas: o Banco Central dos EUA anunciou que manteria os juros perto de zero até, pelo menos, 2013. 89% das reservas externas brasileiras (que, em 2008, eram de US$ 220 bilhões, chegando a US$ 350 bilhões em 2011, 60% a mais) ficaram aplicadas em títulos, majoritariamente, do Tesouro norte-americano.

O Início da Curva Descendente

As crises de gabinete enfrentadas por Dilma Rousseff nos seus primeiros meses de governo foram vistas como acidentes de percurso, ou como o itinerário lógico no caminho da “deslulização” de seu governo. Nos seus primeiros dez meses, o governo passou por seis crises de gabinete, começadas pela demissão de Antonio Palocci (Casa Civil) até a de Orlando Silva (Esporte), passando por Alfredo Nascimento (Transportes), Nelson Jobim (Defesa), Wagner Rossi (Agricultura), Pedro Novais (Turismo), afetando todos os partidos da “base governista”. As crises de gabinete não configuraram, porém, situação de crise política grave (institucional), embora fossem seu sinal anunciador. Antonio Palocci, chefe da Casa Civil demitido, já sofrera o mesmo destino quando ministro da Fazenda do governo Lula, então devido a um affaire que misturou propinas, esquemas corruptos, inside job e proxenetismo.

Reconduzido ao governo Dilma como virtual primeiro ministro, Palocci caiu mais rapidamente do que na ocasião precedente, supostamente por não conseguir explicar o incremento de seu patrimônio pessoal em 20 vezes (2000%) nos últimos quatro anos – uma característica marcante do governo frente populista, ao ponto de uma enquete de Transparência Brasil ter revelado que a bancada parlamentar do PC do B, superando as outras, experimentou um crescimento de seu patrimônio de 1.154% em igual período (patrimônio declarado, uma parcela do patrimônio real). Gleise Hoffman, substituta de Palocci, elegeu-se parlamentar com “doações” capitalistas equivalentes ao dobro das recebidas por Lula para ser presidente...

Palocci era bem mais do que um ministro polivalente. William Rhodes, chefe da representação do capital financeiro internacional que renegociou a dívida externa brasileira na década de 1990 (renegociação que foi a base do Plano Real) declarou que, em 2002, Palocci intermediou a luz verde dada pelo grande capital mundial à eleição de Lula para a presidência, para o qual este teve que garantir a presença do ex-prefeito de Ribeirão Preto no seu governo. Palocci foi, assim, o elo entre o grande capital financeiro e o PT. Marta Suplicy, presidente do Senado, encabeçou uma fracassada tentativa petista de salvar a cabeça de Palocci, episódio que evidenciou o recuo do partido diante da burocracia que falava em seu nome.

A demissão de Alfredo Nascimento, ministro de Transportes envolvido em fraudes milionárias, revelou publicamente (graças a vazamentos oriundos do primeiro escalão do governo) que o Partido Republicano (ex PL, partido do finado vice presidente Alencar) não passava de um empreendimento político de malfeitores. Ora, o PL fora peça chave da estruturação da Frente Brasil Popular como alternativa “crível” de governo, angariando o apoio do grande capital industrial e das igrejas evangélicas. O enfraquecimento dos dois núcleos originais da Frente eleitoralmente vitoriosa aproximou perigosamente o governo de Dilma ao vazio político.

A “faxina” de Dilma em meia dúzia de ministérios não ampliou de modo significativo a base política do governo (a principal incorporação foi a de Celso Amorim na Defesa) e foi feita ao preço de escancarar uma corrupção generalizada capaz de suscitar uma grave crise política, isto em um país em que as crises vinculadas à corrupção tornaram-se corriqueiras desde a “democratização” (queda de Collor, compra de parlamentares por FHC, anões do orçamento, mensalão, e um longo etc.). No escândalo que custou o posto ao ministro de Turismo, quase todos os 36 funcionários de primeiro escalão do ministério detidos pela PF por desvio de verbas, estavam estreitamente vinculados à gestão das obras para a Copa 2014 e as Olimpíadas, dois grandes trunfos propagandísticos do governo, com gastos previstos de mais de R$ 40 bilhões. Na substituição do ministro peemedebista, a liderança do PMDB entregou a Dilma, com desleixo, a lista de seus 79 parlamentares federais (“pesca algum aí”, lhe disseram). Dilma acabou escolhendo um maranhense e depois compareceu ao congresso do PMDB onde, sentada ao lado do nordestino, desculpou-se pelos eventuais percalços causados ao partido dos corruptos pela “faxina”.

O 4° congresso do PT caracterizou os abalos de gabinete provocados pela corrupção como fruto de uma “conspiração midiática” para desestabilizar a base governamental (como se a mídia burguesa, por piores que sejam suas intenções – e geralmente são – pudesse simples e magicamente inventar corrupção onde ela não existe). O avanço de Dilma sobre a base ex tucana através da mão estendida para o PSD do prefeito paulistano Gilberto Kassab foi uma manobra de curto alcance e, como se veria depois, uma faca de dois gumes.

A oposição burguesa só conseguia marcar o passo, chegando até contemplar uma fusão PSDB-DEM. No governo, o vazio político tendeu a ser preenchido pelo PMDB. Quase 200 cargos em órgãos federais tiveram que ser cedidos por Dilma e suas “articuladoras” (Gleise Hoffman e Ideli Salvati) à “base aliada” para manter seu apoio parlamentar (e evitar uma investigação sobre os escândalos de Palocci e Nascimento). Com 79 deputados federais, 19 senadores, cinco governos estaduais e seis ministérios, além da vice-presidência do país, o PMDB lançou uma ofensiva sobre cargos federais de segundo e terceiro escalão. Como a maioria dos indicados por Lula se mantinha nos postos a “base” política própria de Dilma não crescia, ao contrário: o governo petista “deslulizado” era uma miragem.

A FIESP e seus porta-vozes reclamaram a queda da taxa de juros, a desvalorização monetária, e denunciaram a “desindustrialização do país”. Essa tendência não era conjuntural; refletia o recuo histórico do Brasil, parcialmente oculto pelas miragens dos programas sociais e da “redistribuição de renda”, assim como de sua condição internacional de “emergente”. A Fundação Getúlio Vargas pintou o Brasil como paraíso da mobilidade e da justiça social, com uma maré de bem-estar entre 2003 e 2011 que conduziu para a «classe média» (C) a 39,5 milhões de brasileiros, antes pertencentes às classes “D e E”, com uma renda mensal entre US$ 800 e US$ 3.400. Teria se reduzido em 54,18% a base da pirâmide (classes D e E), com uma queda da pobreza de 15,9%.

Os principais fatores teriam sido os programas de “transferência de renda” e a queda da taxa de nascimentos. A renda dos mais pobres cresceu 6,3%, a dos mais ricos só 1,7%: diversamente da China, o “crescimento brasileiro” seria paralelo a uma redistribuição da renda, que caracterizaria um “crescimento com inclusão social”, fazendo do brasileiro o “povo mais otimista do planeta”. As cifras que expressavam isso eram postas em dólares. Ora, pela sua transformação em plataforma de valorização fictícia do capital financeiro, iniciada sob o “neoliberalismo”, acentuada com Lula, a moeda brasileira sofrera uma valorização superior a 147% (no período 1994-2011 o dólar desvalorizou-se mundialmente em quase 35%).

Ou seja, houve um “reajuste” em dólar de todas as rendas equivalente a 182% (147+35), graças à valorização monetária, que se reflete em toda a estrutura de preços, da gasolina até as passagens de ônibus, que fizeram do Brasil um dos países mais caros do mundo. Com essa manipulação de valores monetários, o percentual de pobres no Brasil passou de 36% em 2003 para 27% em 2007. O reajuste do salário mínimo foi de 58,4% em oito anos de governo de Lula, bem distante da promessa de dobrá-lo ainda no seu primeiro governo (a participação dos salários na renda nacional manteve-se inalterada).

As medidas adotadas pelo governo para evitar a valorização do real (intervenções sistemáticas no mercado cambial; taxas sobre os investimentos externos na Bolsa de Valores e nos títulos públicos) não impediram a chuva de dólares atraídos por taxas de juros sem comparação com o restante do mundo, com uma taxa básica (Selic) de quase 13%, e taxas bancárias dez vezes superiores. O pagamento dos juros da dívida pública (quase R$ 700 bilhões em 2010) comprometia metade do orçamento federal. As remessas de lucros ao exterior, de US$ 99 bilhões nos oitos anos precedentes a FHC, superaram US$ 194 bilhões nos oito anos de FHC, e atingiram US$ 343,5 bilhões no governo Lula (oito anos). O real se valorizou 40% em termos reais desde 2006; no mesmo período as importações brasileiras quase dobraram, enquanto as exportações cresceram apenas 5%.

O Programa Bolsa Família foi bancado com percentuais mínimos das cifras citadas acima. Traduzia, também, a incapacidade do Estado brasileiro para combater a pobreza incorporando às massas pobres a um processo de transformação industrial e desenvolvimento econômico. No quadro histórico-mundial, as forças produtivas do país experimentaram um retrocesso histórico: a indústria reduziu em 17% sua participação no PIB, entre 1985 e 2008 (caiu de 33% para 16%). Entre 2004 e 2010, o percentual da indústria na pauta exportadora caiu de 19,4% para 15,8%: a relação manufaturas/exportações totais, que atingiu 60% na década de 1980, se situava agora em 40%.

O superávit comercial de US$ 24 bilhões na área de produtos industriais, em 2004 (inicio do governo do PT) se transformou, em 2010, com a crise mundial, em um déficit de US$ 36 bilhões. Cerca de 60% das empresas brasileiras estão, por outro lado, nas mãos de estrangeiros. As exportações corresponderam a 12% do PIB em 2008, enquanto a média internacional é de 30%. O badalado PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) consumiu ingentes recursos públicos para incrementar em menos de 0,5% do PIB (de 2,05% para 2,53%) os investimentos em infraestrutura, sem falar nas “renúncias fiscais” para beneficiar os investimentos capitalistas, equivalentes a R$ 144 bilhões (ou seja, uma transferência do Estado para o capital de valor superior aos gastos conjuntos com saúde e educação).

Depois de oito anos, o Programa Bolsa Família deixava ainda 16,2 milhões de pessoas em situação de miséria absoluta (renda mensal inferior a 40 dólares, menos de uma passagem de ônibus por dia), mais de 50% no Nordeste, região com 28% da população, mas responsável apenas por 14% do PIB, em que pese ter sido a região que mais “cresceu” nos últimos anos. O governo Dilma viu-se obrigado a lançar um novo programa social (“Brasil sem Miséria”) dirigido especificamente a esse setor. Para Marcial Portela, presidente do Banco Santander no Brasil: “Em poucos anos, o Brasil terá menos pobres que os EUA”, o que era provável, menos pelo “avanço” brasileiro do que pelo retrocesso norte-americano. O “Brasil sem Miséria” estava orçado em R$ 1,2 bilhão.

A título de comparação, a participação (inicial) do governo no projeto de “trem bala” (privado, e dirigido às classes abastadas, ao ponto de só prever paradas nos quatro aeroportos situados entre Campinas e Rio de Janeiro) era de R$ 3,9 bilhões, sem falar nos R$ 23 bilhões que seriam emprestados pelo BNDES aos ousados “empreendedores” brasileiros. A comparação com os gastos da rolagem da dívida pública (equivalente a R$ 2,5 trilhões, para um PIB de R$ 3,7 trilhões: em 2011, a dívida externa brasileira atingiu a marca de US$ 357 bilhões, e a dívida interna R$ 2,24 trilhões) seria ridícula: o governo gastava diariamente nessa rolagem da dívida para os grandes credores quase o dobro do previsto anualmente para os mais pobres. A “concentração de renda” pouco variara no Brasil, e continuava sendo uma das mais retrógradas do planeta. A melhora em alguns índices de pobreza foi um subproduto de um crescimento econômico primário-dependente e fortemente especulativo.

Os fatores da estabilidade financeira estavam começando a ruir. Em setembro de 2011, os países "emergentes" sofreram uma saída maciça de capitais, com epicentro no Brasil. A partir desse mês a Taxa Selic iniciou uma trajetória descendente, saindo de 12,5% para 9% anuais em meados de 2012, reduzindo os encargos da dívida pública. A redução da taxa Selic desencadeou uma corrida de capitais ao exterior, pois essa taxa regula a compra de títulos do Banco Central por parte do sistema financeiro privado. A fuga de capitais obrigou o BC a refazer sua política. A redução se produziu quando os capitais de todo o mundo fugiam até dos títulos norte-americanos, depois que a Suíça desvalorizou sua moeda.

O “Retorno” da Luta de Classes

Com o governo Dilma, a crise mundial passou a atingir mais diretamente os trabalhadores: o corte de mais de R$ 50 bilhões do orçamento federal atingiu principalmente as áreas sociais (quase nove bilhões da área de infraestrutura, três bilhões da educação, um bilhão da reforma agrária e quase um bilhão da saúde); houve suspensão dos editais de concursos públicos; cancelamento das nomeações; congelamento de salários dos SPFs; aplicação da avaliação de desempenho para demitir (PLP 248/98); PL 1992/07 que visou regulamentar a aposentadoria complementar para os servidores públicos. Esse cenário contribuiu para a deflagração de importantes lutas e greves salariais, em especial nos servidores públicos.

Os movimentos de luta tiveram seu ponto alto na greve de 100 mil operários da construção operária e civil das obras do PAC, em especial em Jirau (Rondônia). As greves se desenvolveram isoladamente, sem centralização. Os servidores federais, submetidos a violento arrocho salarial (a participação percentual salarial na receita líquida da União diminuiu 23% em dois anos), em campanha salarial nacional, realizaram três manifestações em Brasília. Os professores da educação básica, com salários baixíssimos e defasados, entraram em greve em 17 estados. Outra luta nacional foi a dos funcionários das universidades públicas federais, que envolve mais de 50 estabelecimentos em todo o país. Outros movimentos ocorreram em diversos estados: paralisações na Refinaria Abreu e Lima, Petroquímica Suape, Estaleiro Atlântico Sul, as já mencionadas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, atos contra aumentos de tarifa de transporte coletivo, greves em diversos setores. A jornada nacional de luta de 28 de abril, no entanto, teve repercussão escassa nos estados.

O capitalismo no campo ficou controlado pelas multinacionais capitalistas – Monsanto, Novartis, Pioneer e Agrevo – tanto na produção, quanto na transformação e distribuição, e que se expressou em crescimento tecnológico, mecanização, concentração de terras e exploração do trabalhador. Das 500 maiores empresas incluídas no ranking de vendas, 144 tem negócios que dependem da atividade agropecuária. A modificação do Código Florestal, com a anistia aos desmatadores, amparados por um acordo do governo com políticos ruralistas, fortaleceu os interesses do agronegócio. O Código Florestal aprovou a ampliação das áreas passíveis de desmatamento, incluindo margens de rio e topos de morro, representando um grave retrocesso. A sequência de assassinatos de líderes camponeses, incluindo José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, Adelino Ramos e Marcos Gomes da Silva, apontou para o extermínio das lideranças camponesas em razão dos interesses do agronegócio capitalista, sob o manto da impunidade. 35 parlamentares petistas votaram contra o Código.

No quadro da emergência e multiplicação das lutas se constituiu o “Espaço de Unidade de Ação”, reunindo os setores que fracassaram na unificação sindical classista tentada no Conclat de Santos (junho de 2010), basicamente a CSP-Conlutas e a Intersindical, assim como diversos sindicatos ou federações nacionais (CNESF, CONDSEF, FENASPS, ANDES-SN, ANEL, SINASEFE) e sindicatos estaduais. Junto com o MST e o MTST, este agrupamento convocou a uma semana de lutas (17 a 26 de agosto) com uma manifestação nacional a 24 de agosto, em Brasília.

As lutas sociais no Brasil em 2011 (na construção civil e nas obras do PAC, no Norte-Nordeste; nos bombeiros de RJ, na educação em diversos estados, na administração em Rio Grande do Norte, no funcionalismo municipal de Fortaleza e Salvador, nas universidades federais e estaduais, na saúde em Alagoas e São Paulo, em fábricas químicas e metalúrgicas) se desenvolveram de modo isolado, sem coordenação. Os cortes no orçamento federal, e também nos estaduais e municipais, ameaçaram provocar uma crise institucional. Foi o que se evidenciou na greve salarial, em fevereiro de 2012, das polícias e bombeiros militares de Bahia e do Rio de Janeiro, parte da coluna vertebral do Estado e sustento da repressão social. Em junho de 2012, depois da declaração de greve dos professores universitários, todo o funcionalismo público federal do Brasil (mais de um milhão de trabalhadores) decretou greve. O projeto de lei que congela o salário dos servidores por dez anos já estava sendo posto em prática. O Brasil foi entrando no ritmo político continental e mundial.

No entanto, Brasil começou 2012 proclamando, de modo ufanista, sua nova condição de sexta economia do mundo (superando pela primeira vez o PIB da Inglaterra); a balança comercial brasileira registrou, em 2011, superávit de quase US$ 30 bilhões, o maior nos últimos quatro anos, com um aumento de 47,8% (as vendas ao exterior somaram US$ 256 bilhões, um aumento de 26,8% em relação a 2010, as exportações brasileiras atingiram a marca histórica de US$ um bilhão por dia útil): China, Estados Unidos e alguns países da África foram os principais destinos das exportações brasileiras; o aumento real do salário mínimo (com um reajuste acumulado em dez anos de 65,96%) cujo novo valor era de R$ 622. Em relação ao anterior (R$ 545), o novo valor representava um aumento nominal de 14,13%, e um reajuste real de 9,2%, já descontada a inflação de 2011. Um panorama cor de rosa para o Brasil, no meio da crise econômica mundial?
Os investimentos, porém, continuaram estagnados, e a produção, extensiva e cada vez mais primária (soja, sobretudo para o mercado chinês, minério de ferro, petróleo), ficou voltada para o aumento das exportações, para nichos cuja capacidade de compra poderia cair abruptamente com o aprofundamento da crise mundial. As importações, por sua vez, alcançaram US$ 226 bilhões, ou seja, 24,5% a mais do que o registrado no ano precedente. No segundo semestre de 2011, houve queda significativa da demanda de crédito do BNDES para compra de máquinas e equipamentos, indicando queda absoluta do investimento privado, especialmente industrial.

Isso repercutiu diretamente no salário médio, que sofreu queda real, pois para um salário médio industrial de R$ 1700 ele era de R$ 1440 no setor de serviços, e de R$ 1300 no setor comercial, setores estes que avançaram percentualmente no emprego total devido à "primarização" da economia brasileira. O governo Dilma Rousseff promoveu, em 2012, um novo corte no orçamento, de R$ 60 bilhões, superando os R$ 50 bilhões de 2011, visando o cumprimento da meta cheia de superávit primário, 3,1% do PIB. O objetivo do governo foi continuar a política de superávit primário para pagar mensalmente 30 bilhões de reais de juros e amortizações.

Dilma Rousseff firmou a posição de não reajustar os salários dos servidores públicos, com o argumento de que seria necessária austeridade fiscal para enfrentar a crise econômica mundial. Ora, as próprias estatísticas oficiais demonstravam que os gastos do governo com o pagamento de pessoal tinham caído em proporção ao PIB. Os gastos com pessoal (ativo e aposentado), na conta Receita Corrente Líquida da União, caíram de 56,2% em 1995, para 33,3% em 2010. O projeto de lei orçamentária de 2012, encaminhado pelo governo, previu uma redução nos gastos com pessoal, proporcional ao PIB, de 4,89% em 2009 para 4,15% em 2012, uma queda de 0,75% do PIB (que se incrementou em mais de 10% nesses anos).

Dilma reduziu os salários dos servidores públicos e os gastos sociais ao seu percentual mais baixo (do PIB e da receita líquida do Estado) em duas décadas. Houve um decréscimo no gasto com pessoal (serviço público), e um aumento no pagamento dos juros. Os aumentos nos "gastos sociais" (programas focalizados) eram financiados com uma fração pouco significativa desse 2,20% do PIB pago "a mais" aos especuladores financeiros (nacionais e internacionais). A “prosperidade” brasileira baseou-se numa valorização fictícia do capital (nacional e internacional) derivada de uma transferência de renda em favor do grande capital financeiro, afetando todas as classes assalariadas, compensada pelos programas sociais (Bolsa Família e outros, que beneficiavam 58% da população brasileira, contra 8% em 1978).

A Rota para o Abismo


Em 2011, foram gastos com o pagamento da dívida (juros, encargos e amortizações) R$ 708 bilhões, como se vê acima. No ano seguinte, os gastos com a dívida, incluindo pagamento de juros e amortizações, consumiram 22,37% do PIB. Em 2009, esses gastos somaram 20,17% do PIB. A frente externa, porém, não era o componente principal do impasse econômico. A dívida pública brasileira representava 36,6% do PIB, menos da metade do que a da França (85,4%) ou a da Alemanha (81,7%), para não falar dos 163% da Grécia, 120% na Itália, ou 108% na Irlanda; predominantemente interna, no entanto, ela questionava o investimento público do Brasil. A dívida privada brasileira, por outro lado, era proporcionalmente superior à dos EUA na fase prévia à crise de 2007-2008, sendo refinanciada com juros elevadíssimos. A capacidade de refinanciamento foi chegando ao limite, com o horizonte econômico brasileiro tingido pela desaceleração econômica. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou uma expansão do PIB entre 4% e 5% em 2012, mas os dados do Relatório de Inflação do Banco Central reduziram o percentual para 3,5%.

A trajetória declinante do PIB (+7,5% em 2010; +2,7% em 2011) refletiu, em primeiro lugar, a tendência para o recuo do mercado mundial. A desaceleração da economia chinesa, principal cliente das exportações brasileiras, provocou uma queda abrupta nas bolsas de valores no país. O centro da política governamental ficou determinado pela remuneração extraordinária ao capital financeiro, que manteve os fluxos de investimentos externos. Os cinco maiores bancos brasileiros (BB, CEF, Bradesco, Itaú, Santander) apresentaram em 2011 um lucro líquido recorde de quase R$ 51 bilhões, quase o total do montante do corte orçamentário executado por Dilma Rousseff para seu segundo ano de mandato.

No meio da crise mundial, o crédito no país passou de 38,4% do PIB (em dezembro de 2008) para 49,1% do PIB (em dezembro de 2011). Isto não se referia apenas, nem principalmente, à dívida das “famílias”: referia-se, sobretudo, à dívida do grande capital financeiro, uma cifra próxima de R$ 350 bilhões (era de R$ 313 bilhões em setembro em 2009, com R$ 125 bilhões dos bancos estrangeiros, e R$ 188 bilhões dos bancos nacionais). Um relatório do banco de investimentos Morgan Stanley revelou que o total do endividamento externo brasileiro (passivos em moeda estrangeira), antes declarado “extinto”, atingira US$ 746 bilhões em dezembro de 2011, perto de R$ 1,3 trilhão, o equivalente a quase todo o orçamento federal. O Morgan Stanley definiu a economia brasileira como a mais vulnerável dentre as dos países “emergentes”, passível de uma fuga de capitais.

Isso, contra o pano de fundo de um aparelho produtivo tornado mais dependente da importação de bens de capital (maquinário) e de mercadorias externas: entre 2005 e 2011 a participação de produtos manufaturados nas exportações despencou de 55% para 36%; a indústria reduziu em 17% sua participação no PIB, entre 1985 e 2008 (caiu de 33% para 16%), situando-se agora em 14,6%, a menor participação do setor no PIB nacional desde 1956 (primeiro ano do governo JK, ou seja, a um nível anterior ao “desenvolvimentismo”). Entre 2004 e 2010, o percentual da indústria na pauta exportadora caiu de 19,4% para 15,8%. A fatia do Brasil no mercado mundial de manufaturados despencou de 0,95% (1984) para 0,68% (2010).

Na política tributária e de incentivos, o governo lançou um “pacote” dirigido ao empresariado, com reduções no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A renúncia fiscal do governo foi de R$ 7,2 bilhões, só em 2012. O governo cedeu à reivindicação do empresariado em favor da desoneração da folha de pagamentos para efeitos de contribuição previdenciária. As contribuições patronais sofreram uma queda de 20%. Todas essas medidas atenderam a demandas de setores como a cadeia automobilística, os diversos setores da construção civil, as empresas da chamada “linha branca”. O grande capital teve reduzidos seus impostos, pode receber empréstimos com taxas de juros subsidiadas do BNDES (o Tesouro liberou R$ 10 bilhões para reforçar as linhas de financiamento do Banco, estando previstos outros R$ 10 bilhões no segundo semestre), foi contemplado pela redução generalizada dos juros bancários e até obteve diminuição nos custos trabalhistas. Foram previstos R$ 45 bilhões de subsídios nas medidas da segunda fase do “Plano Brasil Maior”.

O endividamento privado interno no Brasil passou a beirar a inadimplência, com 15 milhões de famílias “superendividadas”, ou seja, tecnicamente inadimplentes. Os calotes de créditos concedidos (as “carteiras podres”) reduziram o valor de mercado dos principais bancos do país (BB, Itaú, Bradesco e Santander) em R$ 40 bilhões somente no mês de abril de 2012. A inadimplência no financiamento de veículos saltou de 4 % para quase 6 % em um ano. Com uma sobreprodução elevada no setor automobilístico, a liquidação de estoques das montadoras chocou contra a realidade da inadimplência privada. A produção industrial brasileira sofreu em 2012 uma nova queda, pelo quarto trimestre consecutivo.

The Economist deu o sinal de alarme para os “investidores internacionais”, qualificando o Brasil como “um touro rebaixado”, com um crescimento inferior a 2 %. A crise econômica brasileira teve e tem imediata projeção internacional, devido aos investimentos brasileiros na América do Sul (Bolívia, Equador, Colômbia, Peru, Argentina) e até na África, onde operam Petrobrás, Vale do Rio Doce, Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Marcopolo, principalmente (os investimentos e a corrente de comércio brasileiro no continente, porém, equivalem só a 3% dos investimentos chineses e a 10% daqueles da Índia). Nada que se comparasse aos US$ 70 bilhões investidos por empresários brasileiros em paraísos fiscais (os investimentos verde-amarelos na Unasul, em comparação, mal superam US$ 12 bilhões).

O superávit comercial de US$ 24 bilhões na área de produtos industriais, em 2004 (início do governo do PT) se transformou, em 2010, em um déficit de US$ 36 bilhões. Cerca de 60% das empresas brasileiras estão, por outro lado, nas mãos de estrangeiros. As exportações corresponderam a 12% do PIB em 2008 (a média internacional é de 30%). O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) consumiu ingentes recursos públicos para incrementar em menos de 0,5% o PIB (de 2,05% para 2,53%) os investimentos em infraestrutura, sem falar nas “renúncias fiscais”, equivalentes a R$ 144 bilhões. O governo FHC, em seus oito anos, pagou R$ 2,079 trilhões em juros e amortizações da dívida. Nos oito anos de governo Lula, esses gastos mais que dobraram, atingindo R$ 4,763 trilhões. De 1994 a 2010 o país pagou, portanto, R$ 6.842 trilhões, e mesmo assim a dívida interna atingiu o patamar de R$ 2,5 trilhões, em 2011. Vale lembrar que no início do governo FHC o montante dessa dívida era de R$ 64 bilhões...

Em finais de junho de 2012, a agência de classificação de risco Moody´s rebaixou a nota de oito grandes bancos brasileiros, pelo nível de exposição dessas instituições à dívida pública: os bancos afetados foram Banco do Brasil, Safra, Santander Brasil, HSBC Brasil, Bradesco, Itaú, Itaú-BBA e Votorantim. A Moody´s argumentou que a revisão levou em conta "a extensão da dependência de seus negócios da conjuntura doméstica e financeira e a sua exposição direta ou indireta à dívida soberana doméstica, comparada com suas bases de capital". O diagnóstico da Moody´s soou como o início de uma conta regressiva.

Dilma foi, em grandes linhas, no sentido solicitado pelo grande capital: anunciou a privatização dos aeroportos, com fortes subsídios estatais, às vésperas da Copa 2014 e das Olimpíadas de 2016, ou seja, deu de bandeja ao grande capital a próxima galinha dos ovos de ouro. Transferiu-se à iniciativa privada a manutenção, construção e exploração de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, sem contar com a incorporação de aeroportos e portos, em processo de efetivação. Os investimentos eram da ordem de R$ 133 bilhões para um período de 25 anos, sendo que R$ 79,5 bilhões seriam investidos nos primeiros cinco anos. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiaria 80% dos projetos.

A alardeada redução das tarifas de energia elétrica não levou em conta que, desde 1995 até 2011, o custo da energia elétrica ao consumidor subiu nada menos que 455%, bem acima da inflação, que acumulou 234% no mesmo período. Portanto, ainda que houvesse uma redução de 16,2%, o resultado era um grande aumento na energia nos últimos 16 anos. Sem falar nos preços subsidiados que pagavam os grandes consumidores; 30% da energia é consumida por seis setores empresariais. E continuou a política de desoneração da folha de pagamentos das empresas. Sob o argumento da necessidade de redução do “custo Brasil”, o governo federal abdicou da receita previdenciária oriunda de 20% sobre a folha salarial e ficou com uma promessa de contribuição de alíquotas sobre o faturamento das empresas.

O problema era que, como resumiu Valor Econômico, “o governo baixou as taxas de juros, desvalorizou o real, aumentou o gasto público [leia-se subsídios ao capital], adotou medidas para diminuir os custos de produção [desregulamentou a legislação trabalhista], reduziu impostos [ao grande capital], abriu a concessão de serviços públicos ao setor privado, interveio em alguns setores econômicos, e a economia brasileira não reage. Os investimentos são negativos há dois anos, e o PIB registra uma média inferior ao dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso”.

Os investimentos externos, que equilibravam a conta capital (contra o monumental déficit comercial) e mantinham artificialmente o valor do real, eram destinados à especulação financeira de curto prazo, ou para a compra de ativos, não para crescimento econômico real. A multinacional norte-americana da saúde United Health, por exemplo, adquiriu a empresa líder do mercado brasileiro (Amil) pelo valor de R$ dez bilhões. A negociação implicou a transferência de um conjunto de mais de vinte hospitais. Mas a grande aposta do novo controlador era mesmo o segmento de planos privados de saúde. A queda acelerada das compras chinesas foi um dos fatores que propiciaram um déficit comercial de mais de US$ 65 bilhões em 2013. A China não queria comprar mais mercadorias, mas sim ativos no país (devido ao seu excesso de capitais em casa).

Corrupção, Crise Econômica e Política

Historicamente, a corrupção do Estado brasileiro é, como se sabe, oceânica. O governo PT/PMDB não fez senão aprofundá-la e sistematizá-la, até transformá-la em fator de crise política. No governo Dilma, o Ministério dos Esportes, sob o controle do PC do B, foi acusado de montar um esquema de lavagem de dinheiro através de ONGs (R$ 4,3 milhões foram apurados, só inicialmente, pela CGU – Controladoria Geral da União). O principal programa do ministério, o “Segundo Tempo”, teria se transformado em instrumento financeiro do PCdoB: sem licitação, o ministro teria entregue o programa a entidades ligadas ao partido, cujos contratos com essas ONGs somaram R$ 30 milhões só em 2010. A crise no esporte se resolveu, provisoriamente, com a saída do bode expiatório de plantão (o ministro Orlando Silva), na sexta crise de gabinete do governo Dilma em um ano, garantindo ao PC do B a continuidade do controle do manancial de verbas, inchadas com a perspectiva da Copa 2014. O PC do B passara do estágio do micro ou médio empreendimento (carteirinhas da UNE) para entrar no mundo empresarial.

No Ministério do Trabalho e Emprego, o PDT sofreu uma investigação por um montante de R$ 57 milhões de dinheiro que saiu pelo ralo das ONGs. As cifras citadas são café pequeno: segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tramitavam nos tribunais federais, em 2010, 2.804 ações de crimes de corrupção, improbidade administrativa e lavagem de dinheiro (nos tribunais estaduais, os processos por essa causa eram 10.104). O montante da corrupção foi calculado, em 2010, entre R$ 50,8 bilhões e R$ 84,5 bilhões (o que significa que não se tinha ideia de seu valor real, pois o hiato da estimativa era de nada menos que R$ 35 bilhões).

A corrupção da esquerda governamental não é uma decorrência “natural” da corrupção geral, nem uma manifestação de uma desonestidade peculiar da esquerda do país, mas uma evidência da integração dessa esquerda ao Estado burguês, cuja estrutura é inseparável da corrupção, assim como o crime é inseparável do capitalismo, sendo uma fonte de lucros para o capital (através da indústria do seguro, da segurança, etc). A tarefa de uma esquerda classista e socialista seria mostrar o vínculo entre corrupção, negócios e acumulação capitalista, para organizar a luta contra o Estado. A denúncia da corrupção deveria ser uma bandeira da esquerda? A resposta negativa baseia-se no argumento de que ela é instrumentalizada pela direita burguesa (também corrupta), devido a que a direita, proprietária, ou respaldada pelos proprietários, dos meios de produção, não precisaria se corromper. Argumento fajuto, justificador da corrupção permanente, que pavimenta o caminho da direita, e geralmente oriundo de setores que se beneficiam da corrupção. A esquerda socialista deveria mostrar o vínculo entre corrupção e Estado capitalista, inclusive quando aquela está institucionalizada e afeta as organizações da classe operária (o Imposto Sindical é um bom exemplo).

A burguesia, historicamente, institucionalizou a corrupção como meio de domínio político. A corrupção é sua forma de existência. A esquerda burguesa, quando tem origem popular, vê na corrupção uma oportunidade de fazer um "pé de meia" e ascender socialmente (se emancipando de sua classe de origem). A direita, então, a denúncia para recuperar o poder político. Os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) declararam culpados e condenados os réus do mensalão. A oposição e a grande imprensa cantaram loas à independência do Poder Judiciário. O julgamento era uma farsa, por vários motivos, o primeiro dos quais é que os acusados foram somente os agentes do suborno, e não os subornados, que aceitaram o dinheiro para votar diversas leis reacionárias do governo do PT (a reforma previdenciária, em primeiro lugar).

Em revide, o PT reabilitou um fato anterior ao mensalão, o esquema de financiamento ilegal da campanha eleitoral do PSDB ao governo de Minas Gerais em 1998. Sucede que o “financiador” em ambos mensalões era o mesmo, a raposa dos paraísos fiscais, Marcos Valério, cuja condição de vigarista já havia sido dada a conhecer em 1998, o que não lhe impediu de ser contratado pelo PT em 2002. Sem haver ainda sedimentado o escândalo do mensalão, se produziu a queda da coordenadora do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, que teria montado um esquema milionário de negócios vendendo informes técnicos fraudulentos para favorecer empresas privadas em contratos públicos.

A crise do mensalão marcou as composições eleitorais. A mesma imprensa que celebrou a decisão do STF sobre o mensalão também celebrou as qualidades reveladas de “estadista” de Dilma, a violência com que enfrentou as greves, avançou nas privatizações e fez passar leis antipopulares e, sobretudo, a significativa redução do gasto público. Lula lançou antecipadamente a candidatura de Dilma Rousseff à reeleição. O alívio que representou para o PT e para o governo Dilma a vitória eleitoral municipal em São Paulo (2012), porém, durou menos do que o esperado. O resultado do PIB derrubou todas as esperanças de Dilma e seus aliados de terminar o ano de 2012 com números minimamente apresentáveis. Isto, depois de um ano em que as concessões às empresas privadas alcançaram uma dimensão sem precedentes. A desaceleração do PIB se deveu à queda no setor de serviços, em particular da intermediação financeira, como consequência da redução das taxas de juros. Desde agosto de 2011, o Banco Central reduzira de 12,5% a 7,25% a taxa básica, com a pretensão de estimular o consumo e facilitar a renegociação das dívidas empresariais.

O crescimento do PIB, ainda assim, caiu de 4,5% a 1% anual. O Tesouro Nacional injetou R$ 390,1 bilhões nos três bancos controlados pelo governo federal - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal - entre o fim de 2006 e outubro de 2012. A participação das instituições financeiras públicas no crédito total da economia saltou de 36,8% para 46,6%. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou a liberação de R$ 100 bilhões para o BNDES em 2013. Desse valor, cerca de R$ 45 bilhões poderiam ter como fonte o Tesouro Nacional. Afora alguns financiamentos populares, eram subsídios ao grande capital.

Os economistas “neoliberais”, combatidos durante uma década, celebraram a conversão do governo ao “credo do mercado”, o do subsídio público ao grande capital. O governo federal destinou dois terços dos recursos gastos em 2013 para pagamento de juros e amortizações da dívida. Para 2013, estavam previstos R$ 900 bilhões para a dívida pública, 20% a mais do que os R$ 753 bilhões gastos no ano precedente. A parte do orçamento federal destinada para pagamento de juros e amortizações da dívida cresceu. No Código Florestal, a expectativa do “veta tudo Dilma” não se concretizou, em favor de um projeto global em favor do grande capital, adequando as formas de organização do Estado. O Código Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação teve a “contribuição” de fundações privadas de todo o país, empenhadas na privatização interna das instituições públicas.

Para pagar a dívida pública, houve novos cortes no orçamento, que somente entre os anos 2010 e 2011 fizeram cair 16,2% o orçamento para ciência e tecnologia. Para “remediar”, não só seria permitida a transferência direta de recursos públicos para o setor privado, como se ampliaria a possibilidade das instituições públicas – as universidades, responsáveis por mais de 90% da produção científica do país – compartilharem seus laboratórios, equipamentos, materiais e instalações com empresas privadas, inclusive transnacionais. O Código permitiu ainda o acesso à biodiversidade pelos monopólios privados. Seria doravante permitido, sem autorização prévia, o acesso ao patrimônio genético e de conhecimento tradicional para fins de pesquisa. E também a extração desse patrimônio para fins de produção e comercialização.

Na greve do funcionalismo público federal (Andes, Fasubra, Sinasefe, principalmente) se concentraram todas as contradições da política brasileira. Em inícios de agosto, até os servidores (funcionários) da Polícia Federal votaram sua entrada em greve. A oferta de “reajustes” salariais do governo Dilma não cobria sequer as perdas dos anos em que os salários permaneceram congelados, sem falar na destruição da carreira funcional. Uma vez descontada a inflação, mesmo usando índices modestos e otimistas, os reajustes médios propostos pelo governo até 2015 variavam entre 0,36% e 5,52% negativos. A “economia de caixa” que o governo pretendia com o arrocho salarial federal estava ao serviço de uma política de subsídios ao grande capital. Não se tratava apenas do pagamento da dívida pública, mas também da utilização do endividamento público para repasse direto de recursos a empresas privadas, subsidiadas pelo BNDES.

Desde 2008, o governo federal (PT) abrira mão de R$ 26 bilhões em impostos para a indústria automotiva: cada carteira assinada pelos monopólios do automóvel custava um milhão de reais ao país. O resultado? A remessa, por essas empresas, de quase R$ 15 bilhões ao exterior, na forma de lucros e dividendos, para cobrir os buracos de caixa das matrizes “em casa” (EUA, Europa, Japão) e uma onda de demissões no setor automobilístico. A produção industrial recuou por três meses consecutivos, e o investimento por três trimestres consecutivos, em que pese os generosos créditos ao capital do BNDES com taxas subsidiadas, configurando um panorama de recessão. Isto em que pese o pacote de estímulos industriais, de R$ 60 bilhões (desoneração fiscal, ampliação e barateamento do crédito, redução de 30% do IPI, subsídios para as tarifas elétricas). Em energia, houve 10% de redução para as grandes empresas; os grandes empresários já pagavam uma energia subsidiada, mas continuaram pressionando o governo para uma redução da carga tributária.

O saldo comercial favorável de US$ 31,3 bilhões de novembro de 2011 (quando as exportações brasileiras bateram seus recordes históricos) recuou para US$ 23,9 bilhões em junho de 2012., com desaceleração paralela do PIB. A taxa de juros de longo prazo foi reduzida de 6% para 5,5% anuais, e o governo anunciou compras (máquinas, caminhões, ônibus) por valor de R$ 6,6 bilhões. O resultado? Menos de 1% de investimento no PIB, que não alcançava para compensar metade da queda do investimento durante o primeiro trimestre de 2012. E novas demissões no setor automotivo, começando pela GM de São José dos Campos, que anunciou 1.500 demissões e um plano de “delocalizações” (as demissões também vinham afetando outras montadoras: Volkswagen, Mercedes Benz, Volvo). Encabeçadas pelas montadoras, a onda de demissões em toda a economia não fazia senão começar.

A taxa de investimentos caiu em cinco trimestres consecutivos, acumulando uma queda da produção industrial de 2,9%. A produção de automóveis teve em 2012 sua primeira queda em dez anos. Os porta-vozes da grande indústria passaram a afirmar que “o modelo econômico brasileiro baseado no consumo está esgotado”; solicitando uma redução dos “custos do trabalho” por meio de uma desvalorização e um ataque a todas as conquistas trabalhistas. The Economist qualificou a economia brasileira de “moribunda” e reivindicou a montagem de uma nova equipe econômica.

O Ataque ao Trabalho

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2013, votada em 2012, priorizou o superávit primário e não assegurou reajuste para o funcionalismo público, proporcionando a garantia do superávit primário para remuneração do setor financeiro (em 2012 a parcela do Orçamento Geral da União destinada aos juros e amortizações da dívida já superava os 47%). Desde o Plano Real (1994) a LDO garantiu a atualização da dívida de forma automática, mensalmente, e por índices calculados por uma instituição privada, índices que tiveram variação muito superior ao índice oficial de inflação, o IPCA. Sobre essa atualização ainda incidiam elevados juros reais (a Lei de Responsabilidade Fiscal limitou gastos e investimentos sociais, mas não estabeleceu limite algum para o custo da política monetária), por isso a dívida brasileira era a mais cara do mundo. A dívida federal era atualizada automaticamente, mensalmente, pelo IGP-M. A dívida dos estados (com a União) foi atualizada automaticamente, mensalmente pelo IGP-DI. Ambos são calculados pela FGV e suas variações no período foram muito superiores ao IPCA.

A dívida pública brasileira já superava R$ 3,2 trilhões, ou 78% do PIB, consumindo quase metade dos recursos da Federação. Tudo era bom para pagá-la, até o imposto de renda das pessoas físicas, modificado sob a justificativa de sua simplificação: diversas deduções foram abolidas, e o trabalhador ficou cada vez mais onerado; enquanto desde 1996 as “pessoas jurídicas” (empresas) podem deduzir juros calculados sobre o capital próprio, despesa não efetivamente paga, fictícia, que beneficia empresas altamente capitalizadas, como os bancos. Houve fechamento de postos de trabalho em grandes bancos, principalmente Itaú e Banco do Brasil. A rotatividade de mão de obra continuou alta nas instituições financeiras e é utilizada para reduzir a massa salarial. O salário médio dos trabalhadores contratados, em número menor às demissões, foi 38,2% inferior ao dos desligados.

O arrocho salarial público e privado era, nesse quadro, o patamar para um ataque histórico contra os trabalhadores. A resposta do funcionalismo (especialmente docentes e funcionários educacionais) não se fez esperar: em tempo recorde foram paralisadas 58 das 59 universidades federais, e foram organizadas massivas marchas e jornadas de luta em Brasília. Isto pese à forte atuação de um sindicalismo pelego (Proifes) favorecido e subsidiado pelo governo (e a CUT) nas universidades. Os auditores fiscais empreenderam medidas de luta em todo o país, por um reajuste salarial de 30%, que chegaram a paralisar o polo industrial de Manaus. Os professores estaduais da Bahia completaram quatro meses de greve com assembleias enormes.

E os trabalhadores do setor privado também começaram a reagir, com o corte da Via Dutra pelos trabalhadores da GM, contra as demissões e o “banco de horas” (flexibilização trabalhista). Após mais de vinte anos sem realizar greve, os trabalhadores eletricitários das empresas do grupo Eletrobrás – Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul e outras dez empresas – paralisaram a partir de 16 de julho. A decisão pela greve foi tomada em assembleias realizadas em todo país. Os trabalhadores não aceitaram a contraproposta da empresa referente ao reajuste salarial, reivindicando 10,73% (a Eletrobrás ofereceu apenas 5,1%). A greve atingiu 14 empresas, sendo oito são geradoras de energia.

A postura repressiva do governo Dilma frente à greve nacional dos docentes e a dos técnicos e administrativos das universidades federais não foi própria de uma simples “contenda trabalhista”, mas de um embate político de fundo, embora a greve possuísse pauta precisa e objetiva: carreira, malha salarial e condições de trabalho (mais concursos e recursos para as instituições). Em 13 de julho, quando a greve dos professores das universidades federais já estava a ponto de completar dois meses, o governo finalmente ofereceu à categoria uma proposta, rejeitada pelas assembleias de base da categoria. A partir dos dados do ICV/Dieese e de uma projeção futura, o Andes estimou o reajuste necessário em, pelo menos, 35%. Para a maior parte dos docentes, a proposta do governo significaria, em 2015, um salário real menor que o recebido em 2000.

Depois de agradar o capital (financeiro, industrial, comercial e agrário) com todo tipo de “bondades”, o governo definiu a agenda de um ataque histórico ao trabalho, mediante as “novas regras do INSS” (destruição da previdência social pública) e a “flexibilização do mercado de trabalho” (adequação de legislação trabalhista às necessidades do capital): “Reforma da previdência, flexibilização das leis trabalhistas e privatizações são temas da velha Agenda Perdida, elaborada por economistas quando da primeira eleição de Lula, em 2002”, de acordo com um comentarista, com vistas a “desobstruir os investimentos produtivos e cuidar do crescimento da economia pelo lado da oferta”. A contribuição previdenciária patronal passou a ter como fonte uma alíquota entre 1% e 2% a incidir sobre o faturamento das empresas.

Seriam tomadas “medidas de concessão do serviço público ao setor privado, redução dos encargos da conta de energia elétrica, reforma do PIS/Cofins e incorporação de mais setores na desoneração da folha de salários”. Dilma realizaria o “trabalho sujo” que os governos Lula I e II deixaram pendente. Pelo impacto da crise, estado de São Paulo, nas plantas de São José dos Campos e São Caetano do Sul, a GM demitiu em quinze meses mais de dois mil operários, 1.400 só em São José dos Campos. A idade mínima de aposentadoria seria elevada (acabando com a aposentadoria por contribuição e instituindo a idade mínima de 65 anos para homens e 60 anos para as mulheres) e a desoneração da folha salarial seria acrescida da facilitação para demitir e contratar precariamente, ou “Contrato Coletivo Especial”. O governo propôs o “Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico” (ACE), que regulamentaria a criação de Comitês Sindicais de Empresa (CSE), ignorando a legislação trabalhista e os próprios sindicatos por categoria.

Acentuou-se o processo de criminalização das lutas e organizações dos trabalhadores e da violência contra os pobres que se manifesta nos assassinatos de dezenas de jovens pobres e negros pela polícia na periferia de São Paulo; na violenta repressão às greves dos operários da construção civil; na violência da desocupação do Pinheirinho; ameaças de morte a dirigentes e ativistas de movimentos populares da cidade e do campo. A reação operária e sindical provocou que a CUT repudiasse a publicação do decreto governamental que previa a substituição dos servidores públicos federais em greve por servidores estaduais e municipais. Paralelamente, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC encaminhou ao governo e ao Congresso Nacional um Anteprojeto de Lei que modificava a CLT e cria o Acordo Coletivo Especial, cujo conteúdo essencial era “fazer prevalecer o negociado sobre o legislado” nas relações de trabalho.

Com essa política de “mão dura”, a um ano e meio das eleições gerais, o governo de Dilma Rousseff possuía um índice de aprovação na casa dos 65%, e intenção de voto da ordem dos 55% segundo as sondagens divulgadas. A sua reeleição parecia mais garantida do que a do próprio Lula, seu fiador político, em 2006. Em março de 2013, houve a recomposição do gabinete: Agricultura, Trabalho e Aviação Civil mudaram de titular para contemplar o PMDB e o PDT e garantir as alianças políticas em 2014. Em abril, por sua vez, foi criado o 39º cargo de primeiro escalão (ministério) do governo (havia só 23 em 1992) para contemplar o PSD do ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab. O jogo parecia feito; aparentemente, a política brasileira se encaminhava para uma interminável mesmice.

A Fuga Para a Frente

O governo enviou um projeto inibindo a criação de novos partidos políticos, primariamente rejeitado pelo STF, que acolheu uma ação promovida por Eduardo Campos (PSB), membro até esse momento da “base aliada”. O projeto propunha, entre outras coisas, a proibição da transferência do tempo de propaganda eleitoral gratuita e dos recursos monetários do Fundo Partidário para os deputados que mudassem de sigla, e chegou a ser aprovado na Câmara de Deputados por 240 votos contra 30. Sucede que as frentes de tormenta do governo surgiam exatamente de sua “base”: o PSB, e a “Rede” da ex-ministra petista Marina Silva, cujo potencial desempenho eleitoral era almejado pelo PSDB para forçar, como em 2006, um segundo turno nas eleições presidenciais.

Defendendo publicamente o deputado-pastor fascista/homofóbico Feliciano (do também “aliado” Partido Social Cristão, engendro fascista/evangélico) Marina se candidatou firmemente para ganhar apoio eleitoral das igrejas evangélicas, provocando um estrago eleitoral. Para a esquerda petista, isto seria uma conspiração que buscava “pulverizar a luta eleitoral de 2014 em torno de diversas candidaturas para provocar um segundo turno, numa tentativa de derrotar a reeleição de Dilma”, como se a tal “conspiração” não fosse o produto da “política de alianças” do próprio PT ao longo de dez anos.

O sistema de marketing a que ficara reduzido o “sonho petista” invadiu e inundou as redes sociais com sensacionais desvendamentos da real natureza da candidatura de Marina: antigay (pois oposta ao matrimônio civil de pessoas do mesmo sexo), antifeminina (pois oposta ao direito de aborto, em nome de Deus, seja ele evangélico, católico ou da religião que aparecer com algum caudal de votos), anti-laica (pelas mesmas razões precedentes), misógina (em defesa do homofóbico Pastor Feliciano - o possuidor da “cura gay” - na presidência da Comissão de Direitos Humanos na Câmara, pela sua defesa dos evangélicos contra as supostas perseguições de que são objeto), para não falar de sua proximidade com uma herdeira do Banco Itaú, e por ai foi.

Marina Silva não ocultava o caráter ultrarreacionário de sua candidatura, ao contrário, fazia questão de proclama-lo urbi et orbi como argumento dirigido a conquistar o eleitorado conservador e reacionário. O único trabalho adicional que teve Marina, depois da morte de Eduardo Campos, foi o de explicar, de um modo que, mais que beirar o ridículo, ultrapassou consciente e intencionalmente o ridículo, foi o de explicar que os fragmentos do programa do PSB (o programa de sua chapa com o finado governador pernambucano) relativos a essas questões que não eram explicitamente reacionários, deviam sua existência a erros tipográficos ou de transcrição da comissão partidária encarregada do programa. O PSB e seu programa ficaram reduzidos a papel higiênico. Enquanto isso acontecia, a “lei antiterrorista”, impulsionada pelo governo, foi redigida de tal modo que qualquer manifestação pública poderia ser enquadrada como ato terrorista.

Marina proclamou alto e bom som sua oposição à revisão da Lei de Anistia, o equivalente a propor a expedição de um certificado de inocência e impunidade eternas para assassinos, torturadores e ladrões; nada seria feito contra as consequências de 21 anos de arbítrio armado elevado à categoria de razão de Estado. Desde a Lei de Anistia, houve 1.133 mortes com motivação política, um assassinato a cada onze dias, ao longo de três décadas. O Clube Militar, que andava esquecido, ou melhor, escondido, saiu de sua toca para proclamar em Marina Silva seu “fio de esperança”, lhe oferecendo em bandeja de prata a última fatia do eleitorado: a dos saudosistas da ditadura militar. Isto não significaria destituir ou mandar às favas a Comissão da Verdade, que poderia continuar a trabalhar, e produzir finalmente um belo volume de histórias de crimes e de horror, devidamente arquivado nas estantes da Biblioteca do Senado.

O arranca-rabo “aliado” estava longe de parar por ai. Dilma reuniu-se com seu vice, Michel Temer (PMDB), para cobrá-lo acerca dos “modos e meios do líder do partido na Câmara, Eduardo Cunha, e do compromisso de conferir estabilidade política ao governo”. Cunha estava preparando sua eleição para a presidência do “digno” corpo parlamentar. A movimentação partidária reformista do governo assustou os ignotos PPS e PMN (siglas que, como outras tão desconhecidas quanto elas, designam grupos de mamíferos profissionais do orçamento estatal) ao ponto de leva-los a criar o MD (mais uma sigla), que surgiu com 13 deputados federais, 58 estaduais, 147 prefeitos e 2527 vereadores, ou seja, com um orçamento multimilionário. Através do Fundo Partidário, agora expandido, e negócios conexos, constituiu-se, no Brasil, uma camada social de parasitas do fundo público, abrigados em siglas conhecidas, desconhecidas, ou em mutação permanente. O projeto reformista de Dilma criaria, além do mais, uma espécie de reserva de mercado para os beneficiários da grande mamata.

A crise capitalista não apenas encolhera o PIB per capita (o PIB geral teve crescimento nulo em 2012), mas afetara diretamente os grupos capitalistas mais beneficiados pela política governamental. As empresas do grupo X, do bilionário Eike Batista (que já planejava virar o homem mais rico do mundo: “Não sei se vou ultrapassar [o mexicano] Carlos Slim pela direita ou pela esquerda”, declarou pública e alegremente), empresas avaliadas em quase R$ 100 bilhões (US$ 55 bilhões) em outubro de 2010, sofreram violenta queda na Bolsa em 2013, obrigando-o a vender parte delas, e a solicitar o generoso auxílio do BNDES para salvar o restante. O volume de crédito público (BNDES e outros) carregado pelo “empresário nacional” se situava na casa dos R$ 10 bilhões, em torno de 20% de seu capital de fumaça. Era a ruína do “capitalismo nacional” criado por uma década de “governo popular”.

A saída para os supostos “capitalistas de risco (alheio)” seria o mercado externo, não pela via das exportações (cada vez mais abaixo das importações, no saldo da balança comercial: só a balança de serviços registrou déficit de US$ 41 bilhões em 2012), mas pela via dos investimentos, que consumiram R$ 18 bilhões do BNDES em seis anos, somados empréstimos e aportes de capital (só no grupo JBS a exposição do banco estatal era de R$ 5,5 bilhões). Lula, em que pese suas precárias condições de saúde, virou embaixador itinerante do grande capital brasileiro, advogando pelo mundo afora os interesses da Vale do Rio Doce, segunda mineradora do mundo, controlada (com maioria acionária) pelo fundo de pensão do Banco do Brasil, Previ, controlado, por sua vez, pelo governo e pelo sindicato bancário (da CUT).

A crise mundial tocava o coração do capital industrial brasileiro (e do capital financeiro que o bancava). A dívida da Odebrecht atingira R$ 62 bilhões, com bancos e investidores que compraram suas debêntures: o débito provocou um prejuízo de R$ 1,58 bilhão ao grupo. Depois de se firmar como a maior empreiteira do país, dominar o setor petroquímico com a Braskem e espalhar sua marca pela produção de etanol e a construção de submarinos, a Odebrecht começou a encarar a crise mundial. A dívida estava espalhada por várias empresas, e dobrara desde 2010. As empresas da Odebrecht tiveram lucro operacional de R$ 4,6 bilhões, mas esse desempenho foi comido pelo crescimento das despesas financeiras decorrentes da dívida, e virou prejuízo. O grupo pagou R$ 3,3 bilhões em juros e seu balanço ainda sofreu impacto negativo de R$ 3,5 bilhões como consequência da valorização do dólar. Embora sua receita tivesse crescido 22%, totalizando R$ 76 bilhões em 2012, a dívida equivalia a mais de 3,5 vezes o patrimônio líquido de R$ 17 bilhões da Odebrecht.

Desde que assumira a presidência, Dilma tentou conter os efeitos da crise com cortes no orçamento das áreas sociais (R$ 50 bilhões em 2011, e R$ 55 bilhões em 2012) e com a desoneração da folha de pagamento para os empresários. Para “salvar a indústria”, sua principal medida foi zerar a contribuição previdenciária de vários setores. Pelo pacote chamado “Brasil Maior”, os empresários de 42 setores foram liberados da sua contribuição de 20% à previdência até 2016. Em 2013, a perda da receita foi estimada em R$ 12 bilhões. Em quatro anos seriam R$ 60 bilhões em renúncia fiscal previdenciária, o maior ataque já feito à previdência pública.

Os investimentos nos transportes caíram de R$ 13,5 bilhões em 2011 (0,33% do PIB) para R$ 9,2 bilhões em 2012 (0,21% do PIB) e continuaram a cair em 2013. O capital financeiro foi contemplado com a elevação da taxa básica de juros em 0,25% (chegando a 7,5%), o que não impediu a elevação brutal do endividamento externo. A ANP promoveu, sob os governos petistas, maior número de rodadas de leilão de recursos energéticos que sob os governos do PSDB: as empresas vencedoras só pagariam os royalties, uma parcela mínima do faturamento. Foi posta a venda uma quantidade de petróleo que, revertida em dinheiro, era maior do que o PIB anual do país, de US$ 2,3 trilhões de dólares, em leilão com multinacionais como a Shell, Chevron, Repsol, Exxon Mobil Corp e British Petroleum, onde foram postos à venda potenciais 37 bilhões de barris de petróleo, mais de US$ 3,7 trilhões em 289 blocos, sendo 166 no mar – 81 em águas profundas, 85 em águas rasas – e 123 em terra.

Nos leilões petroleiros, o petróleo fica para a empresa que ganhar o bloco, ela pode fazer com ele o que quiser. As empresas estrangeiras beneficiadas declararam que não queriam construir refinarias no país, nem exportar derivados (ou seja, industrializar a matéria prima extraída no país). O governo aplicava uma política de lucro a qualquer custo, com o aumento das terceirizações e dos acidentes de trabalho. Para cada petroleiro concursado (cerca de 90 mil em todo Sistema Petrobras), já eram quatro os terceirizados (mais de 300 mil).

Além dos leilões do petróleo, Dilma também abriu caminho para a privatização dos terminais da Transpetro, na lista dos 159 terminais passíveis de licitação. A MP dos Portos foi “aprovada depois de impressionante guerra político-empresarial no Congresso”, segundo André Singer, porta-voz do primeiro governo Lula: “Além de aumentar a privatização dos portos, a MP acelerou a galopante privatização do Legislativo brasileiro... a pretexto de aumentar a concorrência, o novo marco regulatório parece ter dado a alguns gigantes econômicos benefícios de tal ordem que, no médio prazo, os portos estatais irão quebrar”.
O volume total da dívida pública federal atingiu a cifra de R$ 1,9 trilhão, uma elevação de R$ 85 bilhões ao longo dos últimos 12 meses: não obstante o pagamento de mais de R$ 140 bilhões a título de juros da dívida pública no mesmo período, o governo ainda promoveu o crescimento do valor do principal em quase 5%. A dívida total (interna e externa) da União representava 45% do PIB. A dívida global do setor público das três esferas de governo representava 60% do PIB. Desde a crise de 2008, a dívida externa brasileira aumentara 60%, impulsionada pelo endividamento das empresas (o endividamento externo do país subiu de 12% para 13,9% do PIB).

As Jornadas de Junho 2013

A outra face da crise brasileira era o aguçamento da luta de classes. Brasil teve 873 greves em 2012, o maior número desde 1996, quando as greves pipocavam contra o governo FHC. A maioria no setor privado, com 461 greves, 53% do total e 103% a mais do que em 2011. Em março desse ano, 20 mil operários da usina Jirau, em Rondônia, seguidos pelos trabalhadores da usina Santo Antônio, protagonizaram um impressionante levante e queimaram os escritórios da empreiteira Camargo Correa, os dormitórios e 45 ônibus, contra as condições escravocratas de trabalho impostas pela empresa amiga do “governo dos trabalhadores”. O número de horas não trabalhadas (86.568 horas paradas) foi em 2012 o maior desde 1990 (governo Collor), em aumento de 37% em relação a 2011. A questão salarial foi o maior motivo das greves. A greve das universidades (Andes e Fasubra), que teve início em 17 de maio de 2012, durou 124 dias.

As greves econômicas e mobilizações políticas continuaram em inícios de 2013. Os vinte mil manifestantes em Brasília convocados pela Conlutas (com a presença da “CUT Pode Mais” e de outros setores) em 24 de abril, com cinco quilômetros de percurso, não foram um raio em céu de brigadeiro. Até médicos, dentistas e enfermeiras dos planos privados de saúde paralisaram contra as remunerações degradantes, contrastantes com os lucros de planos privados de saúde entre os mais caros e restritivos do mundo para os segurados, um fato complementar à asfixia financeira da saúde pública. Que também lutava contra a entrega de sua gestão ao setor privado no seu setor de ponta, os hospitais universitários (mediante a Esberh), e contra a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos hospitais estaduais pelas Organizações Sociais (OSs). Os trabalhadores dos hospitais, a comunidade acadêmica, a população usuária do Sistema Único de Saúde (SUS) e as entidades contrárias à privatização se mobilizaram, obrigando várias universidades a retirar de sua pauta a votação da adesão à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.

Os professores da rede estadual de São Paulo (com o mais numeroso sindicato do país, a Apeoesp) entraram em greve, reivindicando a reposição salarial 36,74%, nada mais que as perdas contabilizadas desde 1998. As obras do PAC e dos grandes eventos foram palco de irrupções de movimentos espontâneos, assim como outros setores da indústria, dos serviços, do funcionalismo público e do comércio. Até a CUT teve que declarar sua oposição ao brutal substitutivo ao Projeto de Lei 4.330/2004, que institucionalizava a terceirização de atividades fim no serviço público.

Os valores do orçamento destinados às políticas sociais, por outro lado, continuaram diminutos quando comparados aos favorecimentos e benesses concedidas ao capital. Um rumor de fim do Programa Bolsa Família, no entanto, levou milhares de pessoas desesperadas às agências da Caixa Econômica Federal para retirar os tostões acumulados. Os valores atribuídos ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (reforma agrária e agricultura familiar) equivaliam à metade dos recursos para os grandes proprietários atendidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A reforma agrária estava simplesmente parada: 23 mil assentamentos em 2012, a taxa mais baixa desde 1994, contra 137 mil em 2006. A inflação dos itens alimentícios básicos estava vinculada aos monopólios do agronegócio: desde 1990 até 2011, a área plantada com alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca e trigo) declinou de 31%, 26%, 11% e 35%, respectivamente, enquanto a dedicada às culturas de exportação (cana e soja) aumentou, respectivamente, em 122% e 107%.

Os indicadores da “estabilidade macroeconômica” começaram a apresentar uma forte tendência para a deterioração. E, principalmente, a juventude brasileira protagonizou em 2013 jornadas de luta que expressaram a indignação com a falta de qualidade da educação pública, o descaso com a saúde, os problemas de mobilidade urbana, a insegurança devida a falência na matéria do próprio Estado, e um forte questionamento sobre o destino da verba pública. A população se mostrou sensibilizada também pelo escandaloso gasto governamental em estádios de futebol elitizados: “A profundidade da crise se tornou nítida no mês de junho, com as manifestações de amplos setores da sociedade atuando fora do ordenamento político e sindical tradicional. O fator surpresa deu a tônica em todas as frentes da organização nacional, dos serviços de inteligência da presidência da república às lideranças político-econômicas e sindicais, até os politólogos de plantão. Os conceitos tradicionais da ciência política (sociedade civil, ideologia, direita e esquerda) já não revelavam qualquer eficácia ou pertinência”.78

Os acontecimentos, porém, não foram assim tão ininteligíveis. O movimento de manifestações de rua pela redução da tarifa de transporte começou a 6 de junho de 2013, com manifestações que reuniram 2.000 pessoas na Av. Paulista. Dez dias depois, os jornais avaliavam subestimados 230 mil manifestantes em doze capitais. A 20 de junho, os manifestantes já se contavam na casa do “mais do milhão”, com um milhão só no Rio de Janeiro. O movimento cresceu aproximadamente 100.000% em 15 dias, um índice capaz de fazer corar os maiores índices hiperinflacionários da história (se 2.000 = 100; 2.000.000= 100.000), como se cada um dos 2.000 manifestantes paulistanos iniciais tivesse recrutado mil manifestantes novos em quinze dias. Uma representação gráfica deste fenômeno só poderia ser realizada usando uma escala logarítmica.

O uso massivo das redes sociais revelou-se um meio eficiente para acelerar a velocidade e ampliar a difusão das mobilizações. Até 13 de junho tínhamos “vândalos” nas ruas (segundo o poder político e a grande imprensa); a partir de 17 de junho, eles eram “manifestantes”. Dilma Rousseff, depois de ficar muda por semanas, declarou que as manifestações populares fortaleciam o regime político e, depois dessa façanha intelectual, calou-se. Diante do mutismo, uma penca de “movimentos sociais”, também mudos até então, incluindo os pelegos da última década (mas também o MST) lhe propôs “a realização com urgência de uma reunião nacional, que envolva os governos estaduais, os prefeitos das principais capitais, e os representantes de todos os movimentos sociais”, além do próprio governo federal, ou seja, uma monumental convenção federal de bombeiros, incluindo (via governadores e prefeitos) os representantes da direita mais corrupta do país.

O MPL foi o feiticeiro que invocou demônios, uma direita fascista/paramilitar, que disputou a hegemonia do movimento nas ruas, que o próprio MPL não conseguia mais esconjurar? Não. O MPL fez exatamente o que devia e anunciou fazer. Para que aquilo não acontecesse, era preciso não fazer nada. Tirar R$ 0,20 da tarifa foi uma vitória, mas foi só a primeira. O aumento das tarifas de transporte foi o estopim de uma situação social degradada (e, em muitos aspectos, piorada nos últimos anos), mas não qualquer coisa pode ser um estopim. Os transportes e suas tarifas são o resumo cotidiano da miséria brasileira. Que se padece todo dia, no bolso, na pele e no corpo. E nos nervos. As redes sociais não têm nada a ver com isso. Não é possível usar um laptop viajando em pé em um ônibus superlotado das periferias brasileiras.

Alguns jornalistas se manifestaram “surpresos” e até “atordoados” com o crescimento, geométrico e nacional, da mobilização. Ou, como se perguntou uma conhecida jornalista da Folha de S. Paulo: “Parecia tudo tão maravilhoso no oásis Brasil e, de repente, estamos revivendo as manifestações da Praça Tahrir, no Cairo, assim de repente, sem aviso, sem um crescendo. Fomos todos pegos de surpresa. Do paraíso, deslizamos no mínimo para o limbo. O que está ocorrendo no Brasil?”.

Inicialmente convocados pelo MPL contra o aumento das tarifas dos ônibus urbanos, para mobilizações minoritárias que foram violentamente reprimidas pela Polícia Militar, a partir de meados de junho as manifestações adquiriram um volume sem precedentes na história recente do país: a grande virada deu-se a 17 de junho, quando centenas de milhares, milhões segundo alguns observadores, tomaram as ruas das capitais, em especial Rio de Janeiro e São Paulo, contra a repressão aos manifestantes e contra a degradação dos serviços públicos. Os prefeitos das capitais e de outras cidades viram-se obrigados a suspender o aumento de tarifas; em alguns casos, isso foi feito, preventivamente, até em cidades em que não tinha havido mobilizações de rua. A suspensão do aumento foi celebrada, merecidamente, como uma vitória extraordinária do movimento popular, mas não arrefeceu o ímpeto do movimento.

A crise política suscitada pelas jornadas de junho foi espetacular. A PEC nº 37, enviada pelo governo ao Congresso foi rejeitada por 430 votos contra 9. A PEC propunha retirar o poder investigativo do Ministério Público, reservando-o só para a Polícia Judicial, uma manobra para que o Judiciário, que tinha escapado ao controle do governo, parasse de investigar os casos de corrupção governamental. Toda a bancada do PT votou contra o governo, que ficou sem “base aliada” parlamentar. O índice de aprovação de Dilma Rousseff caiu para 30%, depois de ter atingido quase 70% nos meses prévios.

Um fato notável da nova situação política foi o divórcio da esquerda dos movimentos de luta, o maior desde o fim da ditadura militar. Esse fenômeno remontou às jornadas de junho, que a esquerda (do PT ou fora do PT), inicialmente, simplesmente ignorou. Quando, tardiamente, se somou à juventude em luta, não o fez com palavras de ordens antigovernamentais, mas… em defesa de si mesma (depois de haver sido recebida com pontapés e coros de “oportunistas” nas manifestações). Para piorar as coisas, fê-lo organizando colunas em comum com o PT (ou seja, com o governo). Uma esquerda que apostara todas suas fichas em virar alternativa política no desgaste do governo do PT via esse desgaste consumar-se enfrentando a perspectiva de seu pior isolamento político.

Não faltou quem teorizasse essa situação, escrevendo (em espanhol): “Hubo quienes creyeron que las manifestaciones del 2013 eran democráticas, que criticaban al gobierno y al PT desde un punto de vista de izquierda. Tremendo engaño: era el comienzo de la onda de descalificación de la política, primer paso para la ofensiva de la derecha. Hubo quienes, desde la ultra izquierda, saludaban el final de los gobiernos del PT, su fracaso, el final del ciclo de gobiernos progresistas en América Latina, como si hubiera llegado la hora a la ultra izquierda. Enorme engaño: la alternativa al PT y a los gobiernos progresistas está en la derecha”.79 Alguns intelectuais petistas qualificaram as “jornadas de junho” simplesmente como equivalentes à emergência do fascismo.

A manipulação apolítica (isto é, direitista) e midiática das jornadas de junho foi tornada possível por um complexo de fenômenos contraditórios: “Vencida a batalhas das tarifas, os protestos multiplicaram o leque das reivindicações. Nos cartazes improvisados levados às manifestações protestava-se praticamente contra tudo. A grande mídia fez alarde da presença de palavras de ordem nacionalistas e até mesmo autoritárias. Em várias cidades, organizações empresariais aproveitaram a confusão para infiltrar pessoas contratadas para empunhar cartazes impressos com palavras de ordem como ‘menos impostos’ e ‘imposto zero’, que destoavam completamente do que vinha sendo reivindicado”.80

A perplexidade adveio da manifestação puramente política, ainda que detonada pelos aumentos de tarifa do transporte público. Eles baixaram em mais de cem cidades e, ainda assim, as manifestações prosseguiram... Nas manifestações de junho em São Paulo, a pauta das ruas se duplicou. Na pauta popular, organizada de baixo para cima nos primeiros dias, era central a questão da tarifa de transporte induzida pelo MPL. De outro lado, (houve) uma pauta que veio de cima para baixo. Esta era a pauta de massa... A pauta massificada nasce de baixo apenas aparentemente... Não tem carros de som nem palanques com oradores. Aqui reside a apropriação farsante da atuação do autêntico MPL, pois os locutores daqueles que expulsaram as esquerdas das ruas são invisíveis. Seu palanque é, entre outros, a cobertura televisiva cuja audiência cresceu acompanhando os protestos...

Apesar de a maioria dos jovens manifestantes usarem a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação. A também é também um espaço de interação entre indivíduos mediados pelo mercado de consumo, e vigiado pela ‘inteligência’ dos governos... Na primeira onda de manifestações encerradas em junho, o MST e os partidos de esquerda não lograram polarizar a vida política. Enquanto os protestos desmaiavam nas tuas já cansadas do fim do mês, algo de novo se insinuava no ar. O roteiro previsível da política brasileira se tornou incerto”.81 A burguesia brasileira começou a discutir a urgência de uma reforma política e até a possibilidade de uma Assembleia Constituinte, reconhecendo não estar diante de uma revolta passageira.

A 11 de julho, tardiamente, a CUT e as outras centrais sindicais convocaram para uma paralisação geral de atividades, tentando “recuperar” o movimento que tinha abalado o país e questionado o governo e o regime político todo. A tentativa fracassou, a paralisação teve pouco efeito, e sua tentativa de se apresentar como a continuidade das jornadas de junho caiu em saco vazio: “Das centrais sindicais que participaram, muitas são completamente atreladas aos projetos de governo e é difícil para a população entender como elas, que apoiam mais ou menos o governo, de repente tornam-se parte de um movimento de oposição”.82 E, tão logo o nível da mobilização popular decresceu, em julho, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza saiu de casa na Rocinha, comunidade da zona sul do Rio de Janeiro, detido por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), e nunca mais voltou. 25 policiais militares foram acusados de terem torturado e sumido com o corpo do ajudante de pedreiro.

As relações políticas e até culturais entre as classes mudaram no Brasil depois das grandes mobilizações de junho. Os “rolezinhos”, em que jovens da periferia das grandes cidades invadiram os shoppings centers dos bairros “exclusivos” para fazer barulho com música funk a todo volume, transformaram-se em parte do cotidiano urbano. A queda livre da popularidade de Dilma Rousseff foi produto das mobilizações massivas desencadeadas pelos aumentos no transporte e a posterior repressão. O governo arquivou todas as promessas realizadas nesse momento (Assembleia Constituinte, reforma política, pré-sal para educação). A decomposição do sistema político jogou lenha na fogueira da insatisfação popular. Nem se dissipara o escândalo do mensalão e aparecera outro que poderia apequená-lo: a denúncia da compra superfaturada, durante o primeiro governo Lula, de uma refinaria em Pasadena por parte da Petrobras.

Brasil em Ritmo de Copa

O alcance da onda grevista que percorreu o país em 2014 se viu potenciado pela sua junção com as lutas populares (juventude, bairros, sem teto) que deram continuidade ao movimento iniciado em junho de 2013. O primeiro aniversário das jornadas de junho foi celebrado, em meio à Copa do Mundo, tendo como pano de fundo a participação relevante do grande ausente de 2013: o movimento operário organizado. 15 mil petroleiros de Cubatão cruzaram os braços rejeitando a proposta de reajuste salarial da patronal. Professores de todos os ciclos (fundamental, secundário, terciário, universitário) e de todos os setores (federal, estadual, privado) protagonizam uma inédita onda de lutas em todo o Brasil, embora sem coordenação devido à dispersão sindical.

Os servidores públicos federais realizaram marchas e bloqueios nos estados, assim como marchas unificadas de categoria em Brasília. Até policias civis e federais se somaram ao movimento grevista, o que provocou situações de caos na Bahia e no Pernambuco. Numa luta exemplar, em junho de 2014, os rodoviários de Rio de Janeiro, primeiro, e os de São Paulo, depois, paralisaram as atividades (e, de cambulhada, paralisaram também as cidades, ou seja, as duas mais importantes capitais do país) por reajustes salariais acima dos índices inflacionários oficiais e contra os acordos salariais celebrados pelos índices oficiais entre a patronal do transporte e a burocracia sindical. Outro exemplo significativo foi o das greves dos operários da construção civil nos canteiros de obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj).

A tática de levar a greve para a rua, na forma de grandes manifestações foi empregada pelos trabalhadores da limpeza urbana do Rio de Janeiro (os garis), que em pleno carnaval de 2014 paralisaram suas atividades para garantir melhorias salariais e de condições de trabalho; a paralisação se encerrou com ganhos substantivos para os trabalhadores. A solidariedade ao movimento dos garis e do Comperj, o impacto das greves de rodoviários e metroviários em Rio e São Paulo, manifestaram a importância e o impacto que a solidariedade de classe possui para o desfecho vitorioso das lutas.

E continuaram as lutas populares e juvenis. A 8 de maio de 2014, o MTST (trabalhadores sem teto) conseguiu, pela primeira vez, suscitar manifestações pela moradia em oito estados do país conjuntamente. Até a Veja teve que deixar entrar um raio de “racionalidade” em seu reacionarismo: “Fora os incêndios promovidos pelo crime organizado, o Brasil em chamas é outro: está nas periferias, nas favelas, é repentino, explosivo e sua paciência parece perto do esgotamento”. Em muitas categorias não houve greve simplesmente porque a patronal concedeu de cara reajustes acima da inflação (a oficial) antes de suas empresas, engordadas pelos superlucros, virarem um caldeirão. O superávit primário (para continuar a pagar a dívida com os credores financeiros do débito público) projetou R$ 86 bilhões para 2014, para uma necessidade de R$ 99 bilhões (quase 2% do PIB): era preciso fazer um caixa de R$ 13 bilhões sangrando o serviço público, a educação, a saúde, o transporte e os trabalhadores. No mesmo momento, gastavam-se mais de R$ 40 bilhões para fazer a Copa, e vencer as eleições de outubro.

No setor privado, a sobreprodução de automóveis, eletrodomésticos e linha branca, tornou-se espantosa. Mas o crédito para consumo também estava “perto do esgotamento”, num Brasil endividado: o crédito ao consumo teve, em 2013, a menor taxa de crescimento dos últimos dez anos, empatando com o desempenho do PIB (2,3%), ou seja, estancou. O mercado externo não estava muito melhor. O cliente n° 1 do país, a China, só comprava produtos primários (soja + ferro [não aço] + petróleo = 80% das compras chinesas); mandou seu presidente a uma visita ao Planalto para barganhar descontos nesses itens, e comunicar que aumentariam as barreiras alfandegárias chinesas para produtos com maior valor agregado.

A maior parte do incrementado gasto de segurança foi destinada à compra de armamento. Parte do pessoal de segurança foi treinada por uma empresa paramilitar norte-americana acusada de massacrar civis no Iraque (a Blackwater). Ainda não tinham se apagado as repercussões da greve policial na Bahia quando se sublevaram as favelas do Rio de Janeiro, já militarizadas, em contra da brutal morte de um jovem e de uma idosa, durante uma ação policial “de rotina”. A população dos subúrbios brasileiros se manifestou contra as unidades policiais “de pacificação” (UPPs), acusadas de violar direitos humanos elementares. A Folha de S. Paulo comentou alarmada: “O sentimento de insegurança do eleitorado não parecia tão intenso desde as graves crises de 1999, a da primeira grande desvalorização do real, e de 2001, a do racionamento da eletricidade. O pessimismo extraordinário aparece na enorme quantidade de eleitores que esperam um aumento da inflação”. Os pequenos (comparados as décadas de 1980 e 1990) “surtos inflacionários” “talvez hoje esgotem a paciência do cidadão mais rapidamente”.

As greves (petroleiros e garis do Rio, rodoviários de Porto Alegre, bancários) em setores com sindicatos pelegos (da CUT o da Força Sindical), ou quase sem organização (garis) puseram em evidência o papel das oposições sindicais (em que a esquerda classista joga um papel), responsáveis por esses movimentos, que em geral permaneceram isolados do restante da classe operária e dos movimentos juvenis. Para as eleições gerais de outubro 2014, no entanto, o debate eleitoral da esquerda se desenvolveu desconectado das grandes lutas operárias e populares. O resultado foi a dispersão eleitoral da esquerda, sob o manto de um discurso “unitário”. E não faltaram “esquerdistas” que qualificaram os jovens que manifestaram contra a Copa e seus gastos faraônicos de “instrumentos da direita” (sem denunciar a superexploração dos operários encarregados da construção em tempo recorde dos estádios, que sofreram uma dezena de acidentes fatais). A recuperação da popularidade do governo, iniciada na segunda metade de 2013, viu-se novamente questionada.
O PMDB, dono do maior bloco parlamentar (e do maior número de governadores e municípios) ameaçou sair da base política do governo. Na primeira votação parlamentar depois do ultimato peemedebista, o governo perdeu. A sangria financeira do país ficou clara a partir de dados do Banco Central; no total, o setor público brasileiro tinha tido uma despesa de R$ 249 bilhões em 2013 com juros. Foi o maior valor anual desde 2002. De 2009 a 2013, os gastos com juros somaram R$ 1,065 trilhão. Apenas R$ 491 bilhões foram pagos com dinheiro arrecadado com impostos e outras fontes. Os demais R$ 574 bilhões vieram de novas dívidas. A dívida líquida do governo diminuíra como percentual do PIB, mas o problema não era a dívida líquida, e sim a bruta.

Uma parte do capital financeiro internacional baixou o polegar para Dilma Rousseff. A agência de classificação de risco Standard & Poor’s reclassificou o Brasil no nível mais baixo do chamado “grau de investimento”: um ponto mais em baixo significaria o sinal para uma fuga maciça de capitais, os mesmos que com seu fluxo externo tinham mantido o precário equilíbrio das contas do país. A resposta do BC foi a elevação da taxa básica de juros (Selic) até 11%, ou seja, mais remuneração para o capital financeiro investido em títulos públicos do país. Os acenos feitos pelo governo aos especuladores internacionais no Fórum Econômico Mundial de Davos, que Dilma qualificou de nova “Carta aos Brasileiros” (aquela que garantiu o sinal verde do capital internacional para a vitória eleitoral de Lula em 2002), não foram suficientes.

A elevação na arrecadação federal permaneceu num ritmo baixo e inferior ao previsto pelo governo, que esperava crescimento de 3% nas receitas federais em 2014 para pagar os juros da dívida pública. O ritmo de crescimento menor que o previsto se deveu, em grande medida, às desonerações concedidas ao grande capital e ao crescimento do PIB menor do que o previsto na LDO.

O beneficiamento do capital em geral, com uma renúncia fiscal que bateu recordes históricos em 2014, em especial de seu setor financeiro, beneficiado com juros estratosféricos (a partir de maio, pela primeira vez desde 1980, o índice Ibovespa teve em primeiro lugar uma instituição financeira, o Itaú) não resolveu os problemas oriundos do pífio desempenho da economia brasileira, orientada para as exportações primárias (e sofrendo, por isso, das consequências do fechamento ou estreitamento de mercados externos derivado da crise mundial, que atingira a locomotiva chinesa) e para a valorização fictícia do capital financeiro, que se orientava para os investimentos “mais seguros” nos EUA, que acenaram com a elevação de suas taxas de juros. O programa de metas inflacionárias, que formatou a política econômica do governo PT/PMDB/aliados desde seu início, estava perto do colapso. A inflação oficial projetada duplicava as metas inflacionárias fixadas para 2014, projetando um cenário de carestia que poderia levar a uma queda acentuada do consumo e a uma recessão.

A greve do metrô de São Paulo veio coroar o caminho tortuoso do governo brasileiro para a Copa, atravessado pela mobilização popular contra as negociatas e os gastos faraônicos, e por uma forte ascensão do movimento operário. A Justiça do Trabalho chegou a congelar preventivamente R$ 3 milhões do Sindicato dos Metroviários de São Paulo para garantir o pagamento das multas pelas paralisações que se concretizaram após o julgamento do TRT, que somaram R$ 900 mil, e também das que poderiam ter ocorrido, caso os trabalhadores seguissem com a greve. Criticado pelo golpe às finanças da entidade, o tribunal voltou atrás e definiu o congelamento do valor das multas devidas.

Dilma voltou a sofrer uma queda de popularidade somada à crise política do próprio governo. A “rebelião parlamentar” do PMDB, apresentada como uma encenação com vistas a ampliar a cota do partido no futuro governo da própria Dilma, saiu do seu leito para transformar-se em rebelião pluripartidária dentro da base “aliada” de 18 partidos. A CPI da Petrobrás,83 que evolucionou depois para a “Operação Lava Jato”, foi resultante dessa rebelião. A reeleição no primeiro turno, antes descontada, estava descartada. Nas favelas e bairros pobres diretamente afetados pela expropriação devida aos megaeventos, ou pela repressão crescente, a rebelião popular permaneceu em pé, encabeçada por setores que ignoravam propositalmente a luta política. A militarização da Copa do Mundo começou pelas favelas. Um operativo militar ocupou o complexo da Maré, no Rio, até finalizar o torneio. O governo impulsionou também a lei antiterrorista para penalizar manifestações que se estenderam por grande parte do país.

Manifestações populares em meados de 2014

75% dos brasileiros não aprovaram os investimentos realizados para a Copa. Os R$ 8 bilhões gastos com a construção dos estádios para a Copa do Mundo equivaliam ao dobro do investido pelo governo federal em saúde em 2013, quando o ministério da Saúde investiu R$ 3,9 bilhões. O endividamento das cidades com o Tesouro Nacional derivado dos gastos realizados fez que em dois anos, as dívidas das doze cidades-sede brasileiras da Copa crescessem em 51%. A Copa do Mundo foi realizada sob um verdadeiro estado de exceção, com a colaboração dos EUA e de Israel, este último país com toda sua experiência de combate urbano. Foram mobilizados 180 mil agentes de segurança, incluindo pessoal da segurança privada e das Forças Armadas. No Rio de Janeiro, a mobilização da Polícia Militar que seria realizada durante a Copa foi adiantada em quarenta dias, bem antes da presença de qualquer turista ou time de futebol estrangeiro.

O país voltou a colecionar déficits na balança de transações correntes; uma das principais razões foi o elevado volume de remessas de lucros das empresas estrangeiras para as matrizes. Em 2008, as remessas de lucros e dividendos representaram 95% do déficit nas transações correntes do Brasil com o exterior. Entre 2006 e 2013, os recursos transferidos para o exterior, a título de remessa de lucros e dividendos, por empresas estrangeiras, mais que dobraram, acumulando crescimento de 107%.

As Eleições de 2014

O quadro de acentuação da crise econômica teve repercussões políticas. O episódio eleitoral de 2014 ficou marcado inicialmente pela inesperada ascensão eleitoral de Marina Silva, carente de partido político próprio,84 e cuja única “proposta concreta” era a de um governo “técnico”, isto é, um “governo com as melhores cabeças do país”, qualquer que fosse sua origem político-partidária ou não partidária. Que semelhante engendro (um não partido + uma não proposta) chegasse a encabeçar as sondagens eleitorais foi um índice da falência do sistema político brasileiro.

O PT chegou a cogitar de propor Lula como futuro chefe da Casa Civil (transformando-o numa espécie de primeiro ministro), como garante do poder e governo de fato, transformando Dilma numa espécie rainha de Inglaterra com data de validade, uma “aventura” híbrida de presidencialismo parlamentarista (ou parlamentarismo presidencialista). Isso não foi nesse momento necessário (mas abriu, como se sabe, um precedente, que veio a ser usado em uma situação de desespero), pois, carente de solidez política, sem mais recursos que alguns despautérios reacionários primários dirigidos à sua base eleitoral evangélica, a candidatura de Marina Silva acabou caindo, considerada como uma aventura política por boa parte do empresariado. A vitória eleitoral do PT não correra perigo nas três últimas eleições presidenciais, mesmo quando o PSDB chegou ao segundo turno; o suposto “eleitorado tucano” era, pelo menos em sua metade, um eleitorado anti-PT; assim como, nas duas eleições vencidas por FHC no esteio do Plano Real, o PT não ameaçou sua vitória.

Em um contexto de inflação crescente, para “salvar a economia” até as eleições presidenciais o governo petista apelou novamente para a receita da catástrofe que se avizinhava: afrouxamento das regras financeiras (encaixes e depósitos compulsórios dos bancos) para incrementar ainda mais o crédito ao consumo, em condições de default potencial no consumo privado (com 63% das famílias brasileiras endividadas, e uma percentagem bem maior nas grandes cidades, e com um 20% do total das famílias, ou 33% dos endividados, em situação de atraso ou inadimplência). Em agosto de 2014, o Banco Central reduziu em R$ 15 bilhões o capital mínimo exigido para as operações bancárias, o que se somou ao corte de R$ 10 bilhões realizado em julho: com isso, os bancos puderam adicionar ao sistema de empréstimos a bela soma de R$ 225 bilhões, nove vezes o valor subtraído do capital mínimo exigido pelas normas de “regulação” financeira, uma nova “fuga para frente” que não resolveu nenhum problema estrutural.

No balanço econômico dos primeiros quatro anos de Dilma, o crescimento acumulado do PIB caíra de 19,6% para 7,4% (uma redução de 60% em relação a Lula I e II); a taxa de inflação acumulada aumentou de 22% para 27% (aumento de 20%); o déficit acumulado em conta corrente pulou de 98,2 bilhões de dólares para 268 bilhões da mesma moeda, um aumento de 170%. Manifestava-se a tendência que levaria o Brasil para o buraco mais fundo de sua história econômica. No entanto, na ausência de um ativismo popular independente, as eleições foram confinadas a uma disputa entre os setores dominantes. O empresariado fez mais doações à campanha pela reeleição de Dilma Rousseff (R$ 300 milhões) do que à do governador mineiro Aécio Neves, do PSDB. Esse fator foi decisivo: os votos derivados da “Bolsa Família” são considerados estáveis (27 milhões, aproximadamente) e perfazem só a metade do eleitorado que deu a vitória ao PT. Além da estabilidade política, a grande patronal levou em conta que, em matéria de repressão (militarização e prisões, “lei antiterrorista”) o governo petista superara todos seus predecessores, com a vantagem adicional de que o partido controlava a principal central sindical (a CUT) e tinha laços com os movimentos populares, ou seja, um poder de cooptação de lideranças trabalhistas e populares bem superior ao dos tucanos.

Dilma Rousseff, além disso, anunciou com significativa antecedência que abriria mão, em um segundo mandato, da equipe econômica precedente (encabeçada por Guido Mantega). Buscou, desse modo, absorver a pressão dos "mercados", cuja principal preocupação era que o Banco Central tivesse a capacidade de honrar o pagamento da dívida externa e aumentar os “incentivos” para que o capital especulativo não escapasse do país. Entre os “incentivos” não figuravam somente o congelamento de salários e a redução dos gastos sociais. Um lugar importante foi ocupado pela liberalização do comércio exterior e a mudança da política para o petróleo.

Os esforços do governo para assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia, debilitando o Mercosul e “liberando” a política externa brasileira da Argentina, foram bloqueados pelo governo de Cristina Kirchner, oposto a essa política (como também o era o governo do Uruguai). Na questão do petróleo, o governo Dilma enfrentou a pressão para que a Petrobras atendesse os interesses de seus acionistas privados (aumento do preço da gasolina e uma política de maiores lucros e distribuição de dividendos) e desse mais espaço para as empresas internacionais na exploração da plataforma marítima (pré-sal).

A ascensão eleitoral inesperada da oposição do PSDB (candidatura de Aécio), na última fase da campanha, respondeu a essa tendência frente à crise brasileira. A oposição tucana se declarou contrária ao regime de partilha na exploração do petróleo e contra a legislação obrigando a presença da estatal nas licitações em todos os poços em exploração, na intenção de abrir completamente a exploração ao capital estrangeiro. A redução dos investimentos liberaria também mais capital para a distribuição de dividendos aos acionistas privados externos da Petrobrás, nucleados basicamente nos fundos de pensão norte-americanos e no fundo internacional de investimentos Black Rock.

Nessas condições econômicas e políticas, os projetados vinte anos de governo petista, que alguns chegaram a qualificar como “lulismo”, ou reedição “modernizada” e “democrática” dos vinte anos varguistas, começaram a afundar. O governo petista, ciente do perigo, se pronunciou rapidamente em favor de atender as reivindicações petroleiras do grande capital, e mandou às favas as promessas feitas logo depois da explosão social de junho-julho de 2013 (uso dos lucros petroleiros para melhorar saúde e educação). O resultado eleitoral de outubro, por isso, não expressou a rebelião popular de 2013. Ficaram nos primeiros lugares os agentes políticos principais das classes dominantes.

Abriu-se, nessas condições, uma nova transição política e um período de crise. No primeiro turno, a proximidade dos votos das candidaturas da situação e a da oposição, 41,5% para Dilma (quase 47% em 2010) contra 33,6% do PSDB (32,6% quatro anos antes), com Marina Silva indo de 19,3% para 21,3%, expressou uma derrota política do governo. Embora vencendo nos estados de Minas Gerais e de Bahia, ele foi severamente derrotado em São Paulo e no Rio Grande do Sul, este último um marco da ascensão eleitoral do PT. Dilma Rousseff obteve a menor proporção de votos majoritários para o PT desde que Lula ganhou a presidência em 2003.

As eleições não traduziram a revolta popular de 2013 contra os aumentos das tarifas de transporte e o colapso dos serviços públicos essenciais. Os partidos e coligações se beneficiaram das contradições do movimento popular, em cujo seio operava a burocracia sindical, em especial a governista CUT; do oportunismo eleitoral de um setor da esquerda; e da debilidade dos setores classistas nos sindicatos e na juventude. Sob estas condições, as eleições funcionaram como um espelho distorcido da realidade. As sondagens eleitorais e os meios de comunicação, mais uma vez, mostraram seu caráter manipulador, rebaixando e levantando as chances de cada candidato, de acordo com as circunstâncias e conveniências. A volatilidade pré-eleitoral foi um forte sinal da enorme desconfiança do eleitorado diante das opções apresentadas.

Confirmaram sua hegemonia política as forças responsáveis pela recessão - especialmente as demissões e suspensões na indústria automobilística - a inflação e o aumento do desemprego industrial. Dilma Rousseff começou seu segundo mandato depois de vencer o segundo turno só com 51,6% dos votos. Nas eleições presidenciais anteriores, no segundo turno, Lula havia obtido 61,3% e 60,8% (2002 e 2006) e a própria Dilma, 56% (2010). No berço histórico do PT, o ABC paulista, Dilma foi derrotada. Depois da vitória eleitoral, sua primeira medida foi aumentar as taxas de juros, para “acalmar os mercados”, isto é, aumentar a dívida pública. O capital financeiro já tinha uma taxa de lucro entre 40% e 50% maior que a média dos lucros do país. A segunda foi oferecer o ministério da Fazenda ao presidente do Bradesco, que rechaçou a oferta. Joaquim Levy, ex secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda e economista-chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo FHC, aceitou a pasta.

Um Fracasso Histórico

A explicação para a deterioração extraordinariamente rápida do governo eleito em finais de 2014 não se esgota na conjuntura econômica ou política imediata. A crise acelerada do governo encabeçado pelo PT evidenciou a falência do projeto de pôr em pé um “capitalismo nacional” periférico, alavancado em fundos estatais, em condições de crise econômica mundial: “Na crise capitalista mundial de 2008 e na tentativa de conter seus efeitos no Brasil, o BNDES passou a ter um papel mais danoso aos cofres públicos e as políticas sociais. Nesta direção foi criada uma lei que possibilitou o repasse de recursos da União para o banco. Com isso os cortes do orçamento da União nas despesas sociais passaram a ter destinação também para o financiamento das grandes empreiteiras e para a formação de grandes empresas monopolistas, com o incentivo às fusões e aquisições ou a constituição de ‘empresas campeãs’. De 2008 a 2011 o Tesouro Nacional repassou R$ 291 bilhões ao BNDES para garantir o aumento do seu volume de empréstimo com forte subsídio, pois captava recursos pela taxa Selic de 11,75% e emprestava pela Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP, de 6%. Esse subsídio, em 2011, representava um valor de R$ 20 bilhões, ou quase o orçamento conjunto de todas as universidades federais... Neste período o BNDES emprestou o equivalente a 3,3 vezes mais que todos os recursos emprestados pelo Banco Mundial”.85

No quadriênio posterior ao mencionado acima, a coisa só fez piorar: “Cerca de 80% das operações (do BNDES) são corrigidas pela TLJP, de 5% ao ano até 2014, hoje de 7,5% ao ano, ante 14,25% da taxa Selic. A diferença são subsídios ou subvenções, devidos pelo Tesouro no longo prazo, mas muito concentrados nesta década: R$ 31 bilhões em 2017, R$ 20,9 bilhões em 2017 e R$ 16,1 bilhões em 2019, o que afeta as contas públicas já exauridas pelos erros da política econômica da era Dilma”.86 Os recursos repassados pelo BNDES pularam de menos de R$ 65 bilhões em 2007 para cifras em torno de R$ 190 bilhões anuais em 2013 e 2014, com vistas à criação de “campeões nacionais” ou “grandes empresas com musculatura para se tornarem líderes globais com empréstimos com juros subsidiados”.87 A oposição política “destituinte” de 2016 foi encabeçada por situacionistas da véspera, que não só compactuaram com a expansão da “Bolsa Capital”, como também não possuem proposta do que fazer com essa hipoteca histórica das finanças públicas brasileiras, a não ser declará-la, seguindo um hábito de todos os governos brasileiros, “herança maldita”.88
De modo geral, as experiências nacionalistas e reformistas sociais latino-americanas, de forte vigência política na primeira década do novo século, fracassaram na tentativa de estruturar um Estado nacional independente e de iniciar um processo de industrialização capitalista autônomo, destruindo a supremacia do capital financeiro internacional. Não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma etapa de transição sob a hegemonia do Estado. Em vez disso, criaram uma “boliburguesia” (os “boligarcas” da Venezuela), ou o “capitalismo de amigos” dos Kirchner, através da burocracia governamental (que sangrou financeiramente o Estado).

No Brasil, o “capitalista amigo” do PT (ou melhor, de Lula e Dilma), Eike Batista, das empresas-miragem OGX, “o homem que mais dinheiro ganhou no mundo com o power point”, na risonha definição de The Economist, acabou falindo de modo espetacular e catastrófico, em especial para a Petrobras, da qual tinha “expropriado” (intervenção de Lula mediante) os melhores técnicos, o know how e os dados prospectivos (obtidos por pesquisas financiadas mediante fundos públicos) para a exploração da plataforma pré-sal, tornada antieconômica pela queda dos preços mundiais do petróleo.

Por vias diversas, a crise das commodities afetou todos os “países emergentes”. A Rússia entrou em sua pior crise desde os tempos do calote financeiro de 1998, comovida pela queda do preço do petróleo (posterior à sua elevação especultiva), pelo colapso do rublo e pela bancarrota da maioria dos oligarcas capitalistas russos sob as pressões do capital financeiro mundial. Na Venezuela, a nova associação com os monopólios internacionais do petróleo para a exploração do Vale do Orinoco não divergiu do que as multinacionais negociaram com a Rússia ou com a Argélia: um acordo estratégico para a exploração do mercado mundial e da renda dos hidrocarbonetos. No caso da Bolívia, em que pese as novas taxas impostas às companhias estrangeiras, os monopólios ficaram com o direito a registrar como próprias uma grande parte das reservas de gás e petróleo, e ainda com a possibilidade de condicionar os futuros contratos.

Nas escassas nacionalizações realizadas por esses governos, em suas variantes ditas “radicais” (Venezuela, Equador, Bolívia) os capitalistas (externos e internos) receberam compensações até maiores do valor em bolsa dos capitais “expropriados”. Em nenhum caso revolucionaram a gestão econômica, através do controle ou gestão coletiva da propriedade nacionalizada. As nacionalizações não tocaram os bancos, base da gestão capitalista da economia. O uso dos recursos fiscais extraordinários para compensar os capitais nacionalizados acabou bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico independente. O capital estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial, retornou sob a forma de capital financeiro, usando as indenizações obtidas para a compra da dívida pública.

As nacionalizações das telecomunicações e da eletricidade na Venezuela foram indenizadas aos monopólios que as detinham aos preços de mercado, incluindo o capital instalado e as expectativas de ganâncias futuras. Na Venezuela, o processo de elevação da renda da maioria empobrecida da população não ocorreu às custas do capital, nem pela modificação das relações entre o capital e o trabalho, mas pelo uso dos enormes recursos fiscais, o que criou uma inflação a taxas crescentes, e uma forte corrupção da burocracia civil e militar. Os acordos de Venezuela com o Mercosul serviram só para grandes operações financeiras, como a compra da dívida pública argentina, mas não para abrir um processo de industrialização independente.

Nesse processo, o Brasil se consolidou como a maior e mais lucrativa plataforma mundial de valorização fictícia de capital excedente mundial (no que foi premiado pelas agências classificadoras de risco, antes destas lhe baixarem o polegar). Paralelamente, porém, a fase de crescimento baseada no incremento do comércio externo e interno tocou seu fim. Depois de um período de crescimento lento, que durou até 2003, o consumo anual das famílias brasileiras cresceu, em média, 5,3% entre 2004 e 2010, chegando até 6,4% em 2010. Essas taxas caíram para 4,8% em 2011 e para 3,1% em 2012, desacelerando novamente em 2013; em 2014, o consumo privado cresceu apenas 0,9% (no período 2011-2014, a taxa média foi de 3,1%, sensivelmente inferior àquela da década precedente).89

A fraqueza política do segundo governo Dilma, por outro lado, foi evidente desde seu início. Os cinco estados comandados pelos tucanos a partir das eleições de 2014 tiveram, em 2013, uma arrecadação de R$ 545 bilhões; os cinco estados governados pelo PT, só R$ 114 bilhões; os sete estados do PMDB (o “aliado” vira casaca por excelência), R$ 288 bilhões. O PT elegeu em 2014 sua menor bancada de deputados federais (70) desde 2002 (quando elegeu 91 deputados). Nas assembleias estaduais, enquanto o PMDB praticamente manteve seus eleitos em relação a 2010 (142, contra 149 naquele ano), o PT caiu de 148 para 108 eleitos.
O PT perdeu fôlego, enquanto cresceram siglas neonatas manipuláveis pela burguesia (que as financia 100%). Na primeira votação parlamentar depois da reeleição de Dilma, a proposta do governo de submeter as “decisões governamentais de interesse social” à opinião de conselhos populares, a presidente reeleita sofreu uma derrota acachapante, com base na oposição conjunta PMDB-PSDB. Nessas condições, o quarto mandato presidencial do PT começou sob o signo: a) da crise econômica e política; b) da tentativa de orquestrar um ataque estrutural contra as conquistas trabalhistas e as condições de vida dos assalariados brasileiros, com vistas ao “equilíbrio fiscal” e ao rebaixamento do “custo Brasil” (recuperação da taxa de lucros), supostamente para gerar uma nova corrente de investimentos externos e internos.

As previsões oficiais de crescimento econômico (1% do PIB) não ocultaram as previsões mais realistas do “mercado”, que anteciparam um retrocesso econômico (queda do PIB per capita, com 0,1% de crescimento). As exportações de manufaturados (base principal da produção industrial) haviam se situado em 2014 em US$ 6 bilhões abaixo de 2008, um retrocesso absoluto de 17%. A balança comercial teve um déficit de US$ 3,93 bilhões, o maior em 14 anos. O déficit comercial em bens industriais (importações/exportações de bens manufaturados) subiu 150% em cinco anos de suposta “não crise” ou “marolinha” (só a excepcional Arábia Saudita fez pior na economia mundial).

A Crise dos “Emergentes”: Petróleo e Matérias Primas

O Brasil mergulhara de vez na crise mundial. Em 2009, a arrecadação fiscal experimentara sua primeira queda desde 2003. Depois da fase mais aguda da crise mundial iniciada em 2007-2008, o oceano de derivativos financeiros retrocedeu só um pouco. Sua função continuou sendo vital para o capitalismo contemporâneo, não podendo ser abolida sem precipitar o colapso do sistema inteiro. Novas bolhas enormes de capital financeiro se formaram quando a liquidez disponível foi dirigida massivamente, uma vez mais, para atividades especulativas. Particularmente, o carry trade (inversões financeiras em países com altas taxas de juros que são financiadas pelos empréstimos em outros países com baixas taxas de juros), baseado no enfraquecimento do dólar, alimentou a especulação, desvirtuou os efeitos do pacote de estímulos, e redirecionou o fluxo de dinheiro para fora dos Estados Unidos. Os mercados financeiros levantam voo novamente, ainda que na esfera da produção dominassem a capacidade ociosa e a superacumulação de capitais, abrindo mais ainda as tesouras entre o capital fictício e o produtivo.

Na nova onda da crise econômica mundial, com o colapso dos preços das matérias primas, os países que se encontraram em situação mais comprometida foram a Venezuela, o Brasil, a Rússia e a Nigéria, e no caso das companhias, as estatais Gazprom, Petrobras e PDVSA, e também as companhias independentes que exploram gás e petróleo não convencionais nos Estados Unidos, fortemente endividadas por empréstimos com taxas de juros acima do mercado. A produção estava crescendo com um ritmo superior a demanda, gerando uma sobreprodução que teve sua principal causa situada nos EUA, que com métodos não convencionais de extração de petróleo e gás aumentara a produção, superando a todos os países membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).

A baixa dos preços do petróleo e das matérias primas teve um efeito devastador sobre companhias e Estados produtores, estendido ao sistema bancário que os financiava e ao mercado de valores que cotizava suas ações. O sistema financeiro dos EUA começou a se preocupar com a possibilidade de um calote geral. Em seis meses, o petróleo perdeu metade do preço. A queda entre junho de 2014 (US$ 105 o barril) e janeiro de 2016 (US$ 32 o barril) foi ainda maior. Os especialistas discutiram se essa queda obedecia a um excesso de oferta ou uma retração da demanda. Tratou-se, na verdade, da conjunção de ambos os fatores: uma sobreprodução originada pelo investimento no mercado de jazidas que implicavam maiores custos de produção, e uma retração do consumo devido a recessão da Europa e parcialmente da Ásia. O impacto positivo que a queda dos preços poderia ter para o consumo final ficou neutralizado pelo incremento do valor real das dívidas, impagáveis, que produziu a redução dos preços.

A sobreprodução fez com que os países da OPEP tivessem mais de 32 milhões de barris diários postos no mercado. Depois do fim das sanções, o Irã elevou sua produção para três milhões de barris diários, e Iraque dispõe de 4,3 milhões adicionais. Nos EUA, em consequência da revolução do shale gas, gás de xisto, passou-se de uma produção de 4,6 milhões de barris diários em 2005 para 9,6 milhões de barris diários”.90 A OPEP e a Arábia Saudita aumentaram a produção acuados pela redução de suas receitas fiscais; o déficit orçamentário de Arábia Saudita chegou a quase US$ 100 bilhões em 2015.

Omã e Bahrein, pressionados por crescentes déficits fiscais, aumentaram a produção de combustíveis entre 50% e 125%. Irã se juntou ao mercado, graças aos compromissos nucleares amarrados com os Estados Unidos, e em pouco tempo passou a exportar um milhão de barris diários.91 As demissões mundiais no setor petroleiro, altamente qualificado, ultrapassaram 250 mil postos de trabalho. A tabela mundial da produção de petróleo mudou drasticamente em cinco anos.

Produção de petróleo em 2016 (milhões de barris por dia/país)
Estados Unidos
11,6
Arábia Saudita
11,5
Rússia
10,8
Canadá
4,2
China
4,2
Emirados Árabes Unidos
3,7
Irã
3,6
Iraque
3,2
Kuwait
3,1
México
2,7
Venezuela
2,7
Nigéria
2,3
Brasil
2,3

Em 2015, os gigantes do ouro negro suprimiram ou adiaram 68 megaprojetos no valor de US$ 380 bilhões. Planos de investimento mirabolantes nas areias bituminosas do Canadá ou em perfurações marítimas em Angola ou no Cazaquistão foram abandonados. Numerosas zonas de extração tradicionais foram afetadas... 150 plataformas do Mar do Norte serão desmanteladas nos próximos dez anos”.92 O crescimento da oferta era uma parte do problema, mas não o único. O alto endividamento das empresas petroleiras dos Estados Unidos, que contrataram um grande volume de créditos animados pelas baixas taxas de juros quando o preço do petróleo era três a quatro vezes maior, levou-as a inundar o mercado de petróleo para cumprir seus compromissos financeiros.

A queda dos preços do barril de petróleo levou a que, apenas em 2015, o preço médio se reduzisse à metade, continuando a queda espetacular que, em seis anos, o levou de US$ 140 para cerca de US$ 30. Sem dúvida, o colapso dos preços dos produtos energéticos (não somente do petróleo, mas também do gás e derivados) pôs, de fato, de joelhos três economias, que segundo algumas análises, eram o verdadeiro objetivo da “manobra” que produziu uma redução tão notável: Rússia, Venezuela e Irã. O ator principal foi a Arábia Saudita – histórica aliada dos Estados Unidos – que empurrou a produção para cima até o ponto de se formar uma tendência para a baixa do preço.93 A balança comercial da Rússia registrou novamente queda, impondo uma dívida crescente ao país.

A dependência de vários países das receitas do petróleo levou à desvalorização de suas moedas. Países que registraram crescimento de suas economias pelas receitas de petróleo, como Brasil, Cazaquistão, Rússia, Nigéria e vários outros, padeceram da queda do preço e enfrentaram uma crise financeira, com saída de capitais e desvalorização de suas moedas. Turquia, África do Sul e México também passaram a ter dificuldades de pagar suas dívidas com a desvalorização monetária. A mudança nos preços internacionais, por outro lado, repercutiu pouco nos preços internos, sendo inócua para reativar o consumo final.

Isso se deveu a que a maior parte dos governos precisa dos impostos aos combustíveis para fazer frente ao pagamento da dívida pública e ao resgate dos bancos. Mas seu impacto negativo sobre a taxa de lucro das companhias petroleiras foi muito forte, devido ao aumento dos custos que acompanhou previamente a elevação dos preços, pela distribuição da renda entre todos os setores que intervêm na produção, pela incorporação de jazidas que exigem processos mais caros, ou pelo incremento dos investimentos. A queda mundial do preço do petróleo replicou a de todas as matérias primas, dos minerais e dos alimentos. Esta guinada modificou o curso da crise econômica mundial porque bateu em cheio na periferia, no mesmo momento em que a crise econômica se fazia mais aguda na Europa e no Japão.

A queda do preço internacional do petróleo foi atribuída à queda da demanda da China e Europa, ao forte aumento da produção de combustíveis não convencionais nos EUA, e até a uma recuperação da produção na Líbia e no Iraque. A crise de superprodução na China tornou-se decisiva; o país é um fator fundamental na expansão do mercado mundial. O elevado lucro do setor petroleiro havia aberto espaço para a produção custosa de gás e petróleo não convencionais nos EUA: no mercado norte-americano o preço do gás caiu para o limite mínimo da rentabilidade. A diminuição do preço da gasolina – e o do gás para a indústria e a calefação – foi anulada pelo fechamento de jazidas, cuja produtividade era declinante. O boom dos combustíveis nos EUA foi impulsionado pelas baixíssimas taxas de juros, que permitiram financiar investimentos que com taxas de juros maiores seriam proibitivos.

A nova crise do petróleo se imbricou profundamente com a queda nas Bolsas de Valores mundiais: “O fator mais impactante na crise das Bolsas é o massivo processo de venda efetuado pelos fundos soberanos de países produtores de petróleo... Os doze maiores produtores estimaram em seus orçamentos para 2016 um déficit fiscal de mais de 260 bilhões de dólares, entre 10% e 20% de seu PIB, sobre a base de orçamentos calculados em 2015, tendo como referência um preço do barril entre 40 e 45 dólares; o petróleo continua originando mais de 80% das receitas fiscais desses Estados. O endividamento desses Estados é baixo, pelo que absorveriam uma parte desse déficit emitindo dívida. Mas pelo menos 50% será absorvido vendendo uma parte da poupança acumulada nos anos bons. Eles têm margem para isso? Os produtores de petróleo acumularam ativos financeiros através de seus fundos soberanos por valor de mais de quatro trilhões de dólares. Foi calculado, em 2009, que 52% dessa poupança estava investida nas Bolsas globais. Não sabemos quanto venderam até hoje, nem quanto pensam em vender no futuro (um segredo bem guardado). Sabemos que as Bolsas entraram em baixa poucas semanas depois do petróleo atingir seu máximo preço em 2015”.94

Na Venezuela, com o preço do petróleo bruto mais baixo registrado historicamente, todas as conquistas sociais do “petro-socialismo” foram questionadas. Assim como aconteceu no Irã, único país “xiita” que, por essa e outras razões, está em profunda e explicita oposição ao governo da Arábia Saudita. A quebra das economias russa e venezuelana pareceu relacionar-se à estratégia dos EUA. A estratégia saudita foi a de inundar o mercado de petróleo, aproveitando o crescimento da demanda da China para deixar permanentemente fora do jogo o Irã, severamente prejudicado por não ser capaz de competir em um mercado com um preço tão baixo. O fortalecimento da Arábia Saudita impactou a economia de guerra na Síria, cujo governo é apoiado pelo Irã.

A base da crise da rentabilidade da produção do petróleo e das matérias primas é a crise econômica mundial, que passou a repercutir diretamente na crise política internacional. A nova fase da crise mundial afetou as economias latino-americanas, muito dependentes da venda de matérias-primas (mais de 60% das suas exportações); todos os países se viram afetados negativamente pelas baixas dos preços do petróleo, do cobre ou da soja. As contas nacionais paulatinamente se ressentiram de arrecadações menores. E a situação do mercado mundial consentiu cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de aplicações e investimentos diretos apontaram para a desaceleração ou para a queda.

Dilma II: um Governo de Crise

Nas condições de crise mundial, a reprimarização da economia brasileira cobrou, tardiamente, seu preço. Como apontou um economista da Consultoria LCA, “as cotações recentes do real, das ações na Bolsa e dos títulos públicos de longo prazo já são negociadas como se o Brasil não fosse mais um país com grau de investimento” (um “título” habilitante para investimentos externos, que os órgãos e agências classificadoras financeiras internacionais lhe conferiram em 2008). O capital mundial começou a baixar o polegar ao país, o movimento típico prévio à fuga maciça de capitais, e ao consequente default. Logo depois, Standard & Poor e tutti quanti rebaixaram a classificação do crédito brasileiro.

Os indicadores industriais de produção, faturamento, uso da capacidade instalada, etc., embicaram para baixo. A ausência de investimentos (estatais ou privados) levou à crise os dois setores básicos da sobrevivência social: água e energia. As distribuidoras de energia (setor privatizado pelo “neoliberalismo” tucano, o PT se limitou a “regula-lo”, ou a manter a “regulação” precedente) ficaram em situação falimentar. Para evitar cortes imediatos de fornecimento, o governo Dilma teve de entrar com empréstimos diretos (70% do auxílio às empresas geradoras e distribuidoras de energia foi realizado através de bancos públicos) e também como fiador de empréstimos em bancos privados. Nacionalizar todo o setor (“produtores” e distribuidores), saqueador da população e do país, pondo-o sob o controle estatal e dos trabalhadores, nem pensar.

A dívida pública do Brasil superou no início do quarto mandato do PT o equivalente a 60% do PIB; pior ainda era a situação da dívida privada, situada perto de 100% do PIB. Em que pesem os superávits primários que totalizaram, entre 2002 e 2013 e em valores correntes, R$ 1,082 trilhão, a dívida interna pulou para quase três trilhões de reais (2,88, ou US$ 1,2 trilhão). Nesse quadro, a entrada de capital especulativo para aproveitar a diferença das taxas de juros brasileiras com as dos mercados internacionais enfrentou uma reversão de tendência. A fuga de capitais resultou em uma significativa desvalorização do real, da ordem de 30%.

O temor da fuga de capitais exerceu uma enorme pressão sobre a taxa de juros no Brasil, com impacto negativo sobre o financiamento da indústria e do crédito ao consumo. A propalada "ascensão social para a classe média" fora uma consequência do endividamento sem precedentes das famílias de todas as classes sociais. O Brasil pós-eleitoral foi o do ajuste mais ajustado e o da acentuação do conflito social. A filiação petista da presidente não escondia o verdadeiro caráter do seu governo, uma aliança do PT com o PMDB, um partido criado sob a ditadura militar, e, por outro lado, com a direita evangélica, que impôs à coalizão vencedora uma agenda clerical e confessional. Os votos obtidos pela situação foram expressão dessa coalizão. O chamado "governo do PT" era um eufemismo, que ajudava a ornamentar essa coalizão com enfeites progressistas. Os acontecimentos mais marcantes de corrupção durante a administração petista se relacionavam com a necessidade de manter uma frente que possibilitasse uma maioria parlamentar. O PMDB, o principal partido da base aliada do governo, propôs e impôs para presidente da Câmara seu deputado Eduardo Cunha, que apoiara abertamente Aécio Neves no segundo turno de 2014.

O escândalo de corrupção da maior empresa do país, a Petrobrás, a “Operação Lava Jato”, adquiriu assim dimensões imprevistas. O “mensalão” havia sido definido como “o maior” e “o último” dos escândalos de corrupção; o da Petrobrás lhe tirou, com folga, ambos os títulos. O esquema de propinas multimilionárias para a concessão de contratos públicos envolveu as nove maiores empresas construtoras do país (Camargo Correa, Engevix, Galvão, Mendes Júnior, IESA, OAS, Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC). Os beneficiários, os diretores da empresa estatal, desviavam as propinas para as contas dos partidos da coalizão de governo (PT, PMDB, PP, e algum outro da “base aliada”) e, claro, até suas próprias contas. Não é necessário dizer que as propinas eram repassadas pelas empreiteiras às contas (superfaturadas) das obras contratadas, configurando um esquema conjunto de saque multimilionário dos cofres públicos.

O banco Morgan Stanley calculou que as perdas da petrolífera devido ao esquema seriam de R$ 21 bilhões. Um dos funcionários comprometidos, o aposentado Pedro Barusco, ex Diretor de Serviços (um cargo de segundo escalão), apresentou-se espontaneamente à polícia, comprometendo-se a devolver, de seu bolso, US$ 100 milhões, mas não os lucros produzidos por esse dinheiro nos últimos doze anos. Esse era o partido e o governo cuja vitória eleitoral os “progressistas” de toda a América Latina definiram como “continuidade do processo de mudança”. A Petrobrás (cujo valor de mercado caiu de R$ 410 bilhões em 2011 para R$ 160 bilhões em 2015) é responsável por 10% da arrecadação de impostos do país: o escândalo de corrupção teria inevitavelmente impacto nas contas públicas.

Em torno da Petrobras, além disso, gira a indústria da construção naval, a construção pesada e outros segmentos importantes da economia brasileira. As nove empresas (o “cartel”) faturaram, em 2013, R$ 33 bilhões com contratos públicos, financiaram candidatos a deputados com R$ 721 milhões, e candidatos a senadores com R$ 274 milhões (em 2010): 70% dos congressistas eleitos em 2014 receberam doações das grandes empresas. O “clube” empresarial delinquente tinha dezesseis sócios fixos, e seis associados “ocasionais”. O juiz envolvido na causa, Sergio Moro, promovido à categoria de herói nacional pela grande imprensa, declarou que o “cartel” operava desde “pelo menos” havia quinze anos, quando o governo (e a Petrobras) estava nas mãos do PSDB. O “propinoduto” é, portanto, um “modelo (histórico) de negócios”. O intermediário do esquema (Alberto Youssef) já havia estado preso em 2003 (e outras vezes) por crimes semelhantes, metido também em outros escândalos menores que beneficiaram o PSDB. O papel do “doleiro”, neste e noutros escândalos, foi enviar dinheiro para ser aplicado no exterior sem pagar impostos; entrar com milhões de dólares para pagar as propinas, que não saíram dos caixas oficiais das empresas, mas de suas filiais offshore, utilizadas para fraudar o fisco e dar segurança aos recursos ilícitos; driblar o sistema monetário nacional, que controla a compra e venda de moedas estrangeiras, criando um mercado negro de compra e venda de dólares e euros.

Só com muita ingenuidade seria possível afirmar, como foi feito, que “a Operação Lava Jato encerra definitivamente o ciclo de impunidade do modelo político em vigor”. A esquerda denunciou um golpe judiciário em andamento. Saudou, ao mesmo tempo, a “corajosa” decisão da presidente em ir fundo nas investigações. Na sua vertente “intelectual” justificou que a corrupção faz parte dos mecanismos do Estado capitalista, desculpando objetivamente os corruptos (petistas ou não); afinal, os culpados não são eles, mas o Estado. O papel da esquerda que se situou nessa seara argumentativa foi o de ocultar o papel da corrupção como elemento central da política de aliança estratégica do PT com a burguesia, e de integração social da burocracia petista e/ou cutista nas fileiras dessa classe. A argumentação de que a denúncia da corrupção favorecia à direita (Veja, Globo e outros) e ao imperialismo retratou uma esquerda desprovida da noção elementar do que algum dia justificou sua existência.

O escândalo do “petrolão” tinha um pano de fundo potencialmente catastrófico. Ainda que se afirmasse que a queda dos preços internacionais do petróleo seria a grande oportunidade para uma reativação da economia mundial, o que se anunciava era um período catastrófico para os países que sobreviviam à crise graças ao elevado lucro da extração mineral em geral. O barril de petróleo havia subido em alguns casos até 150 dólares – com uma recaída muito forte em 2009, que levou até uma cotação média de 100 dólares antes da queda para 40 dólares. A crise petroleira mundial se projetou na tela do declínio acentuado da economia nacional, acrescentando a ele um componente explosivo. O resultado fiscal primário acumulado de 2014 (R$ 10 bilhões) foi o pior desde 1997. O rombo das contas públicas (déficit público) atingiu 5% do PIB em 2014, o maior nível desde 2003. O déficit comercial e em conta corrente foram os piores dos doze anos de “governo popular”. O déficit das contas externas alcançou 3,7% do PIB, 83,56 bilhões de dólares, um nível que não era alcançado desde 2001-2002.

Setores graúdos do grande capital começaram a propor uma mudança de eixo econômico externo. Luiz Alfredo Furlan, representante do agronegócio (e ex-ministro de Lula) propôs abertamente a saída do Brasil do Mercosul e a assinatura de acordos bilaterais com os EUA e a UE, o que também propôs Celso Lafer, ideólogo “internacional” do PSDB. Foi se formando um consenso. O PT buscou adaptar-se a ele, anunciando medidas de ajuste violentas (um “sistema único do trabalho”, liberando as demissões e a flexibilização trabalhista). E manipulou as contas fiscais (“contabilidade criativa” e “pedaladas fiscais”) para assegurar o pagamento da dívida externa, comprometido em especial devido à dívida privada.

A defesa do governo feita pela esquerda, com base no sucesso dos programas sociais “focados”, revelou-se uma folha de parreira. Uma pesquisa realizada pela UnB-Ipea, com base no cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e das declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas, demonstrou que a “desigualdade social” no Brasil, ao contrário do que fora alardeado, não diminuíra nos últimos anos. Os 50% mais pobres da população detêm apenas 10% da renda; se forem considerados os 90% mais pobres, eles são detentores de aproximadamente 40% da renda. Isto significa que os 10% “mais ricos” da população detém 60% dos ingressos, e se avançarmos até o topo, verifica-se que 0,5% da população detêm 20% da renda nacional.

Os programas sociais focalizados permitiram uma diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória pouco alterada da concentração de renda e, ao mesmo tempo, com uma diminuição da renda média das famílias, uma diminuição significativa da remuneração média do trabalho assalariado, e um grande incremento das fontes de renda não vinculadas ao trabalho, nas camadas mais pobres. Isto indicaria que os programas sociais foram financiados, basicamente, com uma transferência de renda dos assalariados para os setores mais pobres. Cabe, portanto, questionar a própria noção de ‘transferência de renda’, que provoca a impressão de um imposto pago pelos setores mais abastados para financiar a sobrevivência dos mais pobres, e que classifica as classes sociais, não pela sua relação com os meios de produção e de troca, mas pelo seu “nível de renda”.

Os programas sociais compensatórios são financiados, basicamente, não pela taxação do capital, mas pela taxação do salário, na forma de impostos ou contribuições, por isso a diminuição da pobreza absoluta coexiste com a diminuição real da média do piso salarial (e da própria massa salarial, quando medida em relação ao PIB)”.95 Contrariando toda a propaganda oficial, a desigualdade social se manteve estável durante a era Lula-Dilma, apresentando ligeira tendência a aumentar. As péssimas condições de vida da imensa maioria da população brasileira não avançaram, pelo contrário, em matéria de saneamento básico, saúde ou educação, sofreram uma deterioração que foi o detonante das jornadas de junho de 2013.

A crise política presidiu a posse do novo governo. Na véspera da posse, a 1º de janeiro de 2015, mais de um terço do gabinete (15 de 39 ministros) não tinha sido ainda nomeada, e era disputada pela “base aliada”. A 31 de dezembro, “Dilma II” era ainda um governo sem governo, sem gabinete. Dilma só conseguira tomar a providência básica de dar garantias ao grande capital mediante as nomeações nas pastas de Fazenda e Planejamento (Levy - Barbosa). O anúncio da equipe econômica do novo governo recebeu, no entanto, as boas vindas do grande capital. Joaquim Levy era apelidado de "mãos de tesoura" pela sua febre ajustadora. Entre 2010 e 2014 fora presidente do Bradesco Asset Management, gestora de ativos do Bradesco, que administra mais de 130 bilhões de dólares. Na Universidade de Chicago foi discípulo de Milton Friedman, chefe dos “Chicago Boys” e pai declarado do neoliberalismo mundial.

Como responsável político no Fundo Monetário Internacional (entre 1992 e 1999), Levy fora advogado de programas de austeridade nos mais diversos países. Durante o governo FHC, Levy atuou como estrategista econômico, envolvido na privatização de empresas públicas e na liberalização do sistema financeiro, que facilitou a fuga 15 bilhões de dólares anuais. De saída, explicitou suas intenções: “Enfrentamos as sequelas da crise financeira dos países desenvolvidos com políticas de estímulo à demanda doméstica e a canalização de recursos de origem pública para alguns grandes projetos, além de medidas pontuais para contrabalançar a queda de competitividade da economia, especialmente na nossa indústria, em parte resultado dos próprios estímulos dados à demanda doméstica. Essa estratégia se esgotou, pelo consumo dos recursos públicos que a sustentava, e a queda da poupança doméstica. Queda refletida no aumento do déficit em conta corrente e na ampliação da proporção da dívida pública em mãos de estrangeiros, sem significativa contraparte em aumento da taxa de investimentos na economia. O ajuste requerido para a retomada do crescimento econômico envolve, portanto, uma consolidação fiscal, o realinhamento de preços, e a ampliação das oportunidades de inversão do capital privado na infraestrutura”.96 Um programa à medida do grande capital, exposto em um texto em que os salários e as necessidades sociais não receberam sequer uma menção formal.

Em outra pasta estratégica, Kátia Abreu, no ministério da Agricultura, chamada de "miss moto serra", sustentava que o latifúndio não existia no Brasil. Havia sido dirigente da Confederação Nacional de Agricultura e, desde Tocantins, agente do lobby da soja, coordenadora da repressão aos sem terra em luta, aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc. Para Indústria e Comércio foi nomeado Armando Monteiro, que apoiara eleitoralmente Aécio Neves, sendo ex presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria). O índice Bovespa, exultante, saudou o gabinete de Dilma com uma elevação de 5%; o novo governo recebeu a calorosa aprovação do Financial Times, do The Economist, de O Estado de S. Paulo (“A dupla Levy-Barbosa na Fazenda-Planejamento mostra que Dilma enfim cedeu às circunstancias”, comentou o jornal dos Mesquita) e até da Veja (“caiu a ficha”, celebrou o semanário dos Civita). Todos esses apoios não chegaram a completar um ano.

2015: Economia e Luta de Classes

Os gastos anuais com juros da dívida pública já se aproximavam de R$ 300 bilhões. Com base nisso, depois de um déficit de 0,6% em 2014, Levy prometeu terminar 2015 com um superávit fiscal primário de 1,2% do PIB (R$ 66 bilhões), tendo o ajuste fiscal como chave mestra, garantindo o pagamento da dívida pública e da dívida externa (com compromissos de US$ 102 bilhões em 2015, 62% maiores que os de 2014), e também a “confiança” do capital externo, com um forte ajuste social: recortar os planos sociais, atacar as aposentadorias e pensões, eliminar direitos trabalhistas e rebaixar os salários reais. O “realismo tarifário” anunciou um aumento de 30% no preço da energia, elevando o IPCA. A política monetária prometeu ser anti-inflacionista mediante o aumento da taxa de juros, compensando a situação complicada da indústria (responsável por 15% do PIB, contra 23% em 1978) mediante a desvalorização do real (para favorecer as exportações), uma política que os trabalhadores pagariam com a elevação dos preços internos.

A primeira prioridade anunciada por Levy foi cortar e retalhar investimentos públicos, pensões, pagamentos por desemprego e salários do setor público. Mas ele não inventou essa política, apenas lhe da uma continuidade. No Legislativo, estavam desde 2014 na agenda projetos de criação de fundações públicas de direito privado (desmonte do setor público), de limitação do investimento público com pessoal e de demissão por “insuficiência de desempenho”. Levy anunciou que iria mexer nos impostos: no país, mais da metade da arrecadação fiscal provém da tributação indireta, chamada de tributação sobre o consumo. A maior alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Física (27,5%) é alta em relação aos rendimentos recebidos pelos assalariados e pela classe média.

Na outra ponta, fatia significativa das rendas de sócios e acionistas beneficiários de lucros e dividendos das empresas não se submete à tabela de incidência do Imposto de Renda, pois a partir de 1996 esses ganhos tornaram-se “rendimentos isentos e não tributáveis”. Também não se submetem a essa tabela os beneficiários de aplicações financeiras, para as quais estão previstas diferentes alíquotas, sempre inferiores às aplicadas aos assalariados, chegando-se em alguns casos até a isenção. A tributação sobre a renda representa cerca de um terço da arrecadação (em 2000 respondia por 25% do total). A tributação sobre o patrimônio não ultrapassa os 4%, o que é a levedura para a concentração de riqueza. Os fluxos de capital desregulado e livre de tributação aprofundaram a regressividade fiscal do Brasil. As pequenas alterações na composição da carga de tributos realizadas por Lula-Dilma nos mandatos precedentes não foram nem de perto suficientes para uma reversão desse quadro.

Sob o pretexto de combate à corrupção, o seguro-desemprego, a pensão por morte, e outros benefícios sociais básicos, tiveram sua concessão tornada muito mais difícil. O novo ministro de Trabalho Manoel Dias atribuiu as medidas à “segurança fiscal do governo”. O alto índice de rotatividade existente na economia brasileira tornou particularmente nociva a ampliação do prazo de carência do seguro-desemprego, de seis meses para 18 meses. Trabalhadores demitidos com menos de um ano e meio de registro na carteira deixaram de ter direito ao benefício. Todas estas medidas permitiriam ao governo economizar migalhas, em termos de orçamento, ao passo que transformaram num inferno a vida cotidiana de centenas de milhares de famílias dependentes desses modestos benefícios para sobreviverem.

A desoneração da folha de pagamentos, praticada desde 2008, não reverteu a política de demissões, ao contrário, acentuou-a. Um cruzamento de dados realiado por Valor Econômico demonstrou que R$ 5,5 bilhões (23,1% de um montante impositivo de R$ 23,8 bilhões sobre a indústria) deixaram de ser pagos por setores empresariais que demitiram mais do que contrataram desde 2012. E Levy propôs não só manter as desonerações, mas também aprofundar as facilidades para demitir. A capacidade instalada da indústria estava em seu pior nível de utilização média desde 2009 (82%), sendo que as siderúrgicas, com 68,6% de uso da sua capacidade produtiva, eram as que mais puxavam o índice para baixo. O “desenvolvido” estado de São Paulo (sob o comando tucano) foi o que mais contribuiu (15%) com o aumento da miséria em 2013-2014.
Jorge Luiz Souto Maior lembrou que “em 2008, sob o pretexto da crise mundial, o presidente da Vale do Rio Doce (Vale S/A) encabeçou um movimento de reivindicação pública da flexibilização das leis trabalhistas do país, como forma de combater os efeitos da crise financeira. Sua manifestação, acompanhada do ato de demitir 1.300 empregados, deflagrou um movimento nacional, claramente organizado, sem apego a reais situações de crise, no qual várias grandes empresas começaram a anunciar dispensas coletivas de trabalhadores, para fins de criarem um clima de pânico e, em seguida, pressionar sindicatos a concordarem com a redução de direitos trabalhistas, visando alcançar a eternamente pretendida diminuição do custo do trabalho, que também serve às empresas no pleito, junto ao Estado, de concessão de benefícios fiscais”.

O juiz trabalhista citado pôs o dedo na ferida ao constatar que “dada a natureza de sua base política (o governo Dilma) tenta arrastar consigo parte relevante da representação da classe trabalhadora. Lembre-se que recentemente CUT, Força Sindical, UGT, CTB e Nova Central, antes mesmo de qualquer reivindicação do setor econômico e em vez de se prepararem para resistir, elaborando uma compreensão crítica de um modelo de sociedade que impõe, historicamente, perdas e sacrifícios à classe trabalhadora e que favorece, cada vez mais, à concentração da renda nas mãos de muito poucos, adiantaram-se e levaram proposta de atuação estatal que permita legitimar a redução salarial dos trabalhadores em até 30%, com redução proporcional da jornada de trabalho, visando a preservação dos empregos no caso de crise econômica estrutural, que vier a ser atestada pelo Ministério do Trabalho”. Através das burocracias sindicais se impunham as políticas contra a classe operária e os assalariados em geral.

A “esquerda do PT” se limitou a reivindicar “mais radicalismo” (como se houvesse algum) de Dilma-Lula, apoiando suas “medidas progressistas” sem criticar seu rumo pró-capital financeiro. Reivindicou mais diálogo do governo com os “movimentos sociais”, para contrabalançar o peso da direita burguesa no governo, mas se recusou a tirar qualquer conclusão política da inclusão governamental dessa direita (sob o pretexto de que o governo estava em disputa com os outros partidos). O PSOL, por sua vez, depois de obter 1,6 milhão de votos no 1º turno (o dobro do obtido em 2010), e de fazer crescer sua bancada federal de três para cinco deputados, rifou a votação obtida com o apoio a Dilma no 2º turno. O PSTU, que fez uma votação quase marginal (menos de 100 mil votos) enunciou: “Somente a luta pode garantir mudanças e evitar retrocessos”.
Também os “movimentos” e, sobretudo, as ONG’s e fundações que recebem fundos do Estado e das corporações, se limitavam a criticar o governo por temas pontuais, denunciando “o golpismo” e apoiando o governo. O MTST, de grande atuação nos últimos anos, esclareceu “que não participa de qualquer frente de apoio ao governo. Estamos sim participando da articulação junto com a CUT, PSOL, MST, UNE e outras organizações da esquerda no sentido de construir uma frente de lutas com a plataforma de Reformas Populares para o país”, sem dizer, em virtude do abstencionismo político, quem as realizaria. O drama do “movimentismo” consiste na impossibilidade de se manter o “independentismo” político sem prejudicar seus próprios objetivos.

Uma nova etapa política se abriu em 2015 no Brasil, devido à crise econômica, à crise política e à nova etapa da luta de classes. Além do crescente desemprego, a situação do funcionalismo público adquiriu contornos dramáticos, com o congelamento salarial na União e nos estados; diversos estados (com destaque para Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) começaram mesmo a atrasar e parcelar o pagamento desses salários arrochados. As greves, que entre 2003 e 2005 oscilaram em torno do número de 300 anuais (entre 15 e 20 mil horas paradas por ano) pularam em 2012 para 873 anuais, com quase 87 mil horas paradas (medições do Dieese). Em 2014, em São Paulo, a greve de 120 dias das universidades estaduais paulistas, com sistemáticas assembleias e mobilizações de rua, junto com outras greves do funcionalismo público do país, foi um símbolo do início da nova etapa.

No raiar de 2015, os trabalhadores da Volkswagen do ABC paulista entraram em greve por tempo indeterminado pela readmissão de 800 trabalhadores dispensados em 6 de janeiro. A empresa descumpriu acordo firmado em 2012, que previa a estabilidade dos funcionários até 2016. Outros 244 trabalhadores foram demitidos na Mercedes Benz. A 12 de janeiro, os metalúrgicos do ABC realizaram uma grande manifestação: mais de vinte mil pessoas ocuparam as faixas da Rodovia Anchieta, com trabalhadores da Volks, Mercedes, Karmann Ghia e vários outros setores das principais fábricas da região. Os metalúrgicos da Volks mantiveram o movimento até fazer a patronal recuar nas demissões (o sindicato admitiu, no entanto, um PDV, plano de demissão voluntária).

O MPL (Movimento pelo Passe Livre), canal do movimento juvenil das periferias urbanas, diante do novo aumento das tarifas de ônibus (R$ 3,50) convocou manifestações em São Paulo e em outras capitais do país. Como aconteceu em 2013, as manifestações começaram com poucos participantes, mas pularam para passeatas de vinte mil pessoas. E, também como em 2013, houve violenta repressão policial (cassetetes à vontade, detenções, bombas de efeito moral, ação sistemática de infiltrados policiais). E de 9 de fevereiro a 11 de março ocorreu a primeira greve do ano dos professores de Curitiba, que atingiu enorme envergadura e foi reprimida com extrema violência pelo governo estadual.

No dia 20 de fevereiro, empregados da GM, em São José dos Campos, deflagraram greve contra o plano da empresa de demitir 800 empregados da planta local. Em 23 de fevereiro, os professores da rede pública do Distrito Federal entraram em greve, cobrando abono de férias e décimo terceiro salário atrasados. Em 8 de março tem início a greve dos professores do Estado de São Paulo, que duraria mais de três meses. Greves de professores estaduais ocorreram também em: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Pernambuco. No Rio de Janeiro, no dia 13 de março, foi deflagrada mais uma greve dos garis da Companhia Municipal de Limpeza Urbana do município do Rio, reivindicando aumento salarial. No mesmo mês, mais de dois mil professores da rede pública estadual e municipal protestam por reajuste salarial de 20%, em frente à Arena da Amazônia, em Manaus.

No dia 30 de março, técnicos do Banco Central fizeram greve por reestruturação de carreira, com adesão em nove capitais. Após a demissão de 137 empregados, trabalhadores da Ford paralisam atividades no dia 1º de abril, em Taubaté/SP. No dia 9 de abril, mais uma greve no serviço de limpeza, desta feita em Manaus e deflagrada por cerca de 300 garis terceirizados que atuam junto à Prefeitura do município. No dia 25 de abril teve início a segunda greve dos professores de Curitiba, a qual foi alvo de um verdadeiro massacre perpetrado pela Polícia Militar, sob o comando do governador Beto Richa, no dia 29 de abril.

No dia 27 de abril, a Mercedes-Benz, em São Bernardo do Campo, anunciou o cancelamento das demissões de 500 empregados. Em 30 de abril teve início o movimento de greve dos trabalhadores das redes estaduais, que atingirá diversos Estados e perdurou, em alguns deles, mais de quatro meses. Em 15 de maio, servidores da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus) decidiram entrar em greve por tempo indeterminado, atingindo Amazonas, do Acre, Rondônia, Roraima e Amapá. No dia 28 de maio, professores e técnicos das Universidades Federais iniciaram uma greve que durou mais de cinco meses. Após 44 dias, os professores da rede pública do Paraná encerraram a greve, uma das maiores paralisações da história dos docentes no estado.

No dia 23 de junho, foi a vez dos médicos residentes do Hospital São Paulo decidirem paralisar suas atividades, em razão das condições precárias de trabalho e de atendimento. Em 9 de julho teve início a greve dos servidores do INSS, atingindo mais de 200 agências e cerca de dois mil trabalhadores em todo o país. Também deflagraram greve os agentes penitenciários de São Paulo, a partir de 20 de julho, visando o cumprimento pelo governo estadual do acordo que encerrou a greve de 2014. A greve atingiu 106 das 163 unidades prisionais, com 22.700 agentes de braços cruzados. Na manhã de 26 de agosto, cerca de 10 mil trabalhadores da Mercedes-Benz realizaram ato na Via Anchieta, como parte da greve iniciada no dia 24, após 1.500 trabalhadores terem recebido telegramas noticiando a dispensa. A greve foi encerrada no dia 31 de agosto, após os trabalhadores aceitarem proposta de adesão ao Programa de Proteção ao Emprego – PPE, feita pela empresa, que previu garantia de emprego de doze meses, mas acompanhada de redução de jornada e de salário em 20%.

Em 15 de setembro teve início o movimento de greve dos servidores dos Correios, que foi ganhando adesões nos estados e perdurou até o dia 29. Após 21 dias de paralisação, a greve dos bancários foi encerrada em 27 de setembro. Em 8 de outubro teve início a greve dos servidores da saúde do Distrito Federal, que foi encerrada no dia 29 do mesmo mês, sendo que a categoria dos médicos, também em greve, estendeu seu movimento até o dia 12 de novembro. Em novembro foi a vez dos Petroleiros deflagrarem greve. O movimento em defesa da Petrobrás e dos postos de trabalho, contra o corte de investimentos e a venda de ativos da Petrobrás, foi encerrado no dia 21 de novembro. A greve dos metroviários de Brasília, deflagrada em 3 de novembro, perdurou até o dia 12 do mesmo mês.97

No último quartel do ano tivemos a extraordinária luta dos estudantes secundaristas de São Paulo, que ocuparam mais de 200 escolas em todo o estado, contra o plano de “reorganização escolar” (fechamento de escolas) do governo tucano de Alckmin. O movimento obteve uma vitória extraordinária, conseguindo barrar o plano e provocando a queda do Secretário de Educação do governo estadual. A dispersão dos movimentos, de um lado, e o isolamento em relação à classe operária dos movimentos estudantis e juvenis, do outro, conspiraram contra a unificação das lutas, mas o fator fundamental foi e continua sendo a ausência de uma alternativa política unificadora dos explorados, como o foram, no início da década de 1980, a criação do PT e da CUT.

Degringolada do Governo Dilma e Impeachment

Em 2014, o déficit fiscal dobrara (6,2% do PIB, contra 3,1% em 2013), o superávit primário virou déficit primário, e aumentou em 6% a relação dívida bruta/PIB, o que levou Antonio Delfim Netto, un homme pour toutes les circonstances (ditaduras, governos civis da direita ou da esquerda) a anunciar estarmos diante de um “precipício”.98 A queda de Joaquim Levy, em finais de 2015, e sua substituição pelo responsável pela pasta de Planejamento, Nelson Barbosa, substituição saudada pela esquerda petista e por Lula como uma virada “desenvolvimentista” do governo Dilma, não mudou praticamente nada, continuando o “ajuste” de seu predecessor, nas suas linhas gerais, sem conquistar por isso maior estabilidade política.

Pois a partir do último trimestre de 2015, e em 2016, os indicadores econômicos mostraram índices de catástrofe, com o país ingressando na sua pior recessão histórica, de caráter não apenas conjuntural, mas implicando um retrocesso estrutural e histórico da economia brasileira, evidenciado nos índices de investimento, em especial na Petrobras. Os investimentos em geral mais do que quadriplicaram entre 2004 e 2013; a partir de 2014, o quadro se reverteu. Os investimentos das estatais caíram para R$ 95 bilhões nesse ano (com o grupo Petrobras sendo responsável por R$ 82 bilhões). Em 2015 eles caíram para R$ 23 bilhões, sendo a estimativa (provavelmente superestimada) para 2016 de R$ 20 bilhões.

A inversão para o período 2015-2019 reduziu-se em quase 25% em relação ao projetado (de US$ 130 bilhões para US$ 98 bilhões, aproximadamente), com “desinvestimentos” (venda de ativos) pela Petrobras de US$ 15,1 bilhões para 2015-2016: “A depressão nos mercados financeiros parece ter um componente especulativo importante, que convém aos interesses de uma minoria aplicadora nos mercados financeiros e também dos grupos sociais internos e externos que se beneficiam da recessão econômica nacional”,99 leia-se o grande capital financeiro, que o governo encabeçado pelo PT (que lhe proporcionou seus maiores lucros históricos no período de bonança) tentou sem sucesso seduzir no período de retrocesso econômico.

A dívida pública pulou para R$ três trilhões, com um PIB (e uma arrecadação fiscal) em firme retrocesso, e com manutenção de isenções fiscais anuais de R$ 458 bilhões (o equivalente a 17 anos de Bolsa Família) para as grandes empresas, sem contar o incremento espetacular da sonegação fiscal (a dívida ativa da União se situa na casa de R$ 1,5 trilhão, quase metade da dívida pública), com cortes no orçamento federal superiores a R$ 30 bilhões (afetando principalmente a saúde e a educação) incapazes, no entanto, de conter um déficit fiscal galopante. Havia no Brasil um enfrentamento brutal entre frações burguesas dominantes, com um percurso necessariamente golpista.

Na agenda política foi posto um ajuste extraordinário contra os direitos trabalhistas, com eixo no golpe contra as aposentadorias, para resgatar à Previdência Social como fonte de financiamento da acumulação de capital:100 “Lo más importante es el remate del patrimonio en bancarrota y el ajuste. Delfim Neto, ex zar económico de la dictadura, y Arminio Fraga, ex presidente del Banco Central, ya tienen elaborado un plan bajo la presidencia de Michel Temer. Descartan que la Corte Suprema le tire un salvavidas a Dilma y autorice la designación de Lula como jefe de gabinete. Si esto ocurriera, Brasil podría asistir a un derrumbe bursátil fenomenal y al hundimiento de su moneda; un golpe de mercado. La supremacía que ha alcanzado la Corte con relación a los otros poderes del Estado, pone en evidencia la disolución avanzada del régimen político”.101

Após a crise econômica se abater de forma fulminante no Brasil, Dilma sofreu um desgaste profundo. Em meio à crise e a inúmeras denúncias de corrupção, seu governo tentou de forma desesperada realizar um ajuste fiscal contra os interesses da grande maioria da população, primeiro timidamente, no final de seu primeiro governo com o então ministro Guido Mantega, e depois de forma mais agressiva com o ministro Joaquim Levy. O desgaste acabou numa guerra aberta com o Congresso, representado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Aos poucos, tanto a tropa de choque de Eduardo Cunha, quanto os deputados da base do governo (os que não faziam parte do PT e do PC do B) e os da oposição fecharam questão em realizar o impeachment para colocar um governo que os blindasse da operação Lava-Jato e realizasse um ajuste fiscal que fosse realizado sem meias medidas, um governo que defendesse os interesses da burguesia, do grande capital, e salvasse o regime político do total esgotamento, evitando que fossem consumidos em escândalos de corrupção e por delações premiadas, com um amplo apoio da grande imprensa e da mídia em suas diversas tendências, da classe média reacionária (os coxinhas) e da quase totalidade dos partidos políticos burgueses.

O chamado “governo do PT” foi um eufemismo, pois o PT exerceu a titularidade do Poder Executivo, ao longo dos últimos treze anos, em aliança com diversas expressões reacionárias da burguesia brasileira. Não era, portanto, um “governo do PT”, mas de uma coalizão burguesa frente-populista com cobertura “pela esquerda” do PT. A própria agenda política estava ditada por esses setores e pelos agentes diretos do grande capital, a começar por Henrique Meirelles, representante dos grandes banqueiros e presidente do Banco Central no governo Lula. A derrota parlamentar sofrida pelo PT demonstrou que durante quatro mandatos o partido operou mediante um governo de coalizão com forças de direita, começando pelo partido mais corrupto do Brasil, o PMDB.

A questão do impeachment do governo eleito polarizou o país e o dividiu em campos políticos opostos; em manifestações de rua em favor da queda de Dilma Rousseff houve a presença de grupos que reivindicaram uma nova intervenção militar. Isto não poderia acontecer agora, em primeiro lugar por não ser a política atual dos EUA (principal articulador do golpe de 1964) para o continente. A possibilidade de um “golpe branco”, como o que derrubou os governos de Lugo e Zelaya no Paraguai e em Honduras, porém, entrou na agenda política. A corrupção na Petrobras, seu motto político, foi apenas a ponta do iceberg de uma crise econômica sem precedentes, de alcance regional e internacional, que configura as bases para uma crise nacional. A razão para que um sistema aceito de propinas que data dos anos 1990, pelo menos, fosse evidenciado só agora, sendo que entre os golpistas se encontram corruptos notórios e denunciados, é criar o clima político para leiloar o capital petroleiro acumulado por Petrobras, una empresa mista entre o Estado brasileiro e as Bolsas de Valores de São Paulo e Nova York.

The Wall Street Journal descreveu a crise brasileira como “um abismo econômico em meio a um caos político”. O jornal das finanças norte-americanas advertiu que o país possuía uma dívida pública (interna e externa) que atingia um trilhão de dólares, estando prestes a chegar a 80% do PIB no ano próximo, e se alarmou pela dívida privada de quase U$S 300 bilhões, cujo serviço cresce a um ritmo de 14% anual. Petrobras tem uma dívida paraestatal de U$S 150 bilhões, dívidas fiscais por R$ 160 bilhões e dívidas previdenciárias por R$ 20 bilhões; a cotação de seu capital acionário retrocedeu 85%, situando-se pouco acima de U$S 20 bilhões. Ou seja, é uma empresa falida. Está prevista uma nova queda do PIB, em consequência da fuga de capitais, da queda do preço do petróleo, da queda do consumo alavancado pelo crédito, e até uma provável crise bancária. Mediante o impeachment, a burguesia e o imperialismo pretendem instalar um governo de ajuste contra os trabalhadores, sem ter ainda reunido as condições políticas para isso.

A crise abrangeu o conjunto do regime político. As enquetes demonstraram um repúdio popular tanto a oficialistas como opositores. Os cidadãos, inclusive uma parte importante dos trabalhadores, não perceberam, porém, que o comando da saída política estava e está nas mãos dos que defenderam a derrubada do governo, os golpistas. A decisão de apressar o julgamento político à Presidente obedeceu à necessidade de trocar o governo antes da convocatória judicial dos líderes do golpe – o vice-presidente ou o presidente da Câmara de Deputados. Na Itália, na operação Mani Pulite, os juízes das causas contra a corrupção (as “tangentes”) acabaram incriminados eles próprios em numerosos processos judiciais, e tudo concluiu na elevação ao poder do rei dos corruptos, Silvio Berlusconi. Mudança do governo, lei de indulgência para as grandes empresas, limitação dos processos judiciais – o sistema político dominante tem sua “folha de rota”. O golpe de estado em curso, na verdade, é a única via para salvar os corruptos. Quase metade do gabinete designado por Michel Temer está composto por citados e investigados na Lava Jato e outras operações judiciais-policiais motivadas pela corrupção.

No meio da agitação (parlamentar e extraparlamentar) golpista o Poder Executivo enviou ao Congresso o Projeto de Lei (PL) 257/2016, sobre o refinanciamento da dívida dos estados, acentuando as linhas da Lei de Responsabilidade Fiscal: concessão (entrega) de empresas estatais ao setor privado como garantia da amortização das dívidas, restrições ao reajuste salarial do setor público (previsto, no entanto, na Constituição), suspensão de contratações, redução de 95% para 90% do limite de despesas com pessoal do Estado, inclusão orçamentária como despesa de pessoal das contratações de mão de obra terceirizada (realizadas com frequência via empresas mafiosas), convênios e contratação de “organizações sociais”, etc. Como prêmio para esse empenho reacionário, a Câmara de Deputados, menos de um mês depois do envio do PL, votou o impeachment da presidente. A burguesia brasileira e o grande capital financeiro “enviaram” assim seu próprio “PL”: um ajuste econômico ainda muito mais violento contra os trabalhadores e a nação.

O Conteúdo do Golpe

A votação do impeachment serviu para dar um fim à tentativa “industrialista” tentada com base na Petrobras e as grandes empresas construtoras e de engenharia logística do Brasil. O governo de Dilma Rousseff se adiantou a esse esvaziamento com a venta de ativos e com um programa de desinvestimento, para enfrentar uma dívida dolarizada de 250 bilhões de dólares acumulada pela principal empresa brasileira, uma dívida dez vezes maios do que seu capital em Bolsa. O fracasso também é palpável na atividade de mineração, na qual a primeira produtora mundial de mineral de ferro, a Vale do Rio Doce, obstruiu todos os projetos para industrializar o mineral no país, e agora está afundando sob o peso da queda do preço internacional dos minérios e também de uma enorme acumulação de dívidas próprias.

O impeachment escondeu um golpe de estado para levar ao poder uma aliança encabeçada por una fração que operou como aliada recente do governo de Dilma Rousseff, junto com setores opositores. Seu dirigente principal foi Eduardo Cunha: o Supremo Tribunal Federal demorou o julgamento do presidente da Câmara dos Deputados, réu desde janeiro de 2016, dispensado de suas funções depois de ter realizado o “trabalho sujo”. Assim voltou à titularidade do Poder Executivo, depois de mais de um quarto de século de ausência (e saudades) o PMDB que, na definição do senador pernambucano Jarbas Vasconcelos, “é uma confederação de líderes regionais, cada um com seu interesse, sendo que mais de 90% deles praticam o clientelismo, de olho principalmente no cargo, para fazer negócios, ganhar comissões. Manipulação de licitações, contratações dirigidas, corrupção em geral”.102

O novo governo (Michel Temer) se apressou em renomear ministro da Fazenda o ex homem do governo Lula, Henrique Meirelles, vinculado ao BankBoston, onde trabalhou por 28 anos, e presidente do Conselho de Administração da J&F, dona do Banco Original, JBS, Vigor, entre outras empresas; também membro do Conselho de Administração da Azul Linhas Aéreas, atividades todas que não lhe impediram ou impedem o exercício de cargos públicos da maior relevância, um representante da burguesia financeira no pleno sentido da palavra.103 Através dele, o capital financeiro internacional pressiona o país no sentido de substituir por completo o regime de coparticipação da Petrobras pelo retorno ao sistema de concessões, que permite inscrever as reservas comprovadas de petróleo no patrimônio das empresas beneficiárias.

A queda do governo Dilma terá importantes consequências internacionais. Acelerará, sem dúvida, a pressão para derrubar o governo de Maduro, em especial pelo impacto que o golpe vai ter nas Forças Armadas da Venezuela. No Uruguai temos também, em torno a acusações de corrupção na petroleira estatal Ancap, um processo semelhante ao do Brasil. A queda de Dilma, finalmente, servirá como apoio ao governo de Mauricio Macri na Argentina, que já empreendeu um violento ajuste econômico contra os trabalhadores e os pobres. O golpe brasileiro é a ponta de lança para uma profunda modificação das relações políticas da classe capitalista contra as massas trabalhadoras em toda a América do Sul. Assistimos ao trânsito de regimes de contenção dos trabalhadores para governos de ofensiva franca contra as massas. O golpe institucional busca resolver a crise política e reconstruir a autoridade do Estado.

O golpe no Brasil se inscreve em uma batalha de alcance continental pela reconfiguração geral dos negócios e da exploração dos recursos naturais de América Latina. Assistimos a uma disputa entre a burguesia nacional, o imperialismo e a China pela divisão dos recursos nacionais e pelos contratos das obras públicas financiadas pelo Estado. O esgotamento do “progressismo” e do nacionalismo burguês pretende ser explorado para promover uma recolonização do subcontinente pelo imperialismo. A abertura da economia brasileira, em especial à China, foi benéfica para o agronegócio mas também criou uma concorrência ruinosa para setores inteiros da burguesia industrial, mineradora e siderúrgica em primeiro lugar.

A desvalorização que sofreu a Bolsa de Valores de São Paulo é a base para enormes negócios dos bancos e dos fundos de investimento internacionais. Brasil terá, provavelmente, de renegociar a dívida pública. O motor da crise é a voracidade do capital internacional no sentido de conseguir uma redistribuição dos patrimônios e capitais no país. As dívidas pública e privada superaram o PIB do país. A classe capitalista reivindica um ajuste econômico brutal contra os trabalhadores, uma contrarreforma trabalhista, milhares de demissões, que se somariam aos onze milhões de desempregados atuais (Henrique Meirelles previu 14 milhões de desempregados no final de 2016), e um ajuste do gasto social estimado 40 bilhões de dólares (já se anunciou a intenção de limitar o Programa Bolsa Família só aos “5% mais pobres”). Estão em andamento, na Câmara e no Senado, não menos de 55 projetos de lei que visam a destruição de direitos sociais e trabalhistas de todo tipo.

Está na pauta a proposta (feita originalmente por Armínio Fraga) de “orçamento zero”, isto é, a suspensão dos repasses constitucionais obrigatórios – muitos dos quais ligados a políticas sociais públicas. A DRU seria estendida a estados (DRE) e até municípios, desviando as verbas arrecadadas dos impostos e taxas pagos majoritariamente pelos trabalhadores assalariados de seus destinos constitucionais, especialmente dos direitos sociais universais (saúde, educação, transporte), ou seja, a destruição ou esvaziamento de praticamente todos os direitos e conquistas sociais e até dos programas sociais focalizados. Definir o programa de Temer como “um plano de estabilização convencional, agilizando privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados”,104 é, para dizer o mínimo, ficar bem aquém da realidade.

A esquerda, por sua vez, não jogou um papel político independente na crise, oscilando entre o seguidismo ao PT e a defesa de novas eleições gerais, uma proposta também levantada por setores da oposição burguesa ao PT. A CUT se alinhou completamente com o governo. O PSTU e a central que dirige, a Conlutas,105 impulsionaram, através do “Espaço Unidade de Ação” manifestos e jornadas de luta (1º de abril), chamando a lutar “contra Dilma/PT, Cunha, Temer e Renan/PMDB e Aécio e Alckmin/PSDB”, pondo todos no mesmo plano, não denunciando o golpe de Estado em andamento e até negando sua existência,106 pois não houve violação das normas e mecanismos constitucionais (o que é exatamente o argumento da direita golpista).

Nós, do PSTU, somos contra o impeachment, não porque o governo não tenha cometido crimes, mas porque esse instrumento é uma maneira de a classe dominante substituir o fusível queimado (no caso, o governo Dilma) que não funciona mais por outro (o de Temer), tão ou mais corrupto que o anterior e que vai continuar atacando nossos direitos.... O PSTU defende que os trabalhadores coloquem para fora este governo e todos os políticos corruptos por meio de mobilizações e de uma greve geral, exigindo novas eleições gerais. Isso é profundamente democrático porque expressa um sentimento crescente entre a maioria da população. Defendemos que os trabalhadores sigam além e lutem por um governo socialista dos trabalhadores apoiado em Conselhos Populares. A luta contra o governo e contra a alternativa de direita é um passo fundamental nesta direção” (grifo nosso): para o PSTU não havia nem há golpe, apenas manobras políticas superestruturais e de distração, e não uma virada política profunda conta os trabalhadores. Uma repetição (felizmente farsesca) da política stalinista do “Terceiro Período” diante da ascensão do fascismo, quando aquele qualificou direita e esquerda como inimigos iguais (“irmãos gêmeos”) da classe operária. Por isso, logicamente, não criticou o PT nem a CUT pela sua negativa a mobilizar a classe operária e as massas contra a direita golpista.

Para criticar o impeachment, o PSOL se apegou à Constituição e à defesa do Estado de Direito, ou seja, não agiu como um partido de classe, chamando à classe trabalhadora a se mobilizar.107 Simultaneamente defendeu eleições gerais (ou seja, que o governo fosse derrubado, que é o objetivo do golpe, e não mobilizava ninguém); sua candidata presidencial, Luciana Genro, em entrevista ao Correio da Cidadania, declarou: “Travei debates com quem defendeu o impeachment como golpe, com a visão de que a ideia de golpe precisaria ser respondida de maneira muito mais enfática e dura do que o próprio governo e o PT fizeram. Mas se a palavra é utilizada apenas para definir um processo ilegítimo de impeachment, sem respaldo popular, sem criticidade, já que na verdade foi uma manobra das castas políticas, vimos, sim, um tipo de golpe, no sentido de uma manobra das elites políticas e judiciais – porque o Supremo também colaborou com o processo ao dar-lhe aura de legalidade”. Um “tipo de golpe” que não é golpe, só “uma manobra das elites políticas e judiciais”; finalmente, segundo Luciana, “é preciso ter em conta que 70% da população está a favor do impeachment. Isso é resultado de falta de legitimidade do próprio governo Dilma também, cavada por ela mesma, pelos seus próprios feitos – ou malfeitos”. “Ter em conta” para que? Para justifica-lo (o impeachment)? Mas não éramos contra? Toda esta confusão incompreensível revela um oportunismo multidirecional.

O PT continuará existindo, mas nunca voltará a ser o partido dos anos 1980. Levará uma existência parasita de seu passado. Malgrado as (novas) esperanças da “esquerda do PT” (em suas variadas variantes) o futuro político é o de uma direitização ainda maior do partido, e inclusive uma debandada (boa parte dos prefeitos petistas já abandonaram o partido, em busca de novos partidos, de novas alianças e apoios, para manter suas posições no aparelho de Estado). E não existe no momento nenhum “substituto à esquerda” do PT, ou representação política independente da classe trabalhadora. A profunda crise do Brasil evidencia que o aspecto central da atual etapa política latino-americana é a crise vertical do poder, muito mais do que uma “mudança de ciclo (pós-populista)”, como afirmaram não poucos analistas. O grande capital procura instalar “governos de ajuste”, sem ter, no entanto, reunido ainda os meios econômicos (programa) e políticos de seu projeto. Brasil ilustra o caráter da crise da América Latina e a natureza da operação política de salvamento empreendida por Obama – que começou em Cuba, continuando na Argentina.

Estamos vivendo, não o fim, mas só o primeiro ato de uma grande crise e encruzilhada nacional. A questão é transformar a incipiente polarização política em enfrentamento de classe, o que não é possível ignorando a primeira. O governo de Temer e Cunha, acossado por denúncias de corrupção, deverá provar sua duvidosa capacidade para derrotar a maior classe operária da América Latina. Este será o eixo da futura situação política. Para além de algumas mobilizações antigolpistas, e de pronunciamentos de intelectuais universitários, os grandes afetados pelo conteúdo político do golpe, os trabalhadores, não se pronunciaram nem se mobilizaram. Para que a classe trabalhadora passe da condição de espectadora para o papel de protagonista político, seria necessário um congresso nacional de trabalhadores, com delegados eleitos nos locais de trabalho e em assembleias, que discuta uma saída para o país, com a classe operária transformada em fator político independente. A crise política deve continuar, ficando até mais intensa.

As entranhas reais do golpe foram expostas de uma forma inusitada. A 23 de maio, os meios de comunicação reproduziram o vazamento de um diálogo do ministro e senador licenciado Romero Jucá (um dos principais articuladores do golpe parlamentar) com Sérgio Machado (ex-presidente da Transpetro). Eles dialogaram abertamente sobre os interesses, o desenvolvimento e as consequências do impeachment, deixando claro o golpe orquestrado pelo Congresso Nacional, com apoio do Judiciário e do STF, para colocar no poder um governo que representasse os interesses da burguesia, um golpe em que a burguesia unificou os setores oposicionistas e governistas, colocando para fora do governo os setores que não representavam diretamente seus interesses, mas que apenas aliavam-se a eles.

Nas gravações, Jucá falou da necessidade de se organizar o impeachment para impedir a continua “sangria” dos políticos burgueses (em especial os do Congresso), barrar as delações premiadas, o papel de Temer como aliado íntimo de Cunha, o papel do STF e da imprensa no golpe, e até a prisão de Lula para inviabilizar o período final do governo Dilma. As gravações, que seriam apenas o início de uma séria devastadora, são uma aula de como se organiza um golpe de Estado e informam os interesses de classe por de trás do golpe brasileiro. As contradições afloram de forma clara e o governo Temer já começa a ser questionado nas ruas. A classe operária, os sindicatos classistas, os movimentos populares e juvenis combativos, os sem-terra e os sem-teto, a esquerda socialista, estão com a palavra
São Paulo, 24 de maio de 2016