segunda-feira, 20 de junho de 2016

CONFERÊNCIA LATINO-AMERICANA (Montevidéu, Uruguai, 16 e 17 de julho de 2016)

                                                                                   




REAGRUPAR A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA E O MOVIMENTO OPERÁRIO COMBATIVO!

POR UMA ALTERNATIVA SOCIALISTA FRENTE À BANCARROTA CAPITALISTA QUE SACODE A AMÉRICA LATINA!



Em setembro de 2012, com a participação de um grupo de partidos e organizações de esquerda, entre os quais se encontrava o PT do Uruguai e o PO da Argentina, foi realizada uma Conferência Latino-americana em São Paulo (Brasil). Então foi caracterizado que "a esquerda revolucionária e o socialismo nos encontramos, na América Latina, frente a um desafio histórico. A bancarrota capitalista e o esgotamento das novas experiências nacionalistas constituem o terreno histórico potencial para uma recuperação de forças do movimento revolucionário." Agora, quase quatro anos depois, coloca-se a tarefa de fazer um balanço desta caracterização: Em que ponto nos encontramos da bancarrota capitalista e suas conseqüências na América Latina? Como estas mudanças se traduziram na arena política? Em que ponto se encontram as forças da esquerda revolucionária? Com essa finalidade temos lançado a convocação de uma nova Conferência Latino-americana, a ser realizada nos dias 16 e 17/07, em Montevidéu (Uruguai), convidando para a mesma a todos aqueles partidos, organizações e militantes que coincidam com as bases políticas principais deste chamado e que queiram somar-se à luta por reagrupar revolucionariamente a esquerda e ao movimento operário combativo por uma alternativa socialista frente à bancarrota capitalista que sacode a América Latina. A relevância desta convocação está dada pelas crises de fundo na Venezuela e no Brasil e que se estende ao resto dos países da América Latina.


A bancarrota capitalista mundial


Contra os que prognosticavam que o capitalismo já havia superado a bancarrota desencadeada pela queda dos bancos norte-americanos em 2007, esta se apresenta com suas premissas agravadas. Apesar dos bilionários resgates monetários aplicados pelos Bancos Centrais, que levou estes ao limite de sua capacidade de endividamento colocando também aos Estados em uma situação de virtual bancarrota, a crise persiste e ameaça com novas catástrofes e falências.

Na Europa se multiplicam as ameaças de quebras bancárias (Deutsch Bank, etc.), existem Estados que estão falindo sob o peso das dívidas públicas contraídas; a crise social com seus picos catastróficos de miséria e desemprego está tomando conta de vários países. O desenvolvimento da bancarrota capitalista ameaça em fazer explodir a União Europeia e é um estímulo às guerras imperialistas na Europa e no Oriente Médio. A bancarrota capitalista atua como um acelerador de crises políticas que fazem naufragar aos partidos tradicionais da burguesia e provocam respostas de luta das massas. Não somente o panorama da Grécia deve ser observado, como também o da Espanha e agora da França, donde a classe operária e a juventude se mobilizam contra as medidas de “ajuste” que tenta levar adiante o governo socialdemocrata de Hollande. A crise dos refugiados é uma conseqüência direta da guerra do Oriente Médio, acirrada pelo imperialismo e que se transformou em uma enorme catástrofe humanitária, cujas conseqüências acabaram explodindo na cara das principais potencias europeias. O Japão não conseguiu sair da crise em quase três décadas e tem um endividamento estatal da ordem de 300% de seu PIB.

O processo de restauração capitalista sobre a URSS, China e demais ex-estados operários, que foi concebido como um dos principais fatores de diminuição do efeito da crise mundial capitalista terminaram se tornando um dos principais motores de seu agravamento. Na China, em primeiro lugar, a crise de superprodução (aço, etc.) projeta destruir uma parte fabulosa de suas indústrias. Fala-se de fechamento e demissão de seis milhões de operários da siderurgia. Os mercados donde a produção das fábricas chinesas era canalizada estão abarrotados. Esta desaceleração chinesa provocou o colapso das nações emergentes que colocavam parte importante de sua produção de matérias-primas (petróleo, minerais, forragens, alimentos, etc.) na maquinaria produtiva da China de capitalismo em restauração.

Mas o epicentro da bancarrota, que se manifestou em 2007 nos EUA, continua ali. Os bilhões de dólares despejados pelo Banco Central acentuaram a superprodução. Um exemplo disso está no mercado do petróleo. Crédito fácil e barato foi investido no desenvolvimento da indústria ianque do fracking (técnica para possibilitar ou aumentar a extração de gás e petróleo do subsolo), o que colaborou para incrementar notavelmente a produção mundial de hidrocarboneto, despencando seus preços e quebrando numerosas companhias que haviam crescido neste processo. O afundamento dos preços do petróleo arrastou à bancarrota a numerosas empresas e países (Rússia, Venezuela, Brasil, etc.). A perspectiva do Banco Central norte-americano de elevar as taxas de juros teve que ser rapidamente retirada frente à ameaça de levar a economia mundial a uma depressão. Segue aumentando a suspensão de pagamentos das hipotecas e a situação dos bancos tampouco foi saneada, mas contida com a “contabilidade criativa” (que considera nos balanços créditos incobráveis a seu valor original).


América Latina sacudida pela crise mundial


A bancarrota capitalista mundial está golpeando com toda força a América Latina, provocando o colapso de suas economias e regimes políticos. A crise na China e nas nações imperialistas diminuiu significativamente a compra de matérias-primas fazendo despencar o preço das mesmas. O petróleo, o cobre, o ferro, a soja, todas as matérias-primas em geral retrocederam. Este vendaval arrasta aos regimes nacionalistas e progressistas latino-americanos, mas também aos governos de filiação neoliberal.

A bancarrota capitalista terminou por acelerar a queda do nacionalismo burgues e do progressismo, que dominaram a cena nos últimos 15 anos e que surgiram como resposta política à crise mundial e ao esgotamento histórico dos partidos tradicionais, e serviram de contenção ao processo de rebelião popular aberto pela explosão dos regimes chamados neoliberais. No caso da Bolívia, Evo Morales com o apoio de Lula e Nestor Kichner foi o bombeiro do processo revolucionário. O MAS, colocado como expressão dos processos insurrecionais de 2003 contra Sanches de Lozada e seus continuadores, pactuou com o velho regime uma saída eleitoral que deixou intacto o aparelho estatal. O chavismo, por sua vez, chegou ao poder depois do Caracaço, como uma expressão da mobilização popular frente ao esgotamento definitivo dos partidos tradicionais da burguesia (AD e Copei). Em troca, na Argentina, os Kirchner chegaram ao poder nas mãos de Duhalde, colocado como um recurso de emergência, para enfrentar a dissolução do regime capitalista e as jornadas revolucionárias do Argentinaço, em fins de 2001.

O Perú, exibido pelo establishment como um dos “modelos a imitar”, tampouco ficou alheio a este vendaval. O fato de que o nacionalista Humalla tenha dado muito cedo um giro neoliberal não eximiu ao país de uma crise econômica severa que ocorreu junto a um crescente desprestígio do governo e um enfrentamento com os trabalhadores.


Um balanço necessário


No período de ‘bonança’, a burguesia latino-americana não utilizou as receitas para avançar num processo de industrialização nem numa melhora de sua infra-estrutura produtiva, para sentar as bases de um desenvolvimento nacional independente. Essas receitas extraordinárias foram usadas para “honrar” a dívida, subsidiar/resgatar a setores capitalistas em crise, indenizar generosamente aos capitalistas cujas empresas foram estatizadas e como butim das oligarquias capitalistas que se formaram em torno dos governos nacionalistas e centro-esquerdistas.

As elevadas receitas pela exportação de commodities atuaram como garantia de um novo ciclo de endividamento na região. Foi um fenômeno generalizado o forte crescimento das reservas dos Bancos Centrais dos países latino-americanos. Isto produziu a ilusão de que a dívida externa destas nações latino-americanas havia sido “domada”, que estava sob controle, coberta pelas excedentes reservas de divisas. Estamos, agora, perante o processo inverso: fuga de capitais para as metrópoles; deixando novamente em pé as usurárias dívidas externas das nações atrasadas com o capital financeiro.

Enquanto se invocavam “modelos produtivos”, as experiências nacionalistas continentais agravaram a primarização da economia e a desindustrialização. É que para alavancar um verdadeiro processo de desenvolvimento e industrialização nacional, deveria se avançar em medidas anticapitalistas: confiscação sem pagamento das empresas nacionalizadas, terminar com o latifúndio, sistema bancário estatal único, monopólio do comércio exterior; e apoiar-se para isso na mobilização das massas trabalhadoras. Mas este é um limite de classe que o nacionalismo burgues não pode superar. O horizonte de “redistribuição de rendas” dos regimes nacionalistas burgueses se limitou a uma extensão mais ou menos desenvolvida da assistência estatal, no marco de uma precarização trabalhista generalizada. No caso mais avançado, o chavismo, a renda petroleira foi utilizada para um grande desenvolvimento assistencialista, especialmente dos setores mais pobres e abandonados da população, mas não se tentou sequer transformar a estrutura social de atraso e a dependência petroleira. A precariedade desta armação é posta agora de manifesto pela crise mundial e a queda dos preços do petróleo.

                                                                       


Brasil: golpe parlamentar


Ingressamos em uma nova etapa política caracterizada pela fratura do Estado e da economia capitalista e a derrubada de regimes políticos. O centro de gravidade da situação política continental se encontra no Brasil; acaba de ser aprovado o impeachment e o afastamento da presidente Dilma Rousseff. O impeachment é um golpe de Estado, ainda que tenha quem impugne esta caracterização com o argumento de que a destituição de Dilma se deu dentro dos canais institucionais, como se isso fosse algo moralizador do ponto de vista político, em uma mostra de cretinismo constitucional. Estamos frente ao terceiro golpe parlamentar na América Latina, depois da derrubada de Zelaya em Honduras e Lugo no Paraguai. A cobertura constitucional, em todos os casos, é o veículo para uma profunda modificação das relações sociais da classe capitalista contra as massas.

Não desconhecemos que no Brasil se enfrentam dois bandos capitalistas e que o PT no poder se empenhou em aplicar uma política de ajuste e de cerceamento das conquistas dos trabalhadores. Mas este regime esgotou-se e são os partidos políticos aliados do governo e a classe capitalista, começando pela poderosa burguesia industrial paulista, que ganhou dinheiro aos montes, durante seu mandato, quem terminou abandonando-o à própria sorte. Assistimos à transição de regimes de contenção dos trabalhadores para governos de ofensiva franca contra as massas, em um cenário tomado por uma enorme crise de dominação política. Este golpe institucional aponta a resolver essa crise e reconstruir a autoridade do Estado, e impedir que por suas fendas se introduza a insurgência popular. Por outro lado, o golpe no Brasil inscreve-se em uma batalha que tem um alcance continental por uma reconfiguração econômica mais geral dos negócios e os recursos da América Latina. Assistimos a uma disputa entre a burguesia nacional, o imperialismo e a China pela distribuição dos recursos e os contratos de obras públicas financiadas pelo Estado. O esgotamento do progressismo e do nacionalismo burgues pretende ser explorado para promover um salto na recolonização do subcontinente por parte do imperialismo. Isto se entrelaça com uma quebra no interior do Brasil das distintas frações burguesas. A abertura da economia brasileira, em especial para a China, foi benéfica para os sojeiros, mas terminou por criar uma concorrência devastadora para setores inteiros da poderosa burguesia industrial, em primeiro lugar, no setor do aço.


Os trabalhadores não podemos ficar indiferentes perante o desfecho dessa crise


Um posicionamento decisivo contra o golpe não é sinônimo de apoio ao governo do PT. Pelo contrário, a luta contra o golpe coloca mais que nunca a necessidade de uma delimitação frente ao nacionalismo, que como foi demonstrado, está em processo de decomposição. A luta contra os golpistas é a continuidade sob outra forma da mesma batalha política contra o governo de Dilma e Lula que viemos impulsionando nestes anos. Uma derrota do golpe, neste contexto, não fortaleceria o PT, mas prepararia as condições para superá-lo, pela ação das massas e não da oposição patronal. A luta contra o golpe não pode ser feita mediante o seguidismo ao PT. Esse seguidismo é o passaporte a uma frustração segura e implica colocar uma camisa de força nas energias que podem liberar o movimento popular, no qual germina uma rejeição, tanto ao governo como aos opositores, salpicados pela corrupção no mesmo nível que os primeiros.

Junto com o distanciamento da classe capitalista que o abandonou, o PT vem sofrendo uma deterioração acelerada de sua própria base de apoio popular. As concentrações convocadas pelo PT vêm retrocedendo em quantidade de participantes. A jornada de mobilizações e paralisações que a CUT convocou, coincidentes com a sessão do Senado que devia decidir a sorte de Dilma, passaram praticamente em branco. Este triste desenlace não provém da fortaleza do golpismo, senão das limitações insuperáveis do PT. Dilma, Lula e seus seguidores não tem para oferecer um programa alternativo ao que propõe a direita. Até o último momento empenharam-se em protagonizar o giro neoliberal e o ajuste que agora tardiamente denunciam que seus adversários pretendem levar adiante.

A burguesia deu o mandato a Temer para avançar no trabalho sujo de um ajuste a fundo. Mas, o vice-presidente arranca no meio de um temporal. Em primeiro lugar carrega a hipoteca de encabeçar um governo suspeito pelos mesmos casos de corrupção de que Dilma é acusada. 60% dos senadores encarregados de decidir a sorte de Dilma estão sendo processados pela Justiça. Temer já adiantou um pacote que supõe um ataque muito severo aos aposentados e assalariados, ao que se agregaria um corte importante dos programas sociais.

O novo governo deverá demonstrar se conta com a capacidade e os recursos econômicos e políticos para comandar a crise. Ingressamos numa nova transição política de caráter convulsivo. O desenlace atual não fecha a crise, senão que é um episódio da mesma. O fracasso de Temer poderia precipitar a convocação de eleições antecipadas. Temer deve se olhar no espelho dos Macri e no impasse que atravessam os ajustadores argentinos.

Os trabalhadores devem condenar fortemente o golpe e se opor ao governo Temer, mas desde uma postura independente. Os dirigentes do PT prometem uma resistência que não levaram adiante quando foram governo. Trata-se de uma impostura: Dilma não caiu resistindo ao capital, mas pactuando com ele. A classe operária deve emergir como fator independente na crise. Nestas circunstâncias, adquire maior relevância a convocação de um Congresso de delegados de base das centrais operárias, organizações e tendências do movimento operário para enfrentar o ajuste e discutir uma saída operária frente à crise nacional. Os sindicatos combativos – começando pela CSP/CONLUTAS - e a esquerda devem colocar-se à cabeça desta iniciativa. Um Congresso de Trabalhadores abrirá à classe operária a possibilidade de interceder na crise política, em um cenário que hoje está dominado pelos partidos burgueses.


A batalha pela independência política


A experiência do Brasil reproduz um debate existente de um modo geral na esquerda latino-americana. Frente ao avanço direitista, estão se desenvolvendo duas tendências contrárias à luta pela independência de classe. Por um lado, em nome da luta contra a direita, propõe-se a existência de um mesmo campo de luta com o nacionalismo burgues. Isto é um crime, porque o nacionalismo burgues está em decomposição; porque é ele que tenta impor as políticas de ajuste antipopular e de acordo com o capital financeiro e, fundamentalmente, porque não luta realmente, senão que realiza campanhas verborrágicas e busca pactuar com os golpistas. As propostas de frentes com o nacionalismo burgues paralisam a esquerda e a colocam a reboque do mesmo (em sua fase não de ascenso e luta, senão de contenção e capitulação) e mantém a confusão no movimento operário que busca enfrentar os ajustes que se descarregam sobre as massas. Resulta igualmente um crime a neutralidade ou o apoio aos ataques direitistas contra os governos nacionalistas impotentes, em nome das “liberdades democráticas” ou a batalha contra a corrupção.

Uma parte da esquerda na Argentina considera que a passagem do kichnerismo à oposição e o ascenso do macrismo ao governo colocam objetivamente a necessidade de uma frente comum com os primeiros. Isto porque o nacionalismo burgues na oposição se veria empurrado a jogar um papel de resistência às medidas de ajuste que leve adiante o governo direitista. Mas os kirchneristas não cairam liderando a resistência pelas reivindicações operárias e populares, mas concorrendo com a direita para ver quem comandava o ajuste. O macrismo continuou os ataques reacionários do kirchnerismo. Isto se evidencia, por exemplo, na negociação da venda de dólares a prazo futuro às vésperas de uma desvalorização monetária impulsionada pelos kirchneristas. O governo do Macri avalizou esta fraude. O peronismo tem se dividido adaptando-se às necessidades gerais da burguesia (respaldo ao acordo com os fundos abutres) lhe oferecendo apoio no Parlamento para que aprovem as leis reclamadas pelo governo. O kirchnerismo não quer sair do esquema, integrado como minoria dentro do aparelho do Partido Justicialista (peronista). A “resistência” kirchnerista é uma impostura.


Venezuela


A Venezuela encontra-se depois da derrota do chavismo nas eleições parlamentares, em uma situação de duplo poder entre o Executivo e a Assembleia Nacional. Um cenário convulsivo de golpes e contragolpes no marco de umacrise econômica de características catastróficas.

O governo plebiscitário (que se orgulhava do apoio majoritário que recebia da população) deixou de existir e sobrevive somente pelo apoio do estado maior das Forças Armadas. A passagem do bonapartismo plebiscitário ao bonapartismo de fato marca a dissolução irreversível da etapa política bolivariana.

Neste marco acentuou-se a ação da diplomacia internacional e do Vaticano por estruturar uma saída consensual do regime chavista. Ditas pressões estão se potenciando a partir do golpe parlamentar no Brasil que culminou com o afastamento de Dilma. Tal saída “dialogada” conta com o aval da fração majoritária da oposição que é consciente da dimensão da crise e que tal crise poderia desembocar em uma explosão social e política. Ressurge então o tema do golpismo, neste caso o “auto-golpe” desde o campo militar chavista, para organizar um governo de transição com a oposição.

O oficialismo e boa parte da esquerda latino-americana atribuíram à “guerra econômica” a derrota eleitoral, encobrindo a responsabilidade da camarilha governante na desorganização econômica. O boicote econômico que se desenvolve contra o governo é consequência direta do fracasso do intervencionismo estatal, que nunca alterou a base da gestão capitalista da economia.

A sabotagem econômica que denuncia Maduro tem uma de suas fontes na “boliburguesia”, a burguesia amiga, cujo crescimento promoveu o próprio governo. O chavismo é impotente para combater a direita pela simples razão de que carece de um programa distinto e superador ao que levou à bancarrota econômica. Maduro pretende sobreviver executando ele a virada econômica que reclama a burguesia. A desvalorização e medidas de ajuste implementadas pelo seu governo terminaram aumentando ainda mais os enormes desequilíbrios da economia venezuelana.

As numerosas nacionalizações que levou adiante o chavismo não serviram para desenvolver as forças produtivas nacionais. No caso da metalúrgica Sidor, por exemplo, trabalha no mínimo percentual de sua capacidade. Fica novamente claro que o caráter progressivo das nacionalizações está condicionado à orientação geral do regime político: o estatismo sob controle da camarilha chavista e da “boliburguesia” foi um fator de quebra dos cofres públicos que não abriu nenhuma perspectiva de desenvolvimento.

Esta política, falindo por todos os lados, foi arrasando com as próprias conquistas bolivarianas, desde o controle nacional da PDVSA até as medidas sociais para os mais explorados. O outro lado deste processo é o fabuloso enriquecimento da camarilha capitalista ligada ao governo chavista, que acessa privilegiadamente as divisas obtidas no mercado oficial.

O esgotamento irreversível do chavismo expõe em carne viva a necessidade imperiosa de uma ação política independente da classe operária. Na Venezuela são numerosíssimos os setores sindicais combativos. Seria decisivo que se agrupassem e que impulsionassem juntos uma campanha pela convocação de um Congresso de Trabalhadores e da esquerda para que a classe operária venezuelana emerja como um fator político independente na crise nacional.


O verdadeiro racha


Uma das leituras mais comuns sugere que estamos assistindo a uma mudança de ciclo – do populismo à ascensão da direita. A tese de uma “mudança de ciclo” vê a “direita” avançando estruturalmente no continente e pretende condenar as massas trabalhadoras da América a um pêndulo político-social: depois da crise do chamado neoliberalismo, vem a alternativa do nacionalismo burguês e quando este afunda voltam as variantes neoliberais. E assim sucessivamente de tempos em tempos. O chamado neoliberalismo e o nacionalismo burguês seriam os estágios terminais do desenvolvimento político-social, o qual condena a humanidade a viver entre diversas variantes do capital.

Mas este dilema é falso: a verdadeira oposição se dá entre as saídas capitalistas, sejam estas nacionalistas burguesas ou neoliberais, por um lado, e as aspirações da classe operária e as massas exploradas, por outro.

A chegada, como na Argentina, da direita ao poder não é mais do que uma saída de emergência, pois o macrismo não conta com os recursos políticos e econômicos para enfrentá-la e resolvê-la. A direita terá que demonstrar sua capacidade para enquadrar às massas e proceder a uma fabulosa expropriação de salários e conquistas dos trabalhadores para tentar deter a queda da taxa de lucro capitalista. Isto não será possível sem fortes crises políticas e choques com as massas trabalhadoras que lutarão em defesa das suas condições de vida. Esta transição política, no quadro da crise mundial e de um potencial de luta e resistência que conserva o movimento popular, pode conduzir a situações pré-revolucionárias ou revolucionárias.

Os cinco meses de macrismo, na Argentina, demonstram que as transições dos chamados governos “populistas” para a direita financeira se caracterizam por uma acentuação das contradições econômicas, uma agudização da luta declasses e uma tendência à crise política. Somente para quem o “populismo” é a única alternativa popular, esta transição é caracterizada como uma “derrota”, e não como uma oportunidade política operária e socialista. É desde este estágio mais elevado da crise de dominação que deve ser abordada a nova etapa.


Bolivia: as lições do referendo


Na Bolívia, a derrota de Evo Morales no referendo por sua reeleição constituiu uma virada política. Sofreu um retrocesso enorme nos distritos que constituem sua base política. A derrota do presidente “indígena” expõe uma crise na COB (Central Operária Boliviana) e num conjunto de Federações e Departamentos que chegaram ao ponto mais alto da integração ao Estado do movimento operário em décadas. Uma parte do voto no Não foi indissimuladamente da classe operária – a abstenção foi marginal.

Reivindicamos o voto pelo Não no referendo, conscientes de que um pronunciamento político dos trabalhadores nesse sentido constitui um canal para impulsionar um pólo independente da classe operária. O voto pelo Não se revelou acertado e superador tanto do seguidismo como do abstencionismo defendido por diversas correntes da esquerda. Por um lado, assistimos ao voto a favor do Sim encabeçado pela burocracia sindical tributária do governo de Morales. Um setor da cúpula da COB que encabeçou em um determinado momento a formação de um partido dos trabalhadores, uma construção superestrutural manipulada pela burocracia e tributária de Evo, foi um dos defensores da campanha oficialista.

Outra vertente da esquerda promoveu a abstenção, com o argumento de que se tratava de dois bandos patronais. Esta apreciação omite o fato de que o plebiscito é uma das armas principais de que usualmente se vale o bonapartismo para afirmar-se e perpetuar-se no poder. Na medida em que Evo é quem detém o poder político e concentra em suas mãos as alavancas de mando, o triunfo do voto pelo Não enterra a autoridade do Estado burguês e constitui, portanto, um golpe de conjunto à classe capitalista. A exploração política que possa ser feita por um setor opositor é secundária em relação a este fato. O pior de tudo é condenar aos trabalhadores ao imobilismo, deixando-os a mercê das pressões do nacionalismo indígena e das tendências burguesas que se opõem hoje ao governo do MAS antecipando a necessidade do giro político ajustador que se deriva do esgotamento do atual regime político.

Do que se trata é de impulsionar em cada fase da crise a intervenção independente da classe operária através de um programa de reivindicações transitórias para que esta avance em sua constituição como pólo político antagônico ao capital em todas suas variantes.

O governo de Evo, em resumo, não pôde escapar do chicote da crise mundial. O governo do MAS tampouco aproveitou a onda expansiva dos países emergentes para promover um desenvolvimento independente. Contra o que disse o relato oficial, não propiciou a nacionalização dos recursos minerais, senão que o rechaçou – primeiro em um plebiscito em 2004, depois quando expulsou do governo a fração nacionalista. Também rechaçou a implementação de uma reforma agrária, isto quando pactuou com a oligarquia da chamada “Meia-lua” (Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando) a reforma constitucional. O boom fiscal propiciou uma enorme especulação imobiliária, que encareceu a cotização do solo, e uma revalorização do peso que afetou negativamente à débil indústria boliviana.

O horizonte econômico não prevê um cenário favorável para que Evo possa revalidar o poder, mas pelo contrário. As petroleiras, as mineradoras e as patronais em geral, como ocorre na Argentina, irão reclamar um corte na apropriação fiscal da renda do setor.

A esquerda revolucionária tem a responsabilidade de tomar a iniciativa e, através dela, recuperar as organizações operárias para uma política de classe e para disputar a direção política das massas.


                                                                         
              


As Frentes Populares são contrarrevolucionárias


Mesmo que o centro do panorama político da contenção das massas tenha se apoiado nas correntes nacionalistas burguesas, os PC’s de origem stalinista foram coadjuvantes neste processo, apoiando abertamente a estes governos.

No Uruguai e no Chile, o PC jogou um papel primordial na formação de Frentes Populares, como regimes diretos de contenção das massas. No Chile, a crise do governo centro-esquerdista da Concertação, golpeado pelos movimentos de luta estudantis pela gratuidade do ensino universitário, levou a que se incorporasse ao governo da “Nova Maioria” o PC, para poder cumprir mais cabalmente o estrangulamento das lutas populares. No Uruguai, o PC foi primordial na constituição do governo de Frente Ampla, cumprindo suas burocracias políticas e sindicais papéis fundamentais na contenção das massas. Mas a bancarrota capitalista mundial sacudiu com força a estabilidade uruguaia: no último ano perdeu 52% das reservas buscando manter o grau “de investimento” por parte das qualificadoras imperialistas das dívidas externas. As tentativas do governo frenteamplista de Tabaré Vasquez em impor decretos anti-greves foram derrotadas por mobilizações massivas, entre elas a grande greve dos professores. Por conta da crise, o Uruguai se encaminha para uma explosão econômica com todos os ingredientes de seus vizinhos (crise na petroleira ANCAP, similar à da Petrobrás, no Brasil) e ao mesmo tempo a um esgotamento crescente da experiência da Frente Ampla.

A sistemática batalha pela delimitação política que vem realizando o PT uruguaio com relação à Frente Ampla durante mais de uma década expressou-se no resultado que conquistou nas últimas eleições. Esta condição amplia as bases para a luta pela construção de uma alternativa operária e socialista.


A revolução cubana e o governo Obama


Cuba entrou em uma nova fase de transição, onde a burocracia castrista pretende avançar mais decididamente no processo de restauração capitalista. Na ilha está se produzindo um perceptível processo de diferenciação social. A “abertura” de Obama, que se iniciou com um reconhecimento de que em mais de meio século o imperialismo não pôde dobrar a Revolução, não significou, no entanto, na revogação do bloqueio econômico que tantos prejuízos causaram à economia cubana. O Congresso norte-americano condiciona este levantamento a que a burocracia castrista avance no caminho da restauração capitalista, dando garantias para os investimentos estrangeiros.

Em Obama está também a busca de um aliado estratégico para ajudar a conter as crises dos regimes nacionalistas na América Latina e o eventual surgimento de processos revolucionários. Tem levado em conta o papel jogado pelo castrismo para estabelecer “a paz” com as guerrilhas da FARC na Colômbia, desativando a insurgência agrária frente à fabulosa concentração da terra nas mãos de latifundiários durante as últimas décadas. O Vaticano é um dos grandes inspiradores e arquitetos deste degelo.

As recentes viagens de Obama a Cuba e à Argentina não significaram uma turnê triunfal. É parte de uma estratégia preventiva, frente a um continente em ebulição e para fechar as “fendas” no “quintal” dos ianques com vista a enfrentar crises agudas a nível internacional. A viagem de Obama parte da preocupação existente pela debacle econômica e a crescente insurgência na Venezuela e no Brasil. Veio a dar suporte a um débil governo macrista para poder contrabalançar a instabilidade brasileira em curso.

A marcha da restauração capitalista em Cuba dependerá em grande medida, também, da evolução da crise mundial e latino-americana e inclusive da própria crise ianque. Porque os próprios EUA, situados no olho da tormenta da bancarrota capitalista, foram também golpeados pelo esgotamento de seu regime bipartidário que tem afundado as candidaturas do establishment. Esta decomposição é o que explica a irrupção pela direita da candidatura fascistóide de Donald Trump no Partido Republicano, e pela esquerda a de Bernie Sanders no Partido Democrata.

É necessário que os revolucionários do continente ajudem a elaborar um programa para recompor as massas cubanas como fator ativo na atual conjuntura. Propondo, em primeiro lugar, a conquista do direito de organização e deliberação para o movimento operário, para decidir os destinos de Cuba. Propugnamos o levantamento incondicional do bloqueio a Cuba; que os direitos dos trabalhadores possam ser defendidos por sindicatos independentes, livremente eleitos; que a defesa da saúde e da educação gratuita seja garantida por uma gestão direta dos trabalhadores. E a manutenção do monopólio do comércio exterior e financeiro, como ferramentas essenciais de uma economia, que formalmente continua estatizada e planificada.


A classe operária e a juventude


A bancarrota capitalista detonou uma crise industrial, provocando demissões e suspensões massivas e inclusive fechamento de empresas. É necessário enfrentar esta tendência de debacle social, impedindo que a crise do capital seja paga pelos trabalhadores. Se essa tendência se impõe, degradará a coesão e força dos trabalhadores. É necessário se opor ativamente a esta ameaça e lhe opor um programa: proibição de demissões e suspensões, redução das horas de trabalho sem diminuição dos salários; expropriação e funcionamento sob controle e gestão operária de toda fábrica que demita massivamente; organização dos desempregados para impor suas reivindicações. Em oposição à carestia, chamamos a defender um salário equivalente a uma cesta básica familiar e sua atualização automática em função da variação do custo de vida. Não pagamento da dívida pública usurária. Não aos tarifaços e ao desmantelamento das aposentadorias que propugnam os regimes burgueses. Mesmo salário dos trabalhadores em atividade para os aposentados.

Do mesmo modo, denunciamos os planos de saque e recolonização imperialista na região, que estão nas mãos do esvaziamento e desmantelamento da Petrobrás, PDVSA e YPF, e lhe opomos a unidade dos povos latino-americanos em defesa de seus recursos e a nacionalização da indústria petroleira em função de um plano de industrialização regional.

Também entre os estudantes se nota uma crescente mobilização que se choca contra o Estado e suas tentativas de descarregar a crise sobre os trabalhadores e a juventude. Na vanguarda deste processo se encontra a juventude universitária do Chile que vem enfrentando fortes combates pela gratuidade do ensino universitário. Os estudantes secundários do Brasil passam por um processo de lutas que conseguiu frear a aplicação de planos de reforma educacional limitacionista e privatizadora-terceirizadora. No Paraguai, também a juventude universitária saiu massivamente às ruas lutando pela duplicação do orçamento, contra um governo que quer reduzi-lo, obtendo importantes vitórias destituindo reitores autoritários. No Uruguai, os estudantes universitários e secundários estão se mobilizando junto aos docentes contra o ajuste frenteamplista. Na Argentina, a FUBA, principal Federação Universitária, liderada pela esquerda revolucionária, encabeça uma campanha nacional de mobilização contra o ajuste de Macri e em defesa de conquistas democráticas (livre acesso, universidade gratuita, etc.). Os estudantes devem ser a fermentação que se evidencia no início de processos revolucionários. Esta juventude é a que primeiro se mobiliza contra a exploração e a arbitrariedade capitalista, como já havia se evidenciado a campanha contra o assassinato de Mariano Ferreyra na Argentina que levou à prisão aos burocratas e pistoleiros que o mataram. Ou a ampla e propagada mobilização da juventude mexicana pelo “desaparecimento” e assassinato dos 43 estudantes de Ayotzinapa, aonde se encontra envolvido o conjunto do aparelho estatal. Chamamos a impulsionar a coordenação da mobilização juvenil e estudantil a nível continental em defesa da educação laica, estatal e gratuita e pelos direitos dos estudantes e da juventude, uma tarefa que devem desenvolver os revolucionários.


Pelos Estados Unidos Socialistas da América Latina


O nacionalismo burguês fracassou no seu proclamado objetivo de unidade latino-americana. A ALBA impulsionada pelo chavismo faliu. O MERCOSUL nunca passou de ser um conjunto de acordos aduaneiros e comerciais em benefício de monopólios imperialistas instalados de ambos os lados das fronteiras dos países integrantes. No seu momento de auge, o bolivarianismo chavista não pôde avançar em seus projetos de integração energética. O UNASUL não foi mais do que uma tentativa das empresas brasileiras de avançar com suas construtoras e suas empresas de armamentos.

Agora, sob o impacto da crise mundial, se agravam todas as disputas comerciais e enfrentamentos dentro do próprio MERCOSUL. As burguesias regionais buscam acordar em separado com a União Europeia e com o imperialismo ianque. A corrida desvalorizadora no interior da região é uma concorrência pela maior exploração e precarização dos operários de seus respectivos países. O imperialismo ianque tem levado à conformação do Acordo Transpacífico (TTP) ao Chile, Peru e México, os obrigando a abrir suas fronteiras comerciais para a penetração direta do capital norte-americano em segmentos fundamentais e como aliados na guerra comercial que tenta levar contra a China. Um acordo da Argentina ou Brasil com o TTP (Macri e Dilma manifestaram seus interesses por avançar em uma “aproximação comercial” com os países latino-americanos vinculados ao tratado) implicaria não somente um atestado de óbito do MERCOSUL seria o pontapé inicial de uma nova etapa de colonização do imperialismo na região e de um avanço das condições de precarização trabalhista.

Denunciamos as limitações insuperáveis da integração capitalista da América Latina e o saque dos monopólios internacionais que se associam à reivindicação de integração, e propomos a nacionalização dos bancos e do comércio exterior, governos de trabalhadores e a unidade dos povos através dos Estados Unidos Socialistas da América Latina.


Levantemos uma alternativa socialista à bancarrota capitalista


A Conferência Latino-americana que estamos convocando tem como eixo reagrupar a esquerda revolucionária por uma saída própria da classe operária à crise da região. Isto implica em uma delimitação implacável do nacionalismo burguês e do centro esquerdismo. Esta demarcação é uma condição para derrotar a direita e as ameaças golpistas em momentos em que o nacionalismo e o progressismo de conteúdo capitalista pactuam e capitulam com a reação.

Chamamos a tomar veementemente a iniciativa. O abstencionismo nas grandes crises nacionais em curso, ainda que se disfarce com um hiperativismo no âmbito sindical ou reivindicativo, é um indicador de adaptação à ordem social vigente e funcional ao Estado capitalista e seus partidos. Impulsionamos a intervenção da esquerda revolucionária na crise política na perspectiva de desenvolver partidos operários e a fusão com a classe operária.

Esta tarefa é inseparável da luta para enfrentar e derrotar os planos de ajuste. Estes planos já estão em marcha e vão se agravar como consequência do desenvolvimento da bancarrota capitalista. Neste ponto convergem nacionalistas e direitistas, que pretendem descarregar o peso da crise capitalista sobre as massas e submeter aos trabalhadores latino-americanos, desvalorização, austeridade, recessão, através de uma concorrência destrutiva entre eles.

Chamamos a elaborar um programa e uma saída perante a crise, e convocar à esquerda e as organizações combativas dos trabalhadores a uma ação internacional em comum.

Reivindicamos o método da frente única. Quando em 2012 teve lugar a anterior Conferencia Latino-americana em São Paulo (Brasil), constituíra-se a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT), na Argentina. A experiência percorrida pela FIT argentina é educadora: estamos na presença de uma frente das organizações de esquerda que proclama a independência de classe, o qual se opõe com as frentes e a política de colaboração de classes reinantes na América Latina. Reivindicamos esse desenvolvimento da FIT como frente única de classe contra o capital, seus partidos e seu Estado; em oposição às tentativas por convertê-la em um campo de disputas e pendências refletindo as pressões do nacionalismo burguês. O objetivo estratégico que deve presidir um reagrupamento da esquerda é o da independência de classe, a única opção que pode abrir caminho a um polo e canal político alternativo aos partidos e coalizões patronais. Rechaçamos o faccionalismo e a autoproclamação, que é o espantalho ou o veículo para o deslizamento em direção ao democratismo, à colaboração de classes e à defesa da ordem social vigente. Defendemos a frente única que se apoia em um princípio básico, mas fundamental que consiste em colocar, acima de tudo, o interesse geral dos trabalhadores.

                                                                         

segunda-feira, 13 de junho de 2016

IMPEACHMENT, CRISE E GOLPE: Parte 1

                                                                           


O BRASIL NO PALCO DA TORMENTA MUNDIAL

Osvaldo Coggiola

Notas no final da terceira e última parte do texto

Em reunião plenária do Senado, a 11 de maio de 2016, foi aprovado, por 55 votos favoráveis e 22 votos contra, a admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, afastada do cargo por um período de até 180 dias, para que o processo seja concluído com sua previsível destituição (para a qual bastam 54 votos do Senado). Um mês antes disso, um conceituado jurista, vinculado às Forças Armadas e conspícuo defensor do impeachment, afirmou o que segue num dos jornais mais lidos do país, no exato dia da votação da matéria na Câmara de Deputados: “A presidente Dilma tornou o país ingovernável, sem condições de reverter a recessão, o desemprego, o crescimento da inflação para dois dígitos, os juros altos e a pestilência da corrupção que inundou sua administração. O impeachment será, pois, julgado politicamente à luz do imperativo da governabilidade do país e dos elementos jurídicos que o embasam”.1 Em bom português: os “elementos jurídicos” do impeachment são apenas funcionais à questão central da capacidade ou da incapacidade do governo para enfrentar a crise econômica e política, ou seja, possuem uma função ornamental.

O impeachment de Dilma Rousseff, só por causa disso, pode ser qualificado politicamente como um golpe de Estado. Quem limita o uso desse conceito aos golpes militares, ou às mudanças de regime político obtidas mediante o uso explícito da força, possui um conceito estreito e formal, não só do conceito de golpe, mas também do próprio Estado e de seus regimes políticos. A ascensão de Hitler e a concentração em suas mãos de todas as alavancas de poder, que concluiu rapidamente na criação do Estado nazista, foram realizadas mediante o uso dos mecanismos constitucionais existentes na República de Weimar. Foi uma maioria parlamentar do Reichstag (com o Partido Comunista da Alemanha já posto na ilegalidade) que concedeu os plenos poderes ao ditador, que os usou depois para dissolver o parlamento e criar um regime declaradamente antidemocrático, racista, corporativo e genocida (e também, claro, para suprimir a Constituição precedente).2 Contrariamente às esperanças do reformismo de todas as cores, pela porta da democracia burguesa não passou o socialismo, mas o regime político mais reacionário da história.

O golpe-impeachment brasileiro pôs na berlinda um prato que vinha sendo cozinhado como possível alternativa política havia mais de um ano (ou seja, apenas três meses depois da posse do governo Dilma II) em reuniões mensais de parlamentares opositores e situacionistas (da “base aliada”), além de juristas e economistas de todas as cores políticas e ideológicas, reuniões organizadas por um deputado federal piauiense do PSB em Brasília.3 Tudo concluiu na apresentação da moção de destituição da presidenta por juristas de origens políticas diversas, como Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr, além de uma professora de Direito da Universidade de São Paulo (USP) até então desconhecida do grande público.

Que o impeachment estivesse sendo preparado quase desde o início da quarta administração petista tem um significado político que transcende sua circunstância imediata. Dilma Rousseff foi, no momento de suas duas vitórias eleitorais, qualificada (ou melhor, desprezada) como um “poste” de Lula não só pela oposição, mas também pelos aliados parlamentares do PT, partido responsável pela vitória eleitoral da coalizão que a tinha como candidata presidencial. Sua substituição por um vice-presidente peemedebista que ninguém ousaria qualificar de “poste” significa que foi usada como “escada” para a chegada ao poder do partido mais fisiológico e coberto de denúncias de corrupção do país, que não teria podido conseguir esse feito por si só, posto que amargou resultados eleitorais lamentáveis em todas as eleições posteriores à “redemocratização” brasileira em que apresentou candidatos presidenciais próprios.4

A votação do impeachment na Câmara de Deputados, como se sabe, apresentou um espetáculo digno de um circo, capaz de desmitificar historicamente o parlamento brasileiro e, com ele, todo o regime político vigente no país.5 Dos 513 deputados presentes somente cem, menos de 20%, poderiam mostrar um curriculum vitae não manchado pela corrupção. Para dez deles só caberia, como notou um correspondente estrangeiro, o qualificativo de assassinos. Isso explica que o julgamento político da presidenta se baseasse em denúncias sobre as pedaladas fiscais, ou seja, sobre a maquiagem das contas públicas para esconder o déficit público, prática muito comum, que já fora usada no passado pelo governo federal de Fernando Henrique Cardoso, e continua sendo usada por governos estaduais encabeçados por partidos favoráveis ao impeachment. O relator do impeachment no Senado, o ex-governador mineiro Antônio Anastasia, também praticou no seu estado as “pedaladas” pelas quais se busca destituir a titular do Poder Executivo federal.

Não entraram no rol das acusações contra Dilma as denúncias de corrupção na Petrobras e sua rede de empreiteiras. A omissão se deve ao fato de que os deputados que propuseram e votaram o impeachment carregam nas costas também denúncias de corrupção nesse assunto. A lista é encabeçada pelo agora ex presidente da Câmara, Eduardo Cunha, possuidor de contas no exterior não declaradas, negadas em depoimento juramentado (embora comprovadas pela Justiça), que não se apresentou à citação da Justiça amparando-se nos foros parlamentares. Até um afilhado político de Cunha (Fábio Cleto, ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal) denunciou seu padrinho como beneficiário de uma propina de R$ 52 milhões em apenas um de seus “negócios” escusos. Denúncias desse tipo também atingem o vice-presidente, “presidente em exercício”, Michel Temer. A pressa em votar o impeachment respondeu ao interesse de garantir a impunidade dos próprios acusadores de Dilma. Por isso, o presidente da comissão de impeachment no Senado, Raimundo Lira (PMDB), decidiu não incluir as denúncias da “Lava Jato” no processo de julgamento da presidente.

Em editorial de 30 de abril de 2016, a Folha de S. Paulo, partidária ostensiva do impeachment, titulou seu editorial principal: “Chega de Cunha”, consciente de que a presença do ultracorrupto deputado à frente do processo de destituição presidencial lhe tirava até os enfeites mais elementares da chamada “legitimidade política”.6 O STF, como se sabe, atendeu o pedido. Diga-se, de passagem, que a tomada de posição “fora Cunha” do jornal da família Frias foi realizada depois que, no dia seguinte à votação na Câmara, o setor mais graúdo da imprensa internacional, a começar pelo The New York Times, titulasse ironicamente que corruptos reconhecidos se aprestavam a destituir uma presidente contra a qual não existia nenhum cargo dessa natureza, em um processo judicial motivado pela corrupção. A grande imprensa brasileira não se caracteriza pela independência nem pela originalidade.7

A votação parlamentar em favor do impeachment superou todos os prognósticos prévios, reunindo 367 votos. Os deputados que estavam indecisos se inclinaram pelo “sim” devido à pressão exercida por grandes empresários e grupos de interesse poderosos, que financiaram suas campanhas eleitorais. A classe capitalista trabalhou abertamente em favor do impeachment, incluindo a passagem para o campo do golpismo da burguesia industrial de São Paulo, que até havia pouco era parte da base social e política do governo de coalizão encabeçado pelo PT; trata-se de uma burguesia que está sendo arrasada economicamente pela concorrência da China, especialmente as grandes siderúrgicas.

A classe empresarial apoiou o golpe para brecar os processos contra inúmeros grandes empresários. Marcelo Odebrecht, na prisão, se somou à “delação premiada” para reduzir sua pena e blindar sua empresa das consequências patrimoniais derivadas da punição econômica pelas propinas pagadas nos contratos da Petrobras. A Andrade Gutierrez, do seu lado, se adiantou às consequências judiciais e se prontificou a devolver um bilhão de reais aos cofres públicos, em oito prestações (uma cifra que deixa entrever o tamanho das negociatas propiciadas pelo histórico “modelo de negócios” da maior empresa do país). A função de um governo Temer será a de pôr um freio às investigações,8 que evidenciam a base apodrecida do regime político e da própria classe capitalista brasileira. No início do século XXI, no entanto, foi essa mesma classe social a que precisou da presença do PT no governo do país, um processo que vale a pena reconstituir a partir de suas origens.

A “Transição Democrática”

A crise econômica mundial da década de 1970, que levou à crise do “milagre brasileiro” na segunda metade dessa década, colocou duas opções básicas, de um ponto de vista capitalista: resgatar uma parte do ativo fixo em mãos do Estado ou da burguesia nacional para pagar os credores externos, ou impor uma disciplina ao grande capital externo e o intervencionismo estatal. A política de Delfim Netto, em 1979, expressou um curso intermediário, ao tratar de resolver o impasse com métodos antigos: subsídios às exportações, desvalorizações, controle limitado dos preços, redução do orçamento das empresas estatais. O resultado disso, especialmente nas condições de recessão de 1980/82, foi o agravamento da crise social (com grande aumento do custo de vida) e a ruína progressiva do sistema financeiro (mercado negro, fuga de capitais, inflação crescentemente fora de controle). Enquanto o crescimento anual médio do PIB atingira 7,1% no período 1947/1980, essa taxa se reduziu a 1,6% nos anos 1980, a chamada “década perdida”.

Entre fins dos anos 1970 e meados dos anos 1980, as oposições sindicais realizaram uma dura crítica à estrutura do sindicalismo de Estado. Esta fase de retomada das mobilizações da classe trabalhadora brasileira na luta contra a ditadura militar ficou conhecida como “novo sindicalismo”. Nas condições de crise e de renascente luta das massas exploradas, a continuidade política da ditadura só foi possível pela existência de um acordo com a oposição burguesa (MDB) que limitava suas divergências à questão das datas do calendário da abertura, evitando formular qualquer medida de ruptura com a finança internacional (no máximo colocava, como fez Celso Furtado, uma renegociação da dívida do Brasil com os governos dos países credores). A irrupção das massas trabalhadoras, presente no cenário político a partir das greves do ABCD em 1978-79, questionou esse acordo até pô-lo em crise, crise cuja expressão foi a campanha pelas "Diretas-Já" (1984). Nesse ano, o movimento operário retomou o caminho iniciado no ABCD um quinquênio antes, diante da fabulosa expropriação salarial expressa na inflação de 222%.

Lançada pelo PT, a campanha pelas eleições diretas para presidente, que levou milhões às ruas, poderia ter sido a projeção política antiditatorial da luta contra a exploração, encabeçada pela classe operária. Não foi isso, devido a que sua direção burguesa/emedebista - aceita pelo PT - limitou sua projeção à pressão sobre as instituições (com a emenda parlamentar Dante de Oliveira) surgidas no ventre da ditadura militar. Para contornar a crise, o regime teve que pagar o preço da divisão da ex ARENA (transformada em PDS, do qual se cindiu o PFL, representando setores oligárquicos nordestinos) e transferir o governo para a coalizão civil resultante dessa divisão, a Aliança Democrática (PFL/PMDB), estruturada com base no candidato de consenso (das Forças Armadas, do imperialismo e da burguesia) Tancredo Neves. Isto evidenciou a continuidade da tendência para uma saída bonapartista, mas agora com centro civil.

A morte de Tancredo pareceu coroar a operação, realizando de maneira oblíqua os planos de Geisel-Golbery (transferência do governo a um civil da ARENA), cooptando a oposição burguesa no quadro de um regime tutelado, ao levar à presidência o ex-presidente da ARENA, José Sarney. Mas dez anos de crise e lutas populares não tinham passado em vão, e o personalismo de Sarney foi uma espécie de bonapartismo às avessas. Foi para enfrentar a ascensão das massas (em 1985 as greves bateram recordes históricos, feito repetido nos primeiros meses de 1986), assim como para condicionar as eleições de governadores (1986) e o processo da Constituinte (1987), que Sarney lançou uma iniciativa pela via do decreto, o Plano Cruzado de “combate à inflação”. Sua finalidade foi sustar o lançamento de uma nova campanha pelas diretas-já. A iniciativa - com os "fiscais de Sarney" e o hipotético "partido do presidente" - visou adiar um enfrentamento político/social, intervindo audaciosamente na crise partidária. Os trabalhadores deveriam aceitar salários reduzidos, para evitar o aumento da massa salarial, fixando também um limite para a expropriação salarial, resultante de congelar os preços no pico e os salários na média.

Essa tentativa de estruturar um poder-árbitro entre as classes teve fôlego curto, devido à própria magnitude da crise econômica, mas serviu, junto com o PNRA (Reforma Agrária), para modelar em grande medida o processo eleitoral posterior, apoiando-se nos condicionamentos antidemocráticos do regime militar. Assim, o PMDB foi o grande vitorioso eleitoral em novembro de 1986 (vencendo as eleições em 22 dos 23 estados) e na Constituinte, iniciada em 1987, que concluiu em 1988 sagrando a grande propriedade fundiária, a tutela militar do regime político, o conjunto da estrutura capitalista, pondo só restrições formais à penetração do capital estrangeiro em setores estratégicos. As "conquistas trabalhistas" incorporadas ao texto (40 horas semanais, licença maternidade/paternidade, direito de greve para o funcionalismo público) apenas visaram contemporizar com direitos já existentes de fato, aguardando uma regulamentação para anulá-los na prática. Uma oposição revolucionária deveria ter denunciado o conjunto da manobra, preparando sua derrota, mas o PT, além de "apoiar criticamente" o Plano Cruzado, integrou-se na manobra, limitando-se a não assinar a nova Constituição.

A Constituinte, sancionada em 1988, não fechou a crise política crônica do Brasil, nem criou um novo regime político: o país continuou sendo governado através de decretos-lei por um poder sustentado principalmente nas Forças Armadas. No entanto, no segundo semestre de 1988 fracassou totalmente a tentativa de Sarney de subordinar o processo constituinte ao seu próprio poder. O fracasso do Plano Cruzado refletiu a incapacidade do governo em estruturar uma arbitragem entre as classes. A tendência democratizante, imposta pelo aprofundamento da luta de classes, se esgotaria só quando este aprofundamento alcançasse um ponto incompatível com a estabilidade do Estado. Na Constituinte, os cinco anos de mandato para Sarney foram arrancados por uma pressão organizada pelos empresários ligados à ditadura militar e pelos próprios militares. Em nenhum caso, a mudança do regime militar para um regime civil significou a implantação de uma democracia política, mas apenas de uma fachada constitucional para instituições com origem na ditadura militar. Os compromissos internacionais, eixo do processo de exploração internacional da América Latina, foram respeitados pela “democracia brasileira”, em especial a dívida externa.

No Brasil, como em toda a América Latina, a transição política para regimes civis foi motivada pelo esgotamento econômico e político dos regimes militares, no quadro da crise econômica mundial (a “crise das dívidas”, em 1982, evidenciou a incapacidade desses regimes em continuar pagando a dívida externa, expressão da decomposição econômica em escala mundial), de crises internacionais cada vez maiores (guerras civis e internacionais na América Central, guerra Equador-Peru, e guerra das Malvinas em 1982) e de mobilizações populares sem precedentes, guerrilha com apoio de massas em toda a América Central e na Colômbia, mobilizações antiditatoriais nos países do Cone Sul, greves de massa e mobilização pelas “Diretas Já” no Brasil. Um panorama semelhante acontecia na política mundial, expressado na revolução iraniana de 1979, e nas crises no Oriente Médio, o que levou os EUA a mudar o eixo de sua política externa.

Explicitando o sentido da mudança, afirmou um documento oficial dos EUA: “O autoritarismo de extrema direita tem sido um importante fator que contribuiu para uma nova e crescente ameaça à democracia: a ameaça do totalitarismo comunista... O apoio à democracia, a própria essência da sociedade americana, está se tornando o novo princípio em torno do qual se organiza a política externa norte-americana. O apoio à democracia promove os interesses dos Estados Unidos de várias formas importantes. A democracia ajuda a garantir a segurança dos Estados Unidos. Os governos democráticos, precisamente porque devem ser sensíveis aos desejos dos seus povos, tendem a serem bons vizinhos. A competição política aberta e regular diminui a polarização e as extremas oscilações do pêndulo (como aconteceu no Chile, em Cuba e na Nicarágua) e torna as nações mais resistentes à subversão. Os governos democráticos são mais confiáveis como signatários de acordos e tratados porque seus atos são sujeitos ao exame do público. A democracia também favorece importantes interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos” (grifo nosso).9

Os regimes civis surgiram no ventre dos regimes militares: no Brasil, garantiram a sua participação direta no poder através dos ministérios militares, e sua continuidade política com a Lei de Segurança Nacional e a Polícia Militar; no Chile, a oposição (incluídos o PC e o PS) aceitou governar na base da Constituição pinochetista de 1980, e garantir oito anos de mando de tropa para os comandantes do ditador; no Peru, a Constituinte legislou sob a tutela do governo militar de Morales Bermúdez; no Uruguai, o regime civil se baseou no “Pacto do Clube Naval”, que garantiu a impunidade militar, reforçada em plebiscito; na Argentina, as crises militares foram aproveitadas pelos "democratas" radicais, peronistas e liberais para institucionalizar o poder militar no Conselho de Segurança Nacional, e para inocentar os genocidas através do "ponto final" e da "obediência devida"; no Paraguai, o governo civil sequer transcendeu os limites familiares, pois o presidente Andrés Rodriguez era da família do ditador Stroessner.

A política democratizante não foi sequer o contrário do intervencionismo militar externo: foram os democratas bolivianos os que admitiram a intervenção de tropas ianques no país, sob o pretexto de combate ao tráfico de drogas; o mesmo pretexto foi usado para o bloqueio naval da Colômbia; foi reforçado o cerco militar de Cuba, e invadida a ilha de Granada; foi militarizada como nunca a América Central, através da "contra" nicaraguense e do envio de tropas norte-americanas para Honduras e El Salvador e, caso extremo, mas exemplar, foi invadido o Panamá para impor um governo “democrático". A política ianque consistiu em combinar a manobra democratizante com o velho big stick.

Em meio a agudas disputas e crises políticas, os regimes democratizantes latino-americanos surgiram sob a hegemonia preservada do capital financeiro internacional, e da burguesia local a ele associada, preservando a integridade (e até os interesses) das camarilhas militares precedentes. O governo Sarney, produto de eleições indiretas, caiu em meio a um fracasso econômico contundente, com uma hiperinflação galopante (que atingiu 53.000% anual, determinando várias mudanças de moeda), provocada pela especulação financeira com os títulos públicos.

A Crise da Transição

Na virada para o novo século, o governo Lula se originou tanto na ascensão eleitoral sistemática do PT nas duas décadas precedentes, quanto numa combinação inédita de crise interna (crise do Plano Real e do governo FHC) e externa (crise econômica mundial), que o tornaram possível e até necessário para a burguesia brasileira e o grande capital internacional. Em 1989, ano da queda do Muro de Berlim e das grandes esperanças capitalistas, ao contrário, Mário Amato, presidente da FIESP, apelou para o terrorismo econômico verbal, ameaçando publicamente com uma fuga maciça de capitais do país caso Lula vencesse o segundo turno das eleições presidenciais, vencidas por Fernando Collor de Mello.

O problema consistia em que a política burguesa brasileira se apoiava numa base social explosiva e padecia, por esse e outros motivos, de instabilidade crônica, como constataram dois analistas das “transições democráticas”: “O Brasil tem, de longe, a distribuição de renda mais desigual e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos, fato que não ajudou na tarefa de consolidar a democracia. Além disso, o Brasil tem historicamente o menos estruturado sistema de partidos políticos... Nesse contexto, entre 1985 e 1993, sete diferentes pacotes de reformas foram lançados, fracassaram e foram abandonados por uma sociedade política incapaz de unir-se para forjar uma coalizão sustentável para a formulação de novas políticas”.10

O governo Collor, surgido das eleições de 1989, assim como os outros governos “democráticos” latino-americanos (cujo conteúdo econômico não foi o de opor uma resistência limitada ao imperialismo, mas o de aprofundar a entrega nacional, levando-a a níveis inéditos, até quando comparada com as ditaduras militares) aceitou o princípio do pagamento integral dos juros11 como garantia para a renegociação da dívida impagável, e também o princípio de "capitalização da dívida", liquidando o aparelho produtivo nacional, entregando-o em troca de títulos desvalorizados aceitos pelo seu valor nominal. Collor acabou com a histórica reserva de mercado para setores estratégicos e elaborou o primeiro plano econômico em que a privatização das empresas estatais era o eixo da política do Estado. Collor cobrou o preço por ter livrado à burguesia do “sapo barbudo” montando uma roubalheira monumental baseada num esquema de saques, comissões e desvios de verba, comandada pelo seu ajudante PC Farias, de US$ 8 bilhões; mas todos os vitupérios posteriores contra o “presidente-ladrão” não mexeram uma palha do norte estratégico de sua política econômica entreguista, que foi mantida pelos governos sucessivos.

Collor não foi destituído, em 1991, por causa desse programa, mas pelos seus patológicos excessos cleptomaníacos, que foram o eixo de uma mobilização popular – cuja iniciativa coube à esquerda petista – manipulada pela burguesia, pela mídia crescida na ditadura (Rede Globo e Folha de S. Paulo), com os estudantes “carapintadas” na rua. O esquema político de Collor excedia em muito sua base social e política real, e a própria burguesia preferiu livrar-se do embaraçoso corrupto e de sua “corte dos milagres” – depois deste ter cumprido sua tarefa de impedir a vitória eleitoral de Lula, e de ter atacado a hiperinflação mediante a maior expropriação realizada no Brasil do salário e das poupanças das classes pobres (“Plano Collor”).

Essas foram as bases econômicas e políticas de seus sucessores (Itamar Franco, seu vice-presidente, e, finalmente, FHC). Estes enfrentaram movimentos de luta desgastados pela castração política da luta contra a ditadura militar e contra Collor. Itamar Franco não foi um simples governo “de travessia”, pois continuou a repressão contra a classe operária e o MST, assim como o programa de privatizações, mas fez isso cooptando até lideranças petistas, como a ex prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, que geriu a área “social” do governo, enquanto, na Fazenda, FHC lançava o plano econômico que estabilizou e unificou temporariamente a burguesia e o capital financeiro internacional.

O governo Itamar Franco deu continuidade às políticas precedentes, principalmente no que diz respeito à ampliação de espaços na educação para o setor privado. Instituiu a Lei 8.958, que abriu o espaço das universidades públicas para as fundações privadas. A CPMF foi criada em 1993, como Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF), por iniciativa do ministro da Saúde Adib Jatene; ele deveria incidir sobre toda movimentação financeira durante apenas um ano, com recursos completamente destinados à saúde. O ministro empenhou-se para a aprovação da proposta no Congresso, primeiro como imposto com vigência de um ano e depois como contribuição provisória de duração indefinida, que acabou se transformando em um confisco parcial dos salários para equilibrar as contas públicas.

A viabilização do governo Itamar Franco foi favorecida pelo relativo refluxo das lutas da classe trabalhadora, devido à frustração política das lutas precedentes. No interior do establishment brasileiro, no entanto, ganhou vigência a necessidade de uma mudança política. As catástrofes em que tinham concluído os dois primeiros governos civis haviam demonstrado a incapacidade dos partidos burgueses para sustentar a estabilidade do regime político (a candidatura Collor, recurso de crise contra a ascensão do PT, por exemplo, fora lançada por um inexistente “Partido da Juventude”).

O programa federal de privatizações, saneamento monetário e tributação regressiva, exigido pelo capital internacional e local, era incompatível com governos como os de Sarney, Collor e Itamar Franco, sustentados em partidos demasiadamente comprometidos com as oligarquias regionais, com seus interesses disparatados e sistemas próprios de falcatruas. Do PMDB surgiu assim o “moderno” PSDB (com apoio de frações de outros partidos), no qual, ao lado de políticos regionais tradicionais (como Franco Montoro ou Mário Covas, de São Paulo, ou Tasso Jereissatti, do Ceará) a hegemonia política ficou nas mãos de representantes da intelectualidade paulista “de esquerda moderna” (Fernando Henrique Cardoso, José Serra, e sua geração de discípulos-agregados do Cebrap).

A explosão da inflação no governo Itamar Franco (952% em 1992, 1928% em 1993, 2050% em 1994, o que fez ruir as poupanças e a renda dos setores de rendimentos varáveis) decretou a falência dos “choques econômicos” precedentes, baseados no congelamento de preços e salários, ou seja, retratou a incapacidade do regime político em estabelecer a mais elementar arbitragem entre as classes. Os planos anteriores ao Real foram marcados pelos congelamentos de preços e salários (Cruzado, 1986; Bresser, 1987; Verão, 1989; Collor I e Collor II); seu insucesso foi creditado à “falta de credibilidade”, ou seja, à perda de capacidade reguladora e arbitral do Estado. A virada dos anos 1980-1990 foi marcada pela crise desses “modelos de estabilização”, pela eclosão da hiperinflação e, ao mesmo tempo, pelo surgimento de outro “modelo”, baseado na introdução de âncora cambial. México (1989), Chile (1990), Argentina (1991) e Brasil (1994), além de outros países latino-americanos, asiáticos e do Leste europeu, introduziram uma nova modalidade de estabilização com estrutura básica semelhante.

A base para a implantação desse modelo foi o excedente de capital-dinheiro na economia mundial, resultante de várias fontes: a queda da taxa de juros dos Estados Unidos; o grande volume de recursos provenientes do crime, com a expansão da produção e da comercialização de drogas que, juntamente ao tráfico de armas, passou a representar em torno de um trilhão de dólares por ano; a renegociação da dívida externa latino-americana através do Plano Brady, que revitalizou um grande volume de recursos sob a forma de títulos públicos, passando a servir de base para novos créditos; e os recursos que advinham do deslocamento de capital imobilizado para a esfera financeira, atuando no mercado de títulos públicos e no mercado de câmbio, somado aos grandes lucros financeiros que não conseguiam ser reinvestidos produtivamente, além da expansão dos fundos de pensão: os novos planos eram, na sua base, um novo método de resgate do capital excedente num mercado mundial em crise.

Isso foi a base econômica do Plano Real, lançado por FHC como ministro de Fazenda de Itamar Franco, capturando inclusive a esquerda, que aceitou o plano com críticas secundárias. FHC sabia que o Plano Real não bastaria para se eleger, era necessária uma aliança com aqueles que detinham a técnica da fraude eleitoral, movida pelas oligarquias regionais: o “moderno” PSDB articulou, desse modo, uma aliança com toda a direita arcaica brasileira, que foi a base de seu governo. A “novidade” econômica do plano de estabilização monetária (a “âncora cambial” – que supunha um constante e consistente fluxo de investimentos externos para se sustentar) escorava, na verdade, em condições políticas que, por sua vez, supunham uma entrega nacional sem precedentes.

O Governo FHC

O governo FHC deveu sua relativa estabilidade ao longo de oito anos (1995-2002) ao fato de postular-se como expressão de uma “grande coalizão” burguesa. O Plano Real foi diverso dos planos de estabilização monetária precedentes, porque introduzia as políticas de ajuste do BIRD e do FMI, tendo como eixo as privatizações. Os organismos internacionais exigiram várias reformas: do Estado, da previdência social, universitária, quebra do monopólio estatal em setores estratégicos (petróleo)12 e flexibilização dos direitos trabalhistas. A questão monetária, ponto culminante do plano, privilegiou essa finalidade, não tocando em questões como a distribuição de renda e a estrutura da propriedade rural (reforma agrária), investimentos e geração de empregos. No primeiro governo FHC foram aprovadas as chamadas “reformas constitucionais da ordem econômica”, com a quebra dos monopólios estatais, a igualdade de tratamento entre empresas nacionais e estrangeiras, e a desregulamentação de atividades até então consideradas estratégicas.

Os benefícios concedidos pelo governo às empresas compradoras das estatais chegaram a US$ 45 bilhões, valor maior do que o patrimônio vendido e mais que o dobro do “ganho” obtido com as desestatizações (o lucro alegado foi de US$ 17,9 bilhões). Parte das estatais foi comprada com financiamento do BNDES com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Houve também a abertura comercial do país com a drástica redução das tarifas alfandegárias, ampliando a oferta de produtos importados. A contrapartida de ampliação das exportações não se consolidou; o resultado foi a passagem de uma situação de superávit comercial (US$ 29,5 bilhões em 1989) para uma de déficit (US$ 45,8 bilhões em 1999), combatendo a inflação com produtos importados a preços menores do que os nacionais ("a indústria nacional precisa se modernizar para competir", foi o discurso oficial). Cadeias produtivas inteiras foram desarticuladas, a dependência externa aumentou, com a desvalorização dos patrimônios nacionais vendidos a empresas multinacionais a preços baixos, para garantir a entrada de dólares e cumprir as obrigações com o capital financeiro (dívida externa).13

As privatizações renderam, ao todo, US$ 63,6 bilhões. Mesmo assim, a dívida externa pulou de US$ 123,9 bilhões em 1991 para US$ 236 bilhões em março de 2002. Durante o primeiro mandato de FHC (1995-1998), o país desembolsou cerca de US$ 126 bilhões a título de juros e amortização da dívida externa. As despesas líquidas de juros subiram de US$ 8,2 bilhões em 1995 para US$ 15,2 bilhões em 1999. As consequências sociais, com a recessão econômica e os cortes orçamentários, foram o desemprego aberto e o “trabalho precário” generalizado. Sob a denominação de “trabalho informal” escondeu-se o crescimento da exploração sem limites (sem nenhuma contribuição previdenciária e sem taxas patronais de qualquer natureza), com jornadas de trabalho de até 70 e 80 horas semanais, modalidade responsável por 60% dos empregos criados no Brasil no período FHC.

O Plano Real dependia por inteiro da prosperidade econômica mundial, da propensão do capital financeiro para investir no Brasil, para o qual se ofereceu uma remuneração extraordinária através da elevação dos juros, reforçando a tendência parasitária (“rentista”) do capital financeiro. Os “planos de estabilização” na América Latina se inseriram no contexto de crise e da batalha econômica mundial. Um novo papel dos organismos econômicos e financeiros internacionais foi imposto pelos países imperialistas. Os planos de estabilização apontaram para a recuperação do dólar como moeda de troca (comercial e financeira) mundial, ou seja, para a recuperação do capital financeiro e do imperialismo norte-americano.

O endividamento externo foi o principal instrumento desse processo. A “renegociação das dívidas” foi o solo no qual floresceu a “estabilização dolarizada” e o processo de crescente expropriação do excedente econômico nacional dos países latino-americanos pelo capital rentista internacional. No meio da "globalização", a América Latina foi submetida a uma nova colonização econômica por meio da drenagem do esforço nacional (dívida externa e remessas de lucros), da entrega do patrimônio acumulado (privatizações) e da submissão monetária ao Banco Central dos EUA (planos de conversibilidade e, em alguns casos, dolarização da economia). Isso não poupou o continente da crise mundial do capitalismo, crise que se traduziu nas crises da Ásia, da Rússia e do Brasil (1997-99), na quase falência bancária dos EUA em 1998, no impasse da UE, na desagregação dos blocos comerciais, como o Mercosul14 e os blocos asiáticos; no fracasso do Japão em sair de uma depressão econômica profunda e duradoura. A essa crise vinculou-se o acirramento da luta de classes e da instabilidade política no mundo todo.

Entre 1990 e 1997, a América Latina foi o mercado mais dinâmico para os Estados Unidos, recebendo 20% das exportações estadunidenses, enquanto o Japão e a Ásia Oriental recebiam conjuntamente 25%. Isto permitiu aos EUA enxugar uma parte de seu déficit comercial com Japão e Europa. Como resultado da abertura propiciada pelo Plano Real, desde 1994 as importações brasileiras cresceram 86%, enquanto as exportações se ampliaram de 58,9%, um ganho de 31,6% para as importações.

Em 1995, com um ano de governo FHC, o serviço da dívida externa representava (parcela da dívida mais juros) 38,9% das exportações brasileiras. Em 2002, último ano desse governo, o mesmo serviço representava 92,7% das exportações. Em 1995, a dívida externa representava 27,9% do PIB; em 2002, elevou-se para 44,2% do PIB. A dependência do país da entrada de capital especializado em operações de curto prazo aumentou drasticamente. Com a economia estagnada, a desvalorização do real buscou elevar as exportações para cobrir o serviço da dívida. No entanto, ela continuou a crescer.

No setor-chave da indústria brasileira (o setor automotivo), os números são os que seguem: em 1980, 133.683 empregados produziam 1.165.174 veículos anuais; em 1993, 106.000 empregados produziam 1.390.871 veículos (passou-se de 8,7 veículos por empregado para 13,1). O Plano Real causou um impacto positivo nos balanços das empresas. Um levantamento de amostras de 72 empresas realizado pela revista Exame constatou que as mesmas haviam lucrado US$ 5,5 bilhões em 1994, comparados a somente US$ 867 milhões no ano anterior; a taxa de retorno sobre o ativo aumentou de 3,1% em 1993 para 9,8% em 1994.

Os ganhos em produtividade não foram devidos, essencialmente, a investimentos tecnológicos do setor privado (que ficaram, proporcionalmente, aquém daqueles da década de 1970), e muito menos ao investimento do setor público, em que pesem as privatizações e o sucateamento do setor. Ao arrocho salarial e às demissões, deve-se acrescentar a flexibilização trabalhista, como causas principais. O Brasil perdeu 2,060 milhões de empregos formais nos anos 1990, conforme dados do Ministério do Trabalho.

Com a entrada de dinheiro para a saúde por meio da CPMF (Contribuição “Provisória” sobre a Movimentação Financeira), o governo desviou os recursos de outras fontes destinados ao setor. Assim, o dinheiro “a mais” que entrava devido à CPMF era, em parte, “descontado” do repasse do governo, de forma que, no final, tudo ficava mais ou menos na mesma para a saúde e o governo saía com um extra de recursos que era utilizado para pagar a dívida. Assim, desde 1996 os recursos que o governo destinava antes à saúde foram reduzidos substancialmente. Entre 1996 e 2000, o repasse do Cofins para a saúde caiu de 42,4% para 34,7% e o repasse da CSLL caiu de 20,8% para 13,9%. Em 2002, a CPMF arrecadou nada menos que R$ 21 bilhões.

A CPMF era um imposto não progressivo: tributando todas as movimentações financeiras igualmente, o imposto não cobrava a mais dos mais ricos. O governo FHC, além disso, criou um mecanismo mais geral de desvio de recursos dos gastos sociais: a DRU, Desvinculação de Recursos da União, para tirar dinheiro que estava “amarrado” – normalmente com gastos sociais – para ser utilizado para outros fins – normalmente aumentar o superávit fiscal para pagar os serviços da dívida pública. A DRU foi criada em 1995 com o nome de Fundo Social de Emergência, e depois reeditada sob o nome de Fundo de Estabilização Fiscal e, finalmente, reeditado com seu nome atual. A DRU permite desvincular 20% de todo o orçamento da União para o governo gastar como quiser. A maior concentração de recursos vinculados está no sistema de Seguridade Social, que abrange a Saúde, a Assistência e a Previdência Social, desviando dinheiro destinado a gastos sociais para outros fins, principalmente o pagamento da dívida.

Junto ao saque financeiro (circulação) houve também um aumento da taxa de exploração (produção). Nas últimas três décadas do século XX houve um aumento da produção em 20% na indústria brasileira, acompanhada por uma redução de 75% nos postos de trabalho. A grande indústria, responsável pela maior parte da produção, gera menor quantidade de empregos. Contrariamente, centenas de milhares de pequenas firmas, responsáveis pela “informalidade”, compreendem a maior parte da força de trabalho assalariada. Apenas 400 empresas no Brasil geravam mais de 60% do PIB, um índice de concentração superior ao dos países “desenvolvidos”. O Brasil combinava os males da monopolização do capital, junto com os do seu próprio atraso econômico.15

A colaboração de classes, junto à repressão social, foi a principal arma política usada para impor os objetivos de superexploração do trabalho. A CUT participou de 14 das 26 Câmaras Setoriais impulsionadas pelo governo, das quais apenas três fecharam acordos, com benefícios mínimos e efêmeros para os trabalhadores; ao mesmo tempo em que se condenou ao isolamento e à derrota a greve dos petroleiros, se isolou as lutas dos funcionários públicos federais e estaduais no final da década de 1990, e se bloqueou estrategicamente a aliança entre os operários industriais e os camponeses sem-terra, estes sendo o mais importante movimento de luta na década de 1990 e na virada para o século XXI. Isto foi a base da estabilidade política conquistada por FHC, que conseguiu se reeleger em 1998, sem necessidade de segundo turno, depois de aprovada, mediante uma compra escancarada de votos parlamentares, a emenda constitucional que instituiu a possibilidade de uma reeleição presidencial.

Paralelamente, o significativo aumento da representação parlamentar do PT (46 deputados e seis senadores), além da conquista de prefeituras e governos estaduais (como RS), apresentado como "troféu de consolação" da segunda derrota eleitoral de Lula em 1994, foi, na verdade, a constituição de uma reserva política estratégica. As classes dominantes eram conscientes da fragilidade do "consenso social" estabelecido em torno de FHC: afinal, ele só fora votado por 35% do padrão eleitoral em 1998 (aí incluído o enorme número de votos "de cabresto") e seus índices de popularidade despencaram pela metade só no primeiro mês do seu segundo governo. A integração da “oposição” era um objetivo vital para a estabilidade política. O crescente peso interno ao partido dos parlamentares petistas (e também dos dois governadores eleitos pelo PT, que receberam no segundo turno o apoio do próprio FHC) inclinou a balança interna do PT no sentido dessa integração. Criaram-se assim as condições para o PT virar um “partido de governo”.

PT: da Oposição ao “Partido de Governo”

O PT não nascera de uma evolução natural ou linear do operariado, mas de um conjunto de contradições e processos políticos abrangendo diversas classes sociais. Na etapa aberta em 1978-1979, com as extraordinárias greves paulistas, o proletariado não estava disposto a reeditar as velhas experiências de conciliação de classe de tipo varguista, nem a burguesia nativa a tentar um período amplo de concessões trabalhistas, pois sua dependência externa tinha se acentuado a partir de 1964, e o proletariado era extremamente mais forte e concentrado do que no passado. A essas tendências históricas combinou-se a crise do regime militar, em especial a crise do sistema de atrelamento dos sindicatos, que deu lugar, na própria estrutura sindical atrelada, ao "novo sindicalismo", fornecendo a base política para o lançamento da proposta do PT.16

O PT não surgiu, como é comum ler, “do interior dos sindicatos”, mas de um processo de recomposição política não somente na classe operária, mas também da ala esquerda da pequena burguesia (com reviravoltas e mudanças nas posições políticas de todos os setores de esquerda entre 1977 e 1981). Lula não era contrário a formar um partido com a esquerda emedebista, mas não estava disposto a abrir mão da hegemonia no processo de formação do partido, já que era a única liderança política de fato da classe operária.17 A maior parte da intelectualidade de esquerda, o PCB e o PC do B, ficaram no MDB; por outro lado, uma série de grupos menores, muitos vinculados à Igreja, entrou ao PT, que ficou com os sindicalistas “lulistas” na liderança.

Se, de um lado, a proposta do PT teve vigência desde sua origem graças à ascensão do movimento operário, de outro, a proposta dos sindicalistas autênticos se realizou graças ao fracasso das negociações com a esquerda emedebista. A direção sindical, não tendo nos partidos da oposição nenhum tipo de representação política, e frente à reformulação partidária, lançou o PT para buscar um lugar no novo arranjo dos partidos, e evitou lançar mão da autoridade dos sindicatos de massa que dirigia para a construção do partido. Isso explica o enorme peso que tiveram no movimento setores minoritários de esquerda e alguns “autênticos” cindidos do MDB. Em lugar de ter como base as organizações operárias, o PT foi uma proposta de aliança de um setor da burocracia sindical com grupos de esquerda de base pequeno-burguesa, baseada na formação de “núcleos”.18

Por isso, em lugar de tomar a forma de um partido operário de massas tomou a forma de um agrupamento centrista: houve até a aberração de que boa parte dos grupos de esquerda que se puseram a formar "núcleos" do PT continuou a atuar dentro do MDB. A legalização do PT, no quadro do regime militar, comportou uma derrota política imediata da burguesia, assim como a evidência de que o proletariado continuava submetido politicamente a variantes bastardas daquela. A legalização do PT, nos termos em que ocorreu, refletiu o refluxo do movimento de massas, após as greves de final da década de 1970,19 assim como sua escassa diferenciação política. A legalização do PT ratificou, no entanto, que, ao menos durante um período, esse partido seria o quadro político principal para todas as correntes de esquerda.

A falência das antigas direções políticas da classe operária, nacionalistas e, em menor medida, stalinistas20 (falência que era produto da experiência histórica com essas direções, da qual o surgimento do PT, em 1980, foi a expressão mais contundente) deu um papel decisivo à pequena-burguesia democratizante "de esquerda", dominante na esquerda latino-americana. Isto foi favorecido pela conduta da direção sindical “autêntica”, encabeçada por Lula, que limitou o processo grevista do ABC, adaptando-o à estratégia conciliadora da oposição burguesa (MDB) com a “abertura” patrocinada pela ditadura militar. Um “verdadeiro PT” (um partido operário de massas), no entanto, só poderia surgir sobre a base do amplo desenvolvimento do movimento das massas.

Com o esvaziamento do movimento operário e popular, a proposta do PT – que surgira como expressão do choque dos operários em luta contra o atrelamento de suas organizações ao Estado, e contra as direções pelegas atreladas à ditadura e à burguesia – foi capturada por intelectuais da classe média e por um conglomerado de grupos de esquerda que limitavam seu horizonte político a uma fraseologia democratizante vulgar (como o “controle da economia pelo parlamento”, a “solidariedade internacional”, e outras assemelhadas). A juventude, inexperiência e escasso desenvolvimento político do movimento operário, de algum modo, faziam desse o resultado mais provável do “sonho petista”. Mas esse resultado foi também condicionado pelo reformismo da esquerda, pois o PT “das origens” foi, em suas ideias, a esquerda do país em sua realidade.

Essa esquerda se orientava pelo programa da “democracia como valor universal”, criticando o “golpismo” da esquerda precedente3, foquista ou stalinista, e descartava como “golpista” o programa revolucionário.21 Sua fusão política com os “novos sindicalistas” aconteceu no PT. Os partidos “dos trabalhadores”, ou trabalhistas, certamente, não se constituem sobre a base de um programa, e sim sobre a base do movimento real ou espontâneo dos trabalhadores. Por isso, neles desempenham um papel importante os dirigentes sindicais. Esta característica, em que as colocações políticas se acomodam às necessidades práticas, acaba por inviabilizar esses partidos, ou os transforma em politicamente burgueses, como foi o caso do trabalhismo britânico ou da socialdemocracia alemã.

O PT, graças à esquerda antirrevolucionária que o hegemonizou, assumiu um programa democratizante, nem sequer consequentemente democrático, propondo "a desvinculação das empresas estatais dos monopólios", não a expropriação do imperialismo; "a nacionalização do latifúndio improdutivo", não a reforma agrária através da expropriação do capital agrário, culminando na "democratização do Estado", que deveria ser “submetido ao controle das organizações sociais e do povo", o que não era uma formulação consequentemente democrática, já que não propunha a destruição do aparato de Estado, da ditadura militar e do conjunto do regime político baseado nela.

Quanto ao “socialismo”, o conceito foi inicialmente recusado, e posteriormente admitido (1981) como "o socialismo que será definido pela luta diária do povo brasileiro", o que rechaçava explicitamente uma definição do socialismo como regime político de classe, baseado na expropriação do capital, na liquidação do seu Estado e no governo operário e camponês; e diluía o socialismo em considerações sobre a "participação das massas" e o "controle social". Sobre essas bases políticas foi se desenvolvendo o PT, interessando a setores cada vez mais amplos da classe operária, estendendo-se nacionalmente, obtendo sua legalização eleitoral (1981) e seu primeiro resultado eleitoral expressivo (11% dos votos nas eleições para governador em São Paulo, em 1982), que deu a base para a sua projeção futura, baseado principalmente no voto da classe operária.

Paralelamente, “ao organizar-se, o PT criou uma elite separada de suas bases, que se reproduziu independentemente delas e das classes trabalhadoras que foram o suporte do partido... No Brasil, apesar de inúmeros partidos socialistas nacionais ou locais, nunca houve uma socialdemocracia estabelecida antes do PT... O PT cumpriu todas as etapas da socialdemocracia europeia, mas de maneira concentrada. A primeira fase predominantemente de oposição extraparlamentar e socialista, ditada pela pressão das bases operárias e por intelectuais de extrema esquerda, serviu para forjar a identidade partidária... A segunda fase, como partido de oposição predominantemente parlamentar, coincidiu com o refluxo das lutas sindicais... Na terceira fase o PT se tornou finalmente um partido de governo e sobrepôs à sua identidade nacionalista e socialista uma tendência tecnocrata eivada dos vícios da política tradicional brasileira. (Ele) cumpriu suas etapas muito mais rápido do que seus congêneres europeus. Isto também se deveu à nossa história.

O Brasil nunca foi um país liberal porque as tarefas históricas da burguesia (reforma agrária, democracia, educação pública, etc.) foram relegadas22 e caíram no colo do PT, tornando-se exigências socialistas... O PT acelerou o tempo histórico e condensou aquelas fases ‘europeias’ em 22 anos. Foi o suficiente para chegar ao poder e manter-se nele”.23 Ao custo, como veremos, do sacrifício de todas as “tarefas históricas da burguesia” e até de tarefas bem menos do que históricas.

A partir de 1989, a candidatura de Lula e as candidaturas do PT já não mais se apresentaram como candidaturas independentes da burguesia, nem sequer formalmente (em 1982, o slogan da campanha de Lula para a eleição do governo de São Paulo, como candidato nº 3, fora: “Vote no três, o resto é burguês”). Em 1989, foi definida a “Frente Brasil Popular”, que concretizou uma aliança com figuras políticas secundárias da burguesia (por exemplo, o candidato à vice-presidência, o desembargador gaúcho João Paulo Bisol), com políticos marginais, aliança feita, porém, sob o pretexto de tornar o PT “aceitável” para as classes médias. Foi no quadro de uma crise política galopante da burguesia (degringolada do governo Sarney, afundamento das candidaturas e partidos oriundos da oposição burguesa à ditadura militar) que o PT conheceu um espetacular desenvolvimento eleitoral, até obter 32 milhões de votos no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, se credenciando como alternativa política.

A base desse desenvolvimento foi dada também pela histórica virada classista do proletariado, que teve na CUT (criada em 1983) sua primeira central operária nacional. O processo foi entrando em contradição com a política da direção petista, e até com a participação do PT em importantes instâncias do Estado: em 1989, o PT já dirigia três das prefeituras mais importantes do país, que foram postas abertamente na contramão do movimento grevista. Para resolver essa contradição de modo decisivo e “pelo alto”, o PT lançou a candidatura presidencial de Lula, em 1989, não como candidato independente dos trabalhadores, mas de uma frente de colaboração de classes (a Frente Brasil Popular, adotada no VI Encontro Nacional do PT) onde sobreviveu o stalinismo brasileiro (PC do B), deu-se um lugar de destaque a políticos burgueses desconhecidos (como João Paulo Bisol), numa frente política que a direção petista pretendeu estender até os representantes da burguesia paulista (o PSDB de Covas) e os remanescentes do varguismo (o PDT de Leonel Brizola).

A derrota no segundo turno de 1989 deveu-se à exploração política que Collor fez das contradições da Frente Popular; de pouco serviu que a FBP declarasse a intangibilidade da propriedade privada e dos grandes bancos, assim como da dívida pública, nessa altura já atingindo os 300 bilhões de dólares. As direções sindicais bloquearam todas as lutas no período pré-eleitoral. Uma vitória de Lula, ainda assim, teria significado uma derrota da burguesia. As massas populares viam em Lula um representante de seu próprio movimento de classe (embora fosse um representante da burocracia sindical e da pequena burguesia que invocava a representação dos explorados, atuando em coalizão com partidos burgueses).

A precária saída política achada pela burguesia brasileira ao derrotar Lula por uma margem pouco relevante (as 14 milhões de abstenções e votos brancos ou nulos no segundo turno superaram em quase quatro vezes a diferença de quatro milhões de votos em favor de Collor) não ocultou a derrota política sofrida pela classe operária, pois todas as tendências eleitorais prévias apontavam a possibilidade da vitória de Lula.

Um PT “Depurado”

Entre 1989 e 2002, o PT percorreu o caminho que o levou da aliança com a “sombra da burguesia” até a aliança com a própria burguesia, definida pela chapa presidencial e pelas alianças da campanha presidencial de 2002 e, sobretudo, pela composição do governo resultante da vitória eleitoral de Lula. Para virar “partido de governo” o PT necessitou também consolidar uma direção política claramente hegemônica e acertada numa perspectiva de convergência com as classes dominantes e a ordem do capital, o que foi atingido através de um processo político eivado crises e exclusões das tendências de esquerda do partido (Causa Operária e Convergência Socialista, dentre outras).

A estruturação de um campo político hegemônico no PT teve por “protagonistas principais duas organizações cujas trajetórias convergiram, na década de 1990, para a formação do bloco político conhecido como campo majoritário do PT, a Articulação e o coletivo que, organizado inicialmente como Partido Revolucionário Comunista (PRC) passou a denominar-se Nova Esquerda em 1989 e, após 1992, Democracia Radical (DR). A história dessas organizações é marcada por profundas reviravoltas teóricas e programáticas, e por uma mudança radical em todas as dimensões no conteúdo de seu projeto político: conceitos, perspectivas de análise, propostas de atuação, formas de organização, práticas, sujeitos sociais a quem se dirige”.24

Esse processo político “interno” foi simbolizado na figura dos dois principais dirigentes das correntes mencionadas acima, José Dirceu e José Genoíno, que foram bem mais do que articuladores políticos de bastidores e lideranças públicas do PT. Lula parecia ser a “figura pública” de um aparelho controlado, na verdade, por líderes políticos experimentados (com um passado na luta clandestina, inclusive armada, contra a ditadura militar, o que lhes conferia uma “legitimidade política” popular diversa daquela dos líderes dos partidos burgueses).

Esteve bem longe de ser um processo linear ou tranquilo: no I Congresso do PT, as tendências (teses) reconhecidas foram nada menos que dezesseis. No VII Encontro Nacional do partido (1993), a Articulação só obteve 29% dos votos; a hegemonia ficou com as correntes de esquerda (“Na Luta PT” e “Articulação Hora da Verdade”, depois Articulação de Esquerda, AE) que, somadas, tiveram 56% dos mandatos. A Articulação recuperou penosamente a hegemonia partidária aliando-se com as tendências de direita (aberta e declaradamente pró-burguesas) e com cisões das tendências de esquerda, inclusive da AE (Rui Falcão, ora presidente do partido).

O relativo sucesso eleitoral do partido (se medido pela quantidade de votos) permitiu ao PT ser o motor da “neoesquerda democratizante” em todo o continente: o Foro de São Paulo, criado em 1990 (através de um acordo do PT com o PC cubano), iniciou a preparação política da esquerda continental como alternativa de governo, projetando internacionalmente a política frente-populista brasileira. O PT tomou a iniciativa e aglutinou quase toda a esquerda latino-americana na reunião, convidando não apenas partidos socialistas ou de esquerda, como também partidos burgueses (o Partido Revolucionário Democrático do México, de Cuauhtémoc Cárdenas, e o Partido Democrático Trabalhista de Leonel Brizola, por exemplo). Nessa reunião foi debatida a situação internacional, discussão aprofundada numa segunda reunião no México, depois na Nicarágua, em 1993, e finalmente em Cuba em 1994.

A conclusão política principal do Foro foi a seguinte: a queda do Muro de Berlim e o "fracasso" do socialismo na URSS significavam o fracasso das tentativas operárias, no curso da história, para resolver seus problemas, e também os problemas da humanidade, por meio da revolução proletária. O fracasso da URSS seria o fracasso dessa revolução, o fracasso da tentativa de derrocar a burguesia, assim como da perspectiva estratégica da ditadura do proletariado. A segunda conclusão foi que a democracia, que os marxistas sempre consideraram como uma categoria histórica, sendo a República Democrática a forma clássica e aperfeiçoada da dominação capitalista, era “um valor universal” que estaria no foro íntimo do ser humano, sendo necessário manter-se no campo democrático e numa perspectiva em que a luta dos trabalhadores se limitasse a ampliar os direitos democráticos: por esse meio, os trabalhadores poderiam chegar ao governo e transformar pacificamente a sociedade, por meio de uma política de “justiça social”.

Finalmente, o Foro afirmou que América Latina estava sofrendo um processo de exclusão internacional, com seu comércio internacional diminuindo e a pobreza crescendo: daí a necessidade da integração na “nova ordem econômica internacional”. A negação da revolução proletária, a reivindicação da democracia e a integração no mercado mundial capitalista foram as conclusões estratégicas com as quais a esquerda latino-americana, com o PT à sua cabeça, preparou sua candidatura ao governo, na década de 1990. Todas essas conclusões foram votadas no Foro de São Paulo, com apenas o voto contrário, dentre as 150 organizações participantes do Partido Obrero da Argentina (o MAS “trotskista” do mesmo país retirou-se silenciosamente do Foro depois de sua primeira reunião, onde fora responsável por um dos quatro informes introdutórios).

Em novembro de 1991, o PT realizou, finalmente, seu Primeiro Congresso Nacional (entre sua fundação, em 1980, e essa data, quase doze anos depois, aconteceram oito “Encontros Nacionais”, não destinados, pela sua própria natureza, a discutir programa e estatutos). Só esse fato (esse prazo) ilustrava a demagogia contida na famosa “democracia de base” apregoada pela sua direção.25 Depois da adoção da política frente-populista, o Congresso adotou o seu correlato organizativo, a “regulamentação das tendências internas”. Descaracterizado como partido de real base operária organizada, o PT era já, a essa altura, uma federação de tendências de esquerda funcionando na base do consenso. As tendências de esquerda se viram, no entanto, fortalecidas pelo forte movimento de recuperação classista (ou, simplesmente, de eliminação da velha pelegada) acontecido em um número importante de sindicatos durante a década de 1980, movimento que não fora hegemonizado, sequer seriamente impulsionado, pela “Articulação”, a tendência “lulista” do PT (e da CUT).

O Congresso foi precedido por um “Manifesto” de Lula (lançado por cima de qualquer instância partidária) de conteúdo programático: o documento se posicionava pela “redistribuição da renda”, contra o poder dos trabalhadores; o Estado só deveria conservar “os setores estratégicos para o desenvolvimento nacional”: em resumo, era contra a expropriação da burguesia e pelo capitalismo. E também de conteúdo organizativo: “concluiu o ciclo do partido organizado em tendências”, dizia o documento. Esse foi o resultado final do famoso “programa elaborado pela base”. O programa, na verdade, tinha sido ditado previamente, em agosto, pela Gazeta Mercantil: “As doze tendências ultrarradicais abrigadas no PT têm seus dias contados”. Sem a “normalização” do PT, a política de Frente Popular, com garantias dadas à burguesia, não o habilitaria como alternativa de governo. A completa eliminação das tendências, preconizada por Lula, foi, no entanto, impossível, devido à precariedade do acordo político entre as tendências majoritárias e à força das tendências de esquerda, reflexo da radicalização da classe operária e da juventude.

A “esquerda” petista (nesse momento, principalmente, a “Democracia Socialista”, DS, e a “Convergência Socialista”, CS) defendeu o “direito de tendência”, mas sobre bases puramente organizativas, isto é, sobre a base de um princípio democrático abstrato, sem caracterizar nem denunciar a política das tendências majoritárias como a verdadeira base da “normalização” interna (isto preparava a derrota da esquerda, ou sua capitulação: ambas acabaram acontecendo). Nessas condições, a “normalização” do PT avançou aos trancos e barrancos, por etapas, e com “experiências piloto”, pois era impossível excluir toda a “esquerda” em bloco, sem provocar uma crise e, provavelmente, um novo e importante reagrupamento político, concorrente com o próprio PT. Primeiro foram expulsos, com alegações diversas, alguns grupos e militantes (sob o pretexto de sua defesa pública da “luta armada”), depois a “Causa Operária”, ao mesmo tempo em que sofriam intervenção, pela Direção Nacional, os Diretórios Municipais de Bauru e Volta Redonda, pela sua oposição à FBP. A expulsão da CO passou sem grandes histórias, devido à debilidade política do grupo expulso.

As correntes trotskistas não foram excluídas porque representassem uma ameaça à hegemonia das correntes majoritárias na direção do PT (não o eram nem de perto), mas como uma prova da capacidade da direção petista de disciplinar o partido dentro a uma política situada no regime social vigente, embora também com um certeiro instinto ideológico: foi mobilizado para a “depuração” do PT o velho stalinista Apolônio de Carvalho, quem, nas páginas da revista petista Teoria e Debate, despejou contra o trotskismo todas as velhas calúnias outrora paridas nas usinas ideológicas do Kremlin e da KGB: o “novo socialismo” do PT concluía, assim, na repetição – farsesca – do stalinismo.

Origens do Governo Lula

O PT e Lula venceram, finalmente, as eleições presidenciais de 2002, conquistando uma votação esmagadora de mais de 52 milhões de votos no segundo turno do pleito eleitoral. Anteriormente, a candidatura presidencial de Lula fora derrotada em três ocasiões: 1989, 1994 e 1998, sendo que nas duas primeiras ocasiões chegara a disputar o segundo turno. O fator decisivo que catapultou o PT ao governo foi a crise econômica e política internacional e suas repercussões no Brasil. Em dezembro de 2001, o argentinazo que derrubou o governo De la Rua mudou os dados da situação sul-americana e internacional.26

A crise argentina era um ponto avançado da crise capitalista mundial.27 O capital financeiro internacional, com excedentes (sobreacumulação de capital) sem precedentes, precisando encontrar novos circuitos de valorização, conseguira-o passeando pelo mundo (“globalização”), com investimentos de carteira ou, em menor medida, produtivos (em proporção de 85% para os primeiros contra 15% para os segundos). O que mais pesava na decisão de investimento era o risco de cambio: variações da taxa de câmbio levavam para colapsos dramáticos, como aconteceu na Ásia em 1997, na Rússia e no Brasil em 1998-1999.

Em 1997, na Ásia, a crise atingiu as moedas da Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia e Malásia, que receberam US$ 60 bilhões do FMI para sair do buraco. Em 1998, na Rússia, o mesmo FMI entrou com um pacote de U$ 22 bilhões, para evitar a quebra do país, com a desvalorização do rublo e o calote nos pagamentos externos. Nos EUA, houve a quebra do Long Term Capital Management, um dos maiores fundos de investimento. No mesmo ano, o Brasil sofreu um ataque especulativo, tendo recorrido também ao FMI, que emprestou US$ 41 bilhões para “defender o câmbio fixo” (o empréstimo foi na verdade usado para salvar os investidores externos expostos no Brasil, financiando a fuga de capitais).

Formas de dolarização direta ou indireta (como o currency board argentino) tentaram fazer frente à crise, garantindo ilusórias margens de segurança aos capitalistas. A crise da dívida argentina, que provocou o maior calote soberano da história do capitalismo, era a outra face da crise do crédito do capital mundial. As repercussões mais fortes da falência econômica e da crise política na Argentina se fizeram sentir no Brasil, pelo fechamento de um dos seus principais mercados de exportação (através do Mercosul), pelo calote das operações comerciais e financeiras já realizadas, e também pelas suas repercussões políticas. O Mercosul sofrera um baque com a crise brasileira de 1998, mas a crise argentina de finais de 2001 o precipitou na direção do abismo.

Comércio no Mercosul
Importações e exportações entre os quatro países-membros
(Em milhões de dólares)
1995:28,416
1996:34,182
1997:41,171
1998:40,822
1999:30,583
2000:35,336
2001:30,537
2002:23,000*
* estimativa
Fonte: CEI (Centro de Economia Internacional)

Como pano de fundo da estabilização monetária conquistada no Plano Real, a concentração bancária e a penetração do capital estrangeiro no setor financeiro haviam sido a consequência principal da política econômica dos governos de FHC (1995-2002). Um calote brasileiro teria consequências muito graves para o sistema financeiro mundial, muito mais do que as provocadas pelo calote argentino.

A crise econômica brasileira agravou a situação social do país, abrindo a perspectiva de enfrentamentos de classe sem precedentes. Durante o período dito “neoliberal” (a década de 1990), o desemprego urbano no Brasil sofreu uma expansão qualitativa, agravada pela crise, mais do que duplicando, em termos percentuais, na maior região metropolitana e industrial do país. O desemprego paulista em 1999 atingia nada menos que 1.715.000 pessoas, alcançando patamares vizinhos a 30% nas principais capitais do Nordeste. Levando-se em conta o crescimento demográfico, as cifras absolutas são maiores das indicadas pelos percentuais: o processo criou uma nova piora da realidade social, em especial nas regiões urbanas. A distância entre o número de pessoas aptas ao trabalho e o número de trabalhadores que conseguiam emprego tendeu a crescer, criando um exército industrial de reserva de novas dimensões.

Taxa de desemprego total

Regiões Metropolitanas – 1989-1999 (em %)

Regiões
Metropolitanas
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
Belo Horizonte







12,9
13,4
15,9
17,9
Distrito Federal



15,5
15,1
14,5
15,7
16,8
18,1
19,4
21,6
Porto Alegre




12,2
11,3
10,7
13,1
13,4
15,9
19,0
Recife









21,6
22,1
Salvador








21,6
24,9
27,7
São Paulo
8,7
10,3
11,7
15,2
14,6
14,2
13,2
15,1
16,0
18,2
19,3
Fonte: Adilson Marques Gennari. Globalização, Neoliberalismo e Superpopulação Relativa no Brasil nos Anos 1990. Araraquara, Departamento de Economia da UNESP, 2005.

Por outro lado, a carga tributária crescia junto com a degradação da situação social: o governo tucano, assim, desagradava a todas as classes sociais, exploradas e exploradoras.

Com o déficit comercial crescendo, a dívida pública indo às nuvens,28 e enfrentando numerosas greves operárias e rebeliões agrárias, a conta regressiva do governo FHC tinha começado. Nas condições políticas internas e internacionais, a perspectiva de uma “transição ordeira” em substituição do governo de centro-direita de FHC viu-se questionada. Uma candidatura direitista aventureira, a de Roseana Sarney, apostou na conquista do apoio do capital financeiro internacional e do empresariado brasileiro, sem consegui-lo, pois carecia de bases sociais claras e propunha uma política exclusivamente repressiva que levaria o Brasil para uma explosão política e social. O PSDB e a Globo enterraram a candidatura Roseana, que havia estado momentaneamente à frente nas sondagens eleitorais prévias. O PFL, que a lançara, ficou reduzido a sua verdadeira dimensão: partido essencialmente nordestino e oligárquico, escorchante da população local e parasita do orçamento público.

A crise do Plano Real e do governo FHC deveu-se, porém, menos ao desenvolvimento da luta de classes no país do que à crise da economia mundial. Após sofrer uma fuga de capitais de US$ 32 bilhões em menos de cinco meses, o Brasil adotou o câmbio flutuante (com uma forte desvalorização) em janeiro de 1999. A insatisfação popular e o deslocamento à esquerda, principalmente da classe média, foi canalizada nas eleições municipais de 2000 pelo PT, que aumentou em vários milhões seus votos, tendo sido vitorioso em várias capitais, inclusive São Paulo. No final do ano seguinte, a débâcle econômica argentina, somada à própria crise de sua dívida, pôs o Brasil à beira da catástrofe econômica e aprofundou a crise política. Com a crise da Argentina houve redução do comércio em todas as direções (as importações argentinas provenientes do Brasil e do Uruguai caíram 70%), questionando o próprio Mercosul.

O projeto da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas), por sua vez, era um instrumento de pressão dos EUA sobre Europa e sobre as “economias em transição”, especialmente a chinesa, lhes opondo América Latina como uma plataforma de exportação dos capitais norte-americanos, mas não dava ao empresariado latino-americano a possibilidade de abrir o mercado norte-americano à sua produção agrícola eliminando os subsídios estatais aos produtores do Norte.29 A ALCA, porém, foi morrendo em meio à crise mundial de 1997-2002. A integração de América Latina à economia mundial escorou-se no aumento de preços das matérias primas e no crescimento do endividamento (a penetração do capital financeiro na América Latina foi, na década de 1990, a mais alta da história). A rodada comercial de Doha, na qual se chegara a um acordo do Brasil com Europa e os EUA, entrou em crise pela oposição da Índia e da Argentina. Brasil acordara com os EUA exportar etanol sem impostos desde América Central, em troca da autorização de inversões norte-americanas na indústria dos biocombustíveis no Brasil.

Um novo pacote brasileiro com o FMI, em 2002, adiou o default do país e provocou uma curta euforia nas Bolsas de todo o mundo. O FMI procurou dosar a fuga de capitais (que, sem o crédito outorgado, poderia atingir dimensões semelhantes às da Argentina em dezembro de 2001). O “risco Brasil” ultrapassou 2.400 pontos. O pacote estava destinado a resgatar os bancos Citigroup e o FleetBoston, expostos em mais de US$ 20 bilhões no Brasil (em troca da ajuda econômica ao Brasil, ambos grupos financeiros se comprometeram a financiar a campanha eleitoral do Partido Republicano nos EUA, que concluiu com a vitória de George W. Bush).

Foi o terceiro empréstimo contratado pelo governo brasileiro junto ao Fundo. O primeiro, em outubro de 1998 (US$ 41 bilhões) fora realizado para adiar a desvalorização do real, às vésperas da reeleição de FHC. O Fundo conseguiu estabelecer um instrumento de monitoramento do Estado brasileiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que assegurava o pagamento da dívida externa em detrimento dos investimentos em serviços públicos. Paralelamente, desde o início de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso instruiu seu embaixador em Washington, Rubens Barbosa, a auxiliar os petistas a adentrar o meio político e econômico norte-americano. Em meados do ano, José Dirceu desembarcou nos Estados Unidos para avançar nesses contatos. Quando as eleições de outubro consagraram Lula como futuro presidente do Brasil, o staff do presidente Bush já tinha um conhecimento mais detalhado do líder brasileiro.30

Em junho de 2002, antes das eleições de outubro, na Carta ao Povo Brasileiro, a direção do PT comprometeu-se com essa lei e com o superávit primário, ou seja, com o pagamento da dívida externa e a submissão às políticas do FMI. Esses compromissos facilitaram o apoio de importantes setores do capital interno e externo à candidatura Lula. A “longa marcha” de Lula rumo à presidência repousou também no fortalecimento do PT como um aparato de políticos integrados ao Estado, nos diversos estados e municípios em que o PT já governava, e nos pactos políticos com a direita, que o tornaram um “parceiro de governo” confiável.

Em setembro de 2002, o governo FHC tomou novamente emprestados US$ 16 bilhões do FMI, como “seguro” frente ao perigo do contágio da insolvência argentina. O Fundo impôs a meta de superávit primário de 3,75% do PIB, economia dos gastos públicos em saúde, educação, reforma agrária. O novo acordo era uma operação condicionada a metas impostas pelo FMI para refinanciar a dívida. O FMI estabeleceu, de fato, as bases do programa para os quatro anos de mandato do futuro governo, a ser eleito no final do ano. O “empréstimo preventivo” do FMI foi concedido com o aval de Lula (e dos outros três candidatos presidenciais principais, José Serra, Garotinho e Ciro Gomes) ao acordo político que o condicionava, para “acalmar o mercado”, condição imposta pelo FMI e mediada pelo próprio presidente (FHC).

A ajuda em conta-gotas do FMI sugeria dosar a saída de capitais dos bancos internacionais no Brasil que, de outra maneira, transformar-se-ia num estouro. Isso punha a nu a causa que inviabilizava as operações de resgate, que só serviriam para financiar uma fuga incontrolável de capitais e precipitar a declaração de bancarrota. De acordo com o presidente do Bank of Boston do Brasil, os bancos estrangeiros estavam obrigados a reduzir sua exposição no país, se não quisessem terminar numa convocação de credores, devido ao crescimento da carteira de cobrança duvidosa dos bancos.

O banqueiro explicava que, “como consequência da crise argentina, o Banco Central dos Estados Unidos solicitou que os bancos informassem sobre todas as suas linhas de crédito”,31 ou seja, independentemente de o crédito compromissado ter sido efetivamente outorgado. Os bancos europeus fizeram o mesmo: o Santander decidiu reduzir em 31% sua exposição no Brasil.32 Dos US$ 154 bilhões da dívida externa do capital privado no Brasil, metade se encontrava nas mãos de vinte bancos. A bancarrota do Brasil podia detonar em Wall Street; o FMI atuava, não para salvar o Brasil, mas para que quando este caísse, não levasse consigo a Bolsa de Nova York. A fuga da dívida empresarial por parte dos financistas não concernia apenas à dívida externa.

Os fundos de investimentos, que colocavam o dinheiro em dívidas de empresas, tiveram uma evasão de cerca de R$ 10 bilhões somente no mês de junho de 2002, que foram parar nos depósitos a prazo nos bancos, provocando uma contínua desvalorização dos títulos e ações em poder dos bancos e, portanto, uma desvalorização do seu capital: “A renovação de linhas bancárias caiu de 78% em abril para 34% em julho. No caso dos títulos comerciais a relação passou de 136% a 11%”.33 A dívida pública e privada externa de quase US$ 300 bilhões se desvalorizara em 40%, o que implicava uma perda patrimonial de capital de US$ 120 bilhões. Se continuasse, ainda que por pouco tempo, a retirada dos depósitos bancários, o Brasil deveria usar o controle cambial. O acordo com o FMI autorizava o Brasil a utilizar suas reservas em dólares até o patamar de US$ 10 bilhões.

Mas gastar tal soma anunciaria o colapso financeiro. Qualquer aumento da taxa de juros interna, para incentivar o investimento dentro do país, aumentaria enormemente a dívida externa em reais, indexada em dólares. Sem uma forte guinada na situação financeira internacional, a sorte do Brasil estaria lançada. Alguns analistas aconselharam os investidores a pegar o dinheiro e correr para a saída, ou seja, que levassem o dinheiro do FMI para uma conta na Suíça, ou melhor, em Nova York. Segundo Morris Goldstein, ex subdiretor do FMI, havia “70% de probabilidades de que em 2003 o Brasil [entrasse] em default”.34

É sob essa luz que se devia julgar o apoio de Lula ao acordo do FMI, com o argumento de que o dentista podia ser desagradável, mas, às vezes, era o único recurso. A solução do FMI previa a extração dos dentes e sua substituição por uma dentadura postiça, a que somente se teria acesso por meio de algum empréstimo usurário. Quando se examina a real função do “apoio” do FMI, observa-se que, embora não resgatasse a economia brasileira nem os bancos estadunidenses, constituía um socorro último para o governo FHC. Nas vésperas do “pacote” havia fortes indícios de que Fernando Henrique seria obrigado a antecipar as eleições e inclusive a transmissão do seu mandato.

O “pacote” fundo-monetarista era o último balão de oxigênio para aguentar até as eleições. Por isso os assessores econômicos de Lula e, em seguida, ele próprio, anteciparam seu apoio. Isso equivalia a um acordo de governabilidade e antecipava que o primeiro passo de um eventual governo Lula seria chegar a um acordo com o FMI. O pacote foi uma manobra política de alcance internacional, para condicionar o processo político brasileiro e, nesse sentido, teve êxito com o apoio que recebeu por parte do PT: o PT antecipara sua completa integração à ordem mundial hegemonizada pela banca internacional.

A Vitória Eleitoral do PT

Desse modo, em outubro e novembro (segundo turno eleitoral) de 2002, Lula chegou, enfim, ao governo, desta vez com a luz verde da burguesia local e do capital financeiro internacional, que tinha estado ausente nas três tentativas precedentes: “Lula conseguiu enfileirar atrás de seu projeto 500 grandes nomes entre industriais e agropecuaristas que representam uma boa porção do PIB. Mas também conseguiu o impensável: associar politicamente executivos de bancos estrangeiros e consultoras internacionais como o presidente da Ernst & Young”. Entre estes se encontrava Roberto Teixeira da Costa, o nº 1 da Câmara de Comércio Brasil-EUA. Roberto Setúbal, presidente do Banco Itaú, assegurou que “a comunidade empresarial está preparada para apoiar Lula”.35 Em 28 de outubro de 2002, o presidente Bush e o presidente Lula da Silva tiveram seu primeiro contato. O presidente norte-americano telefonara ao Brasil para felicitar o brasileiro por seu sucesso eleitoral. Mês e pouco depois, em 10 de dezembro, ambos se reuniram no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, e iniciaram ali uma intensa relação.

O vice de Lula fora escolhido para completar uma estratégia política de sedução da classe capitalista. O grande capital fizera sinal negativo à continuidade de FHC em 2002. A possibilidade de que a crise chegasse ao Brasil também preocupava a cúpula do PT que, como vimos, deu garantias explícitas aos grandes investidores externos em reuniões em Nova York imediatamente prévias às eleições. Para se ajustar a essa perspectiva ampliou sua aliança político-eleitoral a setores dentre os mais reacionários da política brasileira: o industrial e evangélico José Alencar, candidato à vice-presidência pelo PT; o paulista Orestes Quércia e o ex-presidente José Sarney. Depois, Lula conseguiu o apoio da mais importante empresa do ramo eletrônico nacional, o grupo Gradiente; foi publicado um texto do PT e da Bolsa de Valores de São Paulo, a 3 de outubro de 2002. Os dois líderes mais reconhecidos da direita brasileira, o paulista Paulo Maluf e o baiano Antônio Carlos Magalhães, chamaram a votar por Lula no segundo turno.

A vitória eleitoral do PT nas eleições presidenciais de 2002 era um fato previsível, não só pela expectativa popular, que aguardava uma vitória da candidatura Lula há quase uma década e meia, mas também pela própria degringolada do governo FHC. João Paulo Cunha, deputado e líder parlamentar do PT, fez, em finais de 2002, uma listagem conclusiva dos “45 escândalos que marcaram o governo FHC”.36 Lula apareceu em 2002 como a garantia política mais segura para evitar o contágio brasileiro da derrubada econômica argentina e suas consequências políticas. Nesse ano, um princípio de suspensão de pagamentos externos obrigara o Brasil a emitir dinheiro para cancelar as amortizações com os bancos locais e para socorrer os fundos de investimentos que estavam perdendo depósitos de seus clientes. Essa emissão levou o dólar de 3,18 a 3,80 reais.

Lula era também a carta política que poderia bloquear a expansão da rebelião popular argentina à América do Sul e sufocá-la em seu isolamento, sua candidatura tinha projeção internacional. Lula deixou claro ser contrário às ocupações de terra, enquanto seu vice declarou a necessidade de uma ofensiva contra o MST. Sua campanha eleitoral tendeu a desencorajar toda militância popular. Verbalmente e por escrito, Lula, o PT e a Frente Brasil Popular renegaram seu antigo programa: a recuperação das empresas privatizadas; a suspensão do pagamento das dívidas interna e externa; a reorientação da produção e do consumo para o mercado interno; o aumento real sistemático dos salários; o fim do latifúndio; a luta pela independência nacional, econômica, política, produtiva, tecnológica.

No dia do segundo turno eleitoral, o editorial d'O Estado de S. Paulo, sob o título “A metamorfose do PT na rota do poder”, era mais do que significativo: Em 23 anos, no lugar de fazer a revolução que sonhava para o Brasil, o PT se revolucionou a si mesmo... A metamorfose custou anos de discussões, mas lentamente a maioria do partido enrolou a bandeira do socialismo e adotou um programa moderado e nacionalista, sem rupturas e sobressaltos, dirigido a atrair o empresariado. Em fevereiro de 1980, o PT pedia a reforma agrária ampla sob o controle dos trabalhadores, a educação e a saúde pública e gratuita. A palavra socialismo ingressou oficialmente no vocabulário petista em 1981, introduzida por Lula no Primeiro Encontro Nacional do PT. O discurso esquerdista foi a marca do PT nos anos seguintes. Em 1985 atacou o que em 2002 se transformaria em sua própria bandeira: o pacto social. A flexibilização começaria antes das alianças com outros partidos. Em 1983, com o Manifesto dos 113, se propôs um projeto que blindasse a direção petista contra as organizações da esquerda que atuavam no partido. Foi o surgimento daquilo que se transformaria na moderada “Articulação Unidade e Luta”, que sustenta Lula até o presente. Por proposta do grupo, o PT mudou a consigna de “governo dos trabalhadores” para “governo democrático popular”, abrindo o terreno para as alianças [...]

Ainda mantinha posições históricas como o não-pagamento da dívida externa, a ruptura com o FMI e as estatizações. Foi com esse programa que Lula se candidatou a presidente em 1989. Em 1994 foi derrotado por Cardoso e seu Plano Real [...] Em 1998, tendo Brizola como candidato a vice-presidente, mas ainda longe do centro, Lula tentou um discurso a favor da estabilidade econômica. Abandonou-se a proposta de suspender o pagamento da dívida, mas o programa propunha ainda revisar as privatizações, um imposto sobre as empresas privatizadas e renegociar a dívida interna. Um erro que o PT não repetiu em 2002, quando definitivamente se vestiu de moderado, defendeu o pagamento das dívidas interna e externa, comprometeu-se a cumprir os contratos com as privatizadas e o acordo com o FMI.37

Nas eleições de 2002, na Câmara dos Deputados, o PFL perdeu 14 cargos, o PMDB, 13, e o PSDB (partido de FHC), nada menos que 23. O vácuo de 50 cadeiras assim criado não chegou a ser preenchido totalmente pelo PT, que passou, no entanto, de 58 a 91 deputados, não chegando a totalizar 20% da Câmara, mas também por candidaturas aventureiras. O segundo turno assistiu uma vitória de Lula baseada numa direitização ainda maior do PT. A Frente Brasil Popular venceu, desse modo, o pleito presidencial com 46,44% dos votos válidos emitidos no primeiro turno (pouco mais de 39,4 milhões, para um eleitorado de 115,2 milhões) graças à presença dominante de Lula e do PT na coalizão, ambos vistos e considerados popularmente como os representantes dos interesses da classe operária, dos camponeses e dos pobres do país em geral. Ainda que Lula tivesse vencido com 62% dos votos no segundo turno e em todos os estados com exceção de Alagoas, o PT não ganhou nenhum governo estadual salvo o do Mato Grosso do Sul. Pior ainda, o PT perdeu o estado do Rio Grande do Sul e a eleição em Porto Alegre, que se haviam convertido em emblema do que seria um governo nacional do PT.

Em sua primeira declaração depois da vitória de Lula, em janeiro de 2003, a direção nacional do PT afirmou: O governo foi formado com uma configuração de centro-esquerda, com clara hegemonia da esquerda, definida pela forte presença do PT e de seus aliados tradicionais. Além dos partidos de esquerda – PT, PC do B, PV, PMN, PCB, PSB, PDT e PPS – e os partidos de centro – PTB, PL e setores do PMDB –, o governo está marcado por um matiz não-partidário importante, representado pelos ministros da Agricultura, Indústria e Comércio. Esse matiz expressa a tentativa de construção de uma aliança com o empresariado nacional. Essa afirmação era uma tergiversação, começando pela qualificação “de esquerda” para aparatos vazios do clero evangélico e do oportunismo político em todos os seus matizes, e ocultando o papel central do capital financeiro internacional no governo Lula.

Não por acaso, o novo governo “debutou” mais na areia da política externa do que na doméstica. Logo de cara, o governo do PT e de seus aliados foi peça decisiva no desenho da política norte-americana na América do Sul, desmobilizando o proletariado brasileiro e intervindo ativamente na contenção da radicalização popular “andina”, o que não lhe poupou conflitos derivados dos interesses específicos do Brasil na Bolívia, Equador e Paraguai. A burguesia brasileira e os capitais estrangeiros instalados no Brasil passaram a investir pesadamente nas nações vizinhas, em especial em petróleo, obras públicas e siderurgia, vendo-se obrigados a ter sua própria política nesses países, ajudados pelo governo Lula, que fez um “meio de campo” entre os EUA e os regimes “radicais” (Chávez, Evo Morales, Correa).38

Em 20 de junho de 2003, o presidente Lula, durante curta visita aos Estados Unidos, assinou um comunicado junto ao presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, assumindo o compromisso de “cooperar para a conclusão bem-sucedida” da implantação da Alca dentro do prazo previsto (janeiro de 2005). Uma semana antes, em 13 de junho, catorze ministros latino-americanos, reunidos em Maryland num encontro organizado pelo representante de comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, haviam se comprometido informalmente a destravar as negociações da Alca para criar uma zona de livre comércio com a participação de 34 países, com um potencial de 800 milhões de consumidores. O Brasil, que compartilhava a presidência do processo negociador com os Estados Unidos, avançou a ideia de uma Alca reduzida, que não vingou. No final da estória, “o Mercosul se revitalizou”, concluíram os jornais depois da viagem do presidente argentino Nestor Kirchner ao Brasil, em junho de 2003.

A esquerda brasileira, no entanto, assegurou que a vitória eleitoral de Lula “dará ânimo a todo o povo brasileiro e vai gerar um processo de ascensão do movimento de massas”, como disse João Pedro Stédile, coordenador nacional do MST.39 Ao contrário, o que houve foi uma crescente desmobilização, inclusive do MST. Onze dos ministros de Lula tinham sua origem na CUT, além de outros 66 sindicalistas com funções no primeiro escalão do governo. Ficou novamente demonstrado que os governos de tipo “Frente Popular” não constituíam necessariamente a véspera de uma irrupção revolucionária das massas: dependendo das circunstâncias políticas poderiam ser um fator de desmobilização e de retrocesso maior do que um governo da direita burguesa.

A “Estabilidade Econômica” de Lula


Tanto nas trincheiras do PT como nas do capital financeiro, insistiu-se em que o Brasil não corria o risco de quebrar por ter 75% de sua dívida pública em reais e, portanto, poderia refinanciar continuamente a dívida mediante emissão monetária e sem cair no calote. A segunda diferença em relação à Argentina seria que, sem a camisa de força da “conversibilidade monetária”, as autoridades monetárias brasileiras não teriam de vender dólares a preço de leilão, com um tipo de câmbio fixo muito baixo. Com a desvalorização do real, evitar-se-ia o default, mas à custa de maior inflação ou custo fiscal.

Os “mercados” encabeçaram o gabinete de Lula, que indicou um homem de Wall Street para a direção do Banco Central, Henrique Meirelles, cujo banco estava envolvido em atividades fraudulentas no Brasil e na Argentina.40 Um executivo sênior do Citigroup, Cassio Casseb Lima, foi posto como presidente do Banco do Brasil. O Banco Central definiu uma taxa de juros real de 18% ao ano: a dupla Lula-Meirelles pretendia convergir com a tendência principal da especulação financeira mundial. A reforma previdenciária foi definida como “a prioridade nº 1 na agenda de reformas”, buscando abrir um mercado de aproximadamente US$ 40 bilhões para os fundos de pensão privados. A equipe econômica do PT, no entanto, abandonou a ideia de eliminar o sistema de repartição por outro de capitalização na previdência social;41 a manutenção dos aposentados teria um enorme custo fiscal, no mesmo momento em que o FMI queria hipotecar as finanças públicas para resgatar os credores e subsidiar o capital financeiro.

A “reforma” concentrou-se em um golpe às aposentadorias do setor público, e provocou a primeira greve nacional de servidores, impulsionada pelo sindicalismo classista, mas boicotada pela CUT. A reforma previdenciária e a greve do funcionalismo público provocaram uma crise no PT, com a saída de uma senadora (Heloísa Helena) e de três deputados federais, que acabaram criando o PSOL.42 A decisão da Direção Nacional de expulsar os dissidentes se baseou na imputação de “infidelidade partidária”, desobediência às diretivas do partido e do governo, e até de aliança com os partidos opositores, em especial o PSDB, por parte dos quatro legisladores (Luciana Genro, João Batista de Araújo “Babá”, João Paulo Fontes, e a senadora Heloísa Helena). Mas os dissidentes haviam se limitado a votar de acordo com o programa aprovado organicamente pelo PT no seu Encontro Nacional de dezembro de 2001, contra as reformas privatistas da previdência e tributária.

O governo Lula não agiu por imposição do FMI, mas por sua própria conta, ao implementar cortes suplementares de R$ 14 bilhões no orçamento de 2003, e ao elevar para 4,25% a meta do superávit primário. O adiamento da reforma agrária, o beneficiamento de empresas nacionais e multinacionais com recursos públicos, os acordos de anistia a devedores da Previdência, foram os indicadores da política estratégica do governo. Os investimentos em saneamento, assentamentos rurais, manutenção das estradas, saúde, educação, foram sendo diminuídos. O superávit primário da União, estados, municípios e empresas estatais superou, no primeiro ano de governo, os R$ 15,4 bilhões exigidos pelo FMI. Com a “estabilidade” assim conquistada, as empresas no Brasil retomaram a captação de capitais externos.

Nas palavras de Heinrich Koeller, diretor-gerente do FMI: Sou entusiasta [em relação à administração Lula]; mas é melhor dizer que estou profundamente impressionado pelo presidente Lula, na verdade, e em particular porque penso que ele tem a credibilidade que muitas vezes falta um pouco a outros líderes, e a credibilidade está em que é sério para trabalhar a fim de combinar política orientada para o crescimento com equidade social. Isto é a agenda certa, a direção certa, o objetivo certo para o Brasil e, para além do Brasil, para a América Latina. Assim, ele definiu a direção certa. Segundo, penso que o governo é eficaz e não apenas de intenções aéreas, pois elas funcionam ao longo do processo desta enorme agenda de reformas. Entendo que a reforma das pensões e a reforma fiscal são prioritárias na agenda, e isto é correto. O terceiro elemento é aquilo que o FMI ouve do presidente Lula e da equipe econômica, e é a nossa filosofia, naturalmente, para além do Brasil.43

No orçamento real houve déficit de 12% do PIB, já que os encargos financeiros equivaliam a 23% do PIB. No primeiro trimestre de 2003, a dívida pública aumentou de R$ 43,7 bilhões. Somada essa quantia aos R$ 22,8 bilhões do superávit primário oficial, resultavam R$ 66,5 bilhões. O aperto fiscal só permitia gastar em juros. A moeda nacional ficava quase toda no giro da dívida pública, cujos beneficiários a reaplicavam na compra de mais títulos. O aperto monetário foi reforçado pela elevação, em 15%, dos depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central, implicando em redução de 45% no capital disponível para empréstimos. Quase já não havia crédito privado para as atividades produtivas, e a taxas de juros eram proibitivas, em torno de 150% ao ano. A supressão do crédito e da moeda nacional foi de tal ordem que houve apreciação cambial, mesmo sem expressiva variação na entrada líquida de capitais. Esta foi de US$ 4 bilhões no primeiro trimestre de 2003, inferior em US$ 1 bilhão à do primeiro trimestre de 2002.

Essa queda foi, porém, compensada pela redução do déficit de transações correntes com o exterior. Os capitais especulativos de curto prazo cresceram de US$ 148 milhões para US$ 1,96 bilhão. A rentabilidade do sistema bancário chegou a 24,5% anuais. O ingresso de capital de curto prazo aumentou 1.300%. A remuneração e a contratação de capital tornaram-se os grandes negócios do momento. Nos dias que antecederam a reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), empresários industriais manifestaram-se favoráveis a um corte na taxa de juro de 1,5% (Horácio Lafer Piva, presidente da Fiesp) até 3,5% a 8% (setores empresariais representados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, CDES, nomeado pelo governo).

No próprio governo, José Alencar e Luiz Alfredo Furlan, empresários, e dirigentes petistas (Guido Mantega e Aloizio Mercadante) eram partidários de cortes nas taxas de juros; o mesmo manifestava o titular do principal banco privado nacional (Bradesco). O Copom decidiu manter a taxa básica em 26,5%. O principal porta-voz jornalístico da “comunidade de negócios” comentou imediatamente que “é sintomático que os aplausos à decisão tenham partido dos agentes do mercado financeiro. Poucas vozes produtivas engrossaram esse coro. Juros altos significam, para as instituições bancárias, a possibilidade de grandes lucros, com a aplicação de recursos em títulos públicos, remunerados sem os riscos da atividade”.44

O principal articulador político de Lula, José Dirceu, precisou sair a público para disciplinar os membros mais incrédulos de seu próprio governo. A decisão do Copom garantia uma taxa de juro real, descontada a inflação, de 18% ao ano, cifra que chegava ao absurdo, caso fossem considerados os valores praticados “no mercado”. O crédito para o consumo superava a taxa de 200% ao ano, enquanto o crédito para pessoas jurídicas custava, em média, mais de 78% ao ano (com máximas de 105%). A Folha de S. Paulo afirmou em seu editorial de 18 de maio de 2003 que, “se adotar o catecismo conservador era inicialmente inevitável, já chegou a hora de questionar não apenas sua persistência como sua exacerbação. Sem a exigência do FMI, o ministro Antonio Palocci ofereceu ao mercado financeiro mais superávit fiscal, ou seja, abriu espaço no orçamento para pagar uma conta de mais de R$ 100 bilhões em juros. Ignorando o custo extorsivo do crédito, o BC manteve a trajetória crescente da taxa de juro”.

Até o investimento estatal entrou na área da privatização, através um novo modelo de obras e serviços (Parcerias Público-Privadas, PPPs) em que a iniciativa privada poderia contar com uma parcela da arrecadação de tributos para garantir retorno para seus investimentos. As duas mais importantes leis que regulavam as relações do Estado com a iniciativa privada – a das licitações e a das concessões – seriam “flexibilizadas” para abrir caminho às PPPs. Elas seriam responsáveis por grande parte dos R$ 36,28 bilhões em investimentos privados previstos pelo governo na área de infraestrutura, em todo o seu mandato. O Plano Plurianual (PPA) previu parcerias para a “universalização” dos serviços de energia elétrica e a construção de hidrelétricas, ferrovias e rodovias.

O primeiro governo Lula “economizou” R$ 40 bilhões do orçamento, em seis meses, para pagar juros; confiscou parte da aposentadoria dos servidores públicos; destinou só R$ 162 milhões para a reforma agrária, o que não dava para assentar nem quinze mil camponeses; renunciou a R$ 342 milhões em impostos para as montadoras de automóveis, sem falar nas “facilidades” concedidas às indústrias por meio da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Os sem-terra foram cada vez mais sendo vítimas da truculência e violência de latifundiários e governadores. Os servidores públicos em luta foram reprimidos e estigmatizados. Os sindicatos dirigidos pela corrente majoritária da CUT (Articulação, vinculada à maioria petista) reivindicaram menos que a reposição integral da inflação nos dissídios coletivos.

A “estabilidade econômica” lulista, desse modo, teve por base um vasto e tácito acordo político, que ia do FMI e os EUA até a burocracia sindical brasileira. A redução do “risco Brasil” e a baixa do dólar não foram um reflexo da “estabilidade”, mas da crise mundial, pois a recessão mundial e a guerra do Iraque promoviam um movimento especulativo de capitais árabes para os títulos do Brasil. Essa estabilidade foi garantida por uma fase expansiva do comércio mundial, em especial dos preços das matérias primas. As exportações subiram, enquanto as importações caíram, produzindo grandes superávits comercias. No novo cenário, os segmentos produtivos ligados à exportação avançam aceleradamente, esgotando suas capacidades produtivas (celulose, papel e outros), enquanto os ligados ao mercado interno (eletrodomésticos, têxteis, alimentos etc.) estagnaram.

Nesse quadro comercial internacional favorável, as classes dominantes brasileiras, durante o primeiro governo Lula, levaram novamente o país para um sistema econômico baseado na exportação agropecuária, esperneando contra o “protecionismo dos ricos” e por um acesso maior na feira livre mundial de soja, de carne, de açúcar, de frutas. A estratégia econômica foi definida a serviço da agroindústria, dos exportadores de matérias-primas e de gêneros agrícolas. Houve uma forte investida capitalista no campo, com crescimento tecnológico, mecanização, concentração de terras e exploração do trabalhador. Das 500 maiores empresas incluídas no ranking de vendas, 144 tinham negócios dependentes da atividade agropecuária.

O agronegócio era controlado pelas multinacionais – Monsanto, Novartis, Pioneer e Agrevo – tanto na produção, quanto na transformação e distribuição. Começa com a produção de sementes transgênicas, passa pela produção de agrotóxicos, máquinas e equipamentos, o controle das terras e, em algum caso, das águas, indo até a distribuição, atuando na produção de alimentos, fertilizantes, agrotóxicos, máquinas, madeira, celulose, borracha, têxteis e comércio varejista. Essas companhias são a ponta mais visível de um setor que, em 2009, geraria 534 bilhões de reais (33% do PIB brasileiro), proporcionaria 37% dos empregos no país, e responderia por 42% das exportações brasileiras e pela totalidade do superávit comercial. O Brasil foi transformado em primeiro produtor mundial de soja, sua cultura se apropriou da região Norte, ocupou o cerrado e começou a avançar na selva, ameaçando a biodiversidade da região.

Apesar do crescimento do saldo comercial favorável, o déficit em transações correntes aumentou para US$ 20 bilhões anuais. E apesar dos choques localizados em torno de questões comerciais, a política externa de Lula situou-se no esteio da política internacional imperialista, com o envio de tropas brasileiras (encabeçando a Minustah, força militar de ocupação) ao Haiti, o que foi solicitado pelos próprios EUA, que estavam impossibilitados de fazê-lo diretamente por estarem embrenhados militarmente no Iraque e no Afeganistão.

A Estabilidade Social

Os programas sociais compensatórios do Brasil, lançados no primeiro governo Lula, pela sua dimensão e alcance foram propostos como exemplo mundial.45 Os países “emergentes” membros do chamado BRIC (Rússia, Índia, China, além do Brasil) anunciaram sua intenção de adotar programas semelhantes. Os gastos sociais no Brasil cresceram de R$ 1,3 bilhão em 1995 (primeiro ano do governo FHC) para R$ 18,8 bilhões em 2005 (terceiro ano do governo Lula), um crescimento superior a 1.400% em moeda corrente. A diminuição estatística da pobreza absoluta foi acentuada: ela passou de 35,6%, em 2003, para 26,9%, em 2006. Os gastos sociais per capita apresentaram igualmente uma trajetória de crescimento em um breve período de tempo para as categorias mais pobres. As políticas sociais compensatórias, por outro lado, criaram um novo modelo de clientelismo político associado ao controle dos cadastros e também à cooptação dos “movimentos sociais”: o modelo assistencialista perpetuava a dependência dos beneficiados, e estabelecia uma divisão na classe trabalhadora entre os que recebem e os que não recebem.

Dos dez milhões de novos empregos registrados prometidos, no entanto, foram criados só 4,8 milhões, mantendo entre 8% e 9% a taxa de desemprego. Boa parte desses “novos empregos”, por outro lado, foram a formalização (regularização com carteira assinada) de empregos já existentes. O desemprego real não sofreu alterações importantes no primeiro governo Lula, o que explica as 50 milhões de pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF),46 ¼ da população brasileira (índice que chegou a 50% em regiões do Nordeste, onde se repassaram inicialmente benefícios a mais de 5,7 milhões de famílias, ou 25 milhões de pessoas).

Depois de uma forte expansão, em 2008 o PBF demandou R$ 11,1 bilhões do orçamento público, ou 0,4% do PIB (o pagamento dos juros da dívida pública equivaleu a 3,8% do PIB, quase dez vezes mais). Comparados com o PIB e, sobretudo, com os lucros gerais do capital, os programas sociais constituem um percentual baixo. O PBF custara ao governo, em 2005, R$ 5,5 bilhões (aproximadamente US$ 2,3 bilhões), que pagaram benefícios a 8,7 milhões de famílias, ou seja, aproximadamente 35 milhões de pessoas. Mas, em 2006, o setor financeiro recebeu R$ 272 bilhões em conceito de pagamento dos juros das dívidas, quase 50 vezes o que se gastou com o PBF.

Depois de um quarto de século de lutas dos sem-terra, a reforma agrária era, por óbvios motivos, a mais esperada das “reformas” do governo Lula. O Brasil tinha o maior latifúndio do planeta, pertencente à construtora CR Almeida, de Curitiba (PR), com 4,5 milhões de hectares, quase metade do estado do Sergipe. 27.556 latifundiários com fazendas acima de 2 mil hectares cada um eram donos de 178.172.765 de hectares de terra, o equivalente a 43% de todas as terras do Brasil. Havia, também, 4,6 milhões de famílias sem-terra.

No Brasil, por causa da concentração da propriedade da terra, são cultivados 40 milhões de hectares, 10% do potencial existente: a maior parte dessas lavouras está nas propriedades com menos de 500 hectares. Durante os anos de 1995/2002 (governo FHC), a concentração da propriedade da terra aumentou: os latifundiários com mais de 2 mil hectares aumentaram suas propriedades em 57 milhões de hectares. As empresas estrangeiras possuem no Brasil mais de 30 milhões de hectares de terra. O governo FHC promovera um simulacro de reforma agrária, assentando famílias em localidades sem nenhuma infraestrutura e despertando, via postal, uma ilusão de acesso à terra que frustrou a esperança de milhões.

A queda dos assentamentos de camponeses sem terra no primeiro ano do governo Lula foi um amortecedor dos conflitos sociais e um fator de esvaziamento dos movimentos dos sem-terra. No início do governo, o crescimento das ocupações de terra levou ao grito de alarme: “as massas estão escapando ao controle”. Lula havia prometido assentar 60 mil famílias em 2003 (havia 130 mil famílias acampadas “ilegalmente”). Para salvar a política de não tocar o latifúndio privado, o ministro Miguel Rossetto reciclou uma velha ideia: assentar as famílias em terras do Estado. Mas essa política, sem resolver a questão (as 130 mil famílias estavam acampadas em latifúndios privados), deixaria uma bomba relógio para 2004.

Uma notícia banal, sob o título “Acabou a luta de classes!”,47 referia o novo clima político no campo: A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em clima de descontração e otimismo, na tradicional feijoada oferecida pelo pecuarista Jonas Barcelos, em sua fazenda Mata Velha, após a inauguração da Expo-Zebu, foi uma cena jamais imaginada pelos empresários do agronegócio. No almoço do ano passado, Lula também foi o centro das discussões, mas, ao contrário deste ano, todos estavam preocupados, apreensivos e curiosos com o que aconteceria no país se o candidato petista fosse eleito. No sábado, os ruralistas faziam filas para posar para fotos ao lado do presidente. E elogios não faltaram: “O setor está contente e surpreso positivamente com o presidente Lula”, comentou o pecuarista Jovelino Mineiro, sócio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na Fazenda Córrego da Ponte, em Buritis (MG), resumindo o clima do almoço. Jovelino, que já sofreu com a invasão de suas terras pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), elogiou a determinação de Lula de colocar a agricultura na agenda do país e de escolher Roberto Rodrigues, “que é do setor”, como frisou, para o Ministério da Agricultura. O discurso do presidente Lula na Expo-Zebu agradou aos fazendeiros.

Lula alegou não ter caixa para gastar os R$ 668 milhões necessários para cumprir as modestas metas agrárias de 2003 (gastando 300 vezes essa cifra para pagar juros da dívida externa e interna). O número de famílias que invadiram terras de latifúndio improdutivo no Brasil caiu de 65.552, em 2003, para 44.364, em 2006; uma queda de 32,3%. Nesse mesmo período, a quantidade de famílias acampadas despencou de 59.082 para 10.259 - uma diminuição de 82,6%. A contradição entre os interesses da base do movimento dos trabalhadores rurais e a direção do MST, que priorizou a defesa do governo Lula, impulsionou a criação de novas organizações de camponeses despossuídos (no “Triângulo Mineiro”, por exemplo). Em julho de 2003, a prisão de José Rainha apareceu como um símbolo da nova situação política no campo.48 Ela foi seguida da prisão da sua mulher, Diolinda de Souza.

A dívida pública consumia, por outro lado, 42% do orçamento federal:49 os serviços da dívida passaram de 16% do orçamento federal, em 1995, para 42%, em 2005, ou de R$ 26 bilhões para R$ 257 bilhões anuais. A dívida pública caiu de 57,2% do PIB, em 2003, para 49,5%, em 2007. Em 2005, o governo federal aplicou 26,49% do orçamento em áreas sociais, frente a 42,45% em serviços da dívida pública. A verba restante, 31,06%, foi destinada para a Previdência Social. A carga tributária cresceu, portanto, no Brasil, basicamente para cobrir o aumento dos encargos da dívida pública. Foi desse modo que, em uma fase de expansão da economia e da arrecadação tributária, tornou-se possível a coexistência de políticas sociais com uma forte remuneração da especulação financeira.

O salário mínimo foi, aos poucos, valorizado, mas a média salarial não sofreu variações significativas. Os pisos salariais acima de três salários mínimos caíram de 4,6% em 2005 para 3,8% em 2006. Na média, em 2005, os pisos salariais médios pagos pelas empresas caíram de 1,69 salário mínimo para 1,52 mínimo. No mesmo ano, o salário mínimo subiu de R$ 260 para R$ 300 e, em abril de 2006, foi para R$ 350. O reajuste real (descontada a inflação) do salário mínimo, nesses dois anos, alcançou 22%. Durante o governo Lula, no entanto, não regrediu a regressão tributária, além de se manter a trajetória ascendente da carga impositiva. As pessoas com renda até dois salários mínimos (R$ 930, quase 33% da PEA, população economicamente ativa) continuaram levando mais dois meses do que os demais para quitar suas obrigações tributárias.

A questão racial imbricou-se diretamente com a questão do emprego e do salário: no Brasil são os negros e as negras os que mais sofrem com o desemprego, perfazendo 40% do desemprego total. Também são os negros os mais atingidos pelo “trabalho informal”, sendo seus salários 50% menores que os dos brancos. As mulheres negras são o setor mais empobrecido da sociedade e são as que mais sofrem com a violência doméstica. A violência contra a juventude negra e indígena tem altas taxas de homicídios; os negros são os primeiros a serem demitidos, os que mais caem na “informalidade”, nome eufemístico dado à exploração sem limites legais nem sociais. Esse quadro tornou mais grave o processo de cooptação, pelo governo Lula, das lideranças do Movimento Negro, o que culminou com a aprovação de um Estatuto da Igualdade Racial, com apoio da bancada ruralista do Congresso Nacional, retirando bandeiras históricas do movimento, e também a concessão de titulação de propriedade das terras dos remanescentes de quilombos. Além disso, Lula retirou o dispositivo que garantia a alocação de verbas para o ensino de História da África na educação básica.

Cabe também mencionar a atuação das ONGs, verdadeira base política operacional do governo Lula. O papel das ONGs na execução dos programas sociais as caracterizou como a principal articulação entre o governo e a sua base social-eleitoral. Com elas, Lula conseguiu fazer um governo que agradasse ao capital em geral e que mantivesse, ao mesmo tempo, o apoio das camadas mais pobres da população. Na medida em que os programas compensatórios são financiados por fundos estatais, as funções do Estado se ampliaram na regulação do mercado de trabalho com a transferência do fundo público, em proporção crescente, para o financiamento do setor privado, assumindo os custos da reprodução da força de trabalho: o Estado (depositário do fundo público) transformava-se assim, mais do que no passado, em pressuposto geral da acumulação de capital. A questão da pobreza no Brasil, no entanto, continuou em trajetória precária.50

Os recursos consagrados aos “direitos universais” estabelecidos constitucionalmente experimentaram, ao contrário dos programas sociais, um retrocesso relativo durante o governo Lula: os gastos com saúde e educação, embora crescessem em termos absolutos, decresceram em termos percentuais, passando de 1,79% para 1,59% do PIB, e de 0,95% para 0,77% do PIB, respectivamente (de 1995 até 2005). Uma diferença de 0,4% do PIB, enquanto os “gastos sociais” foram incrementados, em prazo semelhante, em 0,7% do PIB. A diferença de 0,3% foi coberta pela taxação (direta e indireta) dos salários.

Colaboração de Classes e Burocracia Sindical

O “modelo Lula” de governabilidade consistiu, basicamente, na estruturação como base política e organizadora de seu governo das ONGs e dos funcionários públicos encarregados de gerenciar os “programas sociais”, e na aliança com a burocracia sindical; dotando de estabilidade o financiamento do exército industrial de reserva com programas sociais condicionados que não tocavam o lucro capitalista. O “modelo” levava, no entanto, a marca da precariedade e da condicionalidade que ele imprimiu ao seu principal instrumento, devido à sua dependência umbilical de uma prosperidade econômica conjuntural. Os programas sociais, por outro lado, atingiram seu limite em termos de erradicação da miséria absoluta. A natureza capitalista da produção de alimentos, e a própria crise do capital, impuseram um limite intransponível à ação anticíclica e socialmente paliativa do Estado.

A função política central do governo Lula, pela qual o capital financeiro internacional lhe concedeu a “estabilidade macroeconômica” desejada, foi a instauração de um sistema completo de colaboração classista. Uma iniciativa tomada pelo governo foi a instalação do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), constituído por representantes dos trabalhadores, governo, patronato e de micro e médias empresas, mecanismo ao qual foi atribuída a tarefa de discutir e consolidar uma proposta de reforma sindical e das relações entre capital e trabalho. Houve declarações de Lula no sentido de alterar em profundidade a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e reconfigurar o modelo sindical existente, criticando o “sindicalismo de contestação”.

No Fórum Nacional do Trabalho, a bancada dos empregadores e a bancada dos trabalhadores chegaram a um consenso em torno da questão do direito de greve nos chamados “serviços essenciais”: a “bancada dos trabalhadores” coincidiu com a limitação do direito de greve dos servidores públicos.51 A complacência das centrais sindicais com as políticas governamentais teve seu prêmio, viabilizando sua maior burocratização. Um de seus mecanismos foi o “crédito em consignação”, descontado diretamente na folha de pagamentos. Esses empréstimos tornaram-se uma fonte de arrecadação e financiamento dos sindicatos (ou seja, da burocracia sindical).

A base material da burocracia é o Imposto Sindical, criado pelo regime varguista (em 2008, seu montante atingia um bilhão de reais, ou 600 milhões de dólares), ao qual se acrescentaram outras taxas compulsórias (taxa assistencial, “negocial”, federativa, confederativa) cobradas do conjunto dos assalariados, e recebidas por mais de dez mil sindicatos, metade deles “de carimbo” ou “de cartório” (só existem no papel, para receber esses impostos e taxas), uma autêntica máfia com milhares de supostos sindicalistas de “carteira esquentada”, que “representam” categorias nas quais nunca trabalharam e que às vezes sequer conhecem pessoalmente.

Além disso, passou a existir uma importante “carreira” pós-sindical, na administração do FAT, do FGTS e outros fundos expropriados do salário dos trabalhadores, sem esquecer o negócio mais florescente da era lulista, os fundos de pensão privados, favorecidos pelas reformas previdenciárias privatizantes de FHC e Lula,52 em cima das quais se montou uma camada “gestora” encabeçada por setores da burocracia sindical. No seminário sobre fundos de pensão, patrocinado pela Previ, Petros e Funcef, o presidente Lula defendeu explicitamente que os sindicatos deveriam estabelecer fundos de pensão. João Vaccari, tesoureiro da CUT, defendeu a constituição, pela central, de seu próprio fundo de pensão.

Em 1981, 5.030 militantes sindicais, na 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), considerada o embrião do "novo sindicalismo", Lula e os “novos sindicalistas” defenderam a necessidade de que os sindicatos se desatrelassem economicamente do Estado. Prometeram lutar para quebrar a espinha dorsal das entidades "pelegas", fechando a torneira dos recursos financeiros compulsórios. A evolução política do país reconfigurou várias vezes a burocracia sindical. A legalização das centrais sindicas (CUT, FS, CTB, UGT, NCST, CGTB, e CTB) não foi uma conquista dos trabalhadores, mas um episódio da luta burocrática por fatias das taxas compulsórias.53 O governo Lula, apoiado por setores que lutavam pelo fim do Imposto Sindical (a CUT, até a chegada de Lula ao poder, preconizava a eliminação das contribuições compulsórias e da unicidade sindical), finalmente aperfeiçoou esse instrumento de arregimentação, reformulando-o.54

Pela nova lei,55 as centrais que comprovassem “representatividade” poderiam abocanhar 10% do total arrecadado com o Imposto Sindical (uma quantia superior a R$ 100 milhões). Por decreto (“portaria”), Lula concedeu ao Ministério do Trabalho o poder de atuar como instância de conciliação no caso de conflito entre entidades que disputassem a representação de uma mesma categoria de trabalhadores ou atividade econômica. CUT e Força Sindical mantiveram seus feudos e os ampliaram: em 2010 a CUT tinha 1985 sindicato filiados e 22 milhões de associados; a Força Sindical, 1506 sindicatos e 16 milhões de filiados de base. O mecanismo de arregimentação burocrática da classe operária no Brasil tornou-se o mais aperfeiçoado da América Latina, e levou até suas últimas consequências as tendências à integração dos sindicatos ao Estado. Lula também vetou o antigo mecanismo que permitia ao Tribunal de Contas da União fiscalizar os recursos provenientes da “contribuição negocial”, que irrigam os cofres sindicais com verbas da ordem de R$ 1 bilhão anual. A montanha de dinheiro que jorra sobre a burocracia sindical é expropriada do salário operário pelo Estado.

A CUT, depois de apoiar a reforma da Previdência, furar a maior greve dos servidores públicos federais da história do país,56 enterrar várias campanhas salariais e também as greves dos trabalhadores dos Correios, passou a defender o aumento da lucratividade dos bancos, ampliando, pelo mesmo mecanismo, as dívidas e a quantidade de trabalhadores endividados. Isso foi produto do convênio entre as centrais sindicais e os bancos para a abertura de linhas de microcréditos para trabalhadores contraírem empréstimos, dando como garantia de pagamento o desconto em seus holerites. O empréstimo consignado (com desconto em folha de pagamento) ultrapassou o patamar dos R$ 100 bilhões em 2009 (os juros médios cobrados pelos bancos eram de 28% anuais). A burocracia sindical brasileira virou uma agência da agiotagem. É de se estranhar que, nesse quadro, a CUT propusesse, contra o desemprego, não a escala móvel de horas de trabalho (redução da jornada sem redução do salário), mas a criação de frentes de trabalho (trabalho quase sem custo para os capitalistas ou o Estado)?

As votações sobre a reforma previdenciária, pela primeira vez desde os tempos da ditadura militar, transcorreram de madrugada, com as galerias do Congresso vazias e vigiadas pela polícia. O projeto “modificado” do governo Lula manteve o imposto de 11% para as aposentadorias e pensões, a quebra da integralidade e da paridade entre ativos e aposentados, o teto das aposentadorias de R$ 2.400, o aumento da idade mínima de aposentadoria (55 anos de idade e 30 de contribuição – não de serviço – para as mulheres; 60 e 35, respectivamente, para os homens; além de 20 anos no serviço público e 10 anos no cargo exercido, para ambos). As pensões de menores e viúvas sofreram reduções. A lei estabeleceu os fundos “complementares” (privados) para as aposentadorias superiores a esses tetos. O lucro fiscal supostamente obtido se reduzia a menos de 10% do suposto passivo previdenciário.57

O governo precisava de 308 votos (60% da Câmara, de 513 deputados), para aprovar sua emenda constitucional. A coalizão governamental possuía 325 deputados (incluídos os 92 do PT), dos quais apenas 261 votaram a favor do projeto Lula-Berzoini-Gushiken; houve 42 votos contrários (entre eles, três do PT), nove abstenções e doze “ausências” na bancada governista (incluídos doze representantes do próprio PT). O projeto foi, contudo, aprovado com 358 votos, graças aos votos favoráveis de 97 deputados da “oposição” de direita. Para isso, Lula e seu gabinete distribuíram generosamente nada menos que R$ 2 bilhões do orçamento nacional para seus “projetos”.58

A “reforma sindical” acordada com a CUT combinou a possibilidade de sindicatos por empresa com o arbítrio em última instância da central sindical ou de uma comissão das centrais sindicais, impulsionando a desregulamentação trabalhista, já que passariam a valer os acordos coletivos firmados entre o patronato e a entidade representativa, permanecendo na legislação constitucional e infraconstitucional apenas direitos mínimos: a fixação das regras de proteção do trabalho seria temporária, vinculada a acordos coletivos. A contrapartida seria a definição das centrais sindicais como instâncias últimas de julgamento sobre representação.

Uma CUT “integrada” à política do governo (e ao próprio governo), cada vez mais burocratizada e desconectada do movimento dos trabalhadores, em especial de seus setores mais submergidos (“informais” e desempregados), foi o saldo do processo. O aparato sindical da CUT passou a ter mais de 100 mil pessoas “liberadas” (do trabalho) e mais de 20 mil diretamente empregados, um verdadeiro exército de “dependentes”. O presidente da CUT foi nomeado Ministro do Trabalho. Em 2006, ainda durante o primeiro governo Lula, a direção da CUT pactuou com a patronal a demissão de 3.600 operários da fábrica da Volkswagen: a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo aceitou o “plano de demissão voluntária” (PDV) imposto pela empresa, em que pese a forte resistência da base operária.

Mensalão e Corrupção Política

Na proposta de reforma tributária apresentada ao Congresso, o governo Lula propôs não apenas a manutenção da CPMF, mas a transformação de seu caráter provisório (previsto para expirar em 2004) para permanente. O Congresso rejeitou, inclusive com boa parte dos votos contrários da “base aliada”. Além dessa redução drástica de recursos financeiros, no terceiro ano do governo Lula a revelação do escândalo do “mensalão”59 abalou profundamente o governo, provocando a exoneração do ministro chefe da Casa Civil (José Dirceu) e sua posterior cassação parlamentar, mas não provocou a queda do governo, que chegou a ser posta no tapete político.

O mensalão revelou o preço (monetário), R$ 30 mil por mês (em espécie), da estabilidade política do governo, isto é, o preço do apoio parlamentar que, em caso de ausência, o teria inviabilizado como governo politicamente viável e útil ao capital. A colaboração classista tinha preço, mas não só em dinheiro: o governo Lula ficou refém da maioria parlamentar da chamada “base aliada” e, com o mensalão, também do Poder Judiciário, cuja composição tentou alterar em seu benefício. O julgamento do mensalão projetou um juiz do STF, Joaquim Barbosa, como figura de primeira linha da política nacional, e pôs o Judiciário na linha de frente da estabilidade do Estado, o que, para além da óbvia presunção de alguns protagonistas, era um índice certo da decomposição política dos outros dois poderes. O Judiciário preservava a ordem política, a Polícia Militar (o “Capitão Nascimento”) a ordem social (vários filmes bem sucedidos divulgaram essa nova imagem).

Levantou-se a hipótese de que a causa da “neocorrupção petista” fosse que “novas classes sociais ascenderam ao poder e, com elas, novos hábitos de apropriação do espaço e do dinheiro públicos, administrados com a fúria que somente uma lumpemburguesia associada a um lumpemproletariado são capazes de demonstrar”.60 O sociólogo Francisco de Oliveira (que chegou a ser processado por calúnia por Delúbio Soares, tesoureiro do PT e um dos principais envolvidos nos esquemas corruptos), que se integrou à mini cisão do PT que deu origem ao PSOL, levantou até a hipótese de que o governo Lula e o PT representassem uma nova fração da burguesia brasileira, ou uma nova classe social, originada na burocracia sindical e partidária (PT), a fração responsável pela gestão do fundo público e dos fundos de pensão privados.61

A cassação de José Dirceu, deputado federal e ministro chefe da Casa Civil, em virtude do mensalão, eliminou o mais provável candidato petista à sucessão de Lula. No entanto, finalmente, prevaleceu um arranjo político geral para recuperar o governo Lula dos escândalos, arranjo que não obedeceu apenas ao temor de que as investigações de corrupção também alcançassem os “opositores”, como já começava a ocorrer com o PSDB (“mensalão mineiro”). Como constatou Wladimir Pomar, o STF “aceitou a tese do mensalão, sem qualquer consistência objetiva, pois se houvesse teria que ter julgado a maior parte da Câmara dos Deputados”.

A crise do PT, com a prisão do presidente do partido (José Genoíno) e do articulador político do governo (José Dirceu) não produziu uma mudança em suas linhas ideológicas, políticas e programáticas: a quebra do PT não propiciou uma ruptura, mas uma continuidade. A “normalização” do PT contra as “tendências de esquerda”, iniciada no V Encontro Nacional (de 1987), e continuada do I Congresso Nacional (de 1991), preparara o PT para ser um “partido de governo”. Com o processo judicial do mensalão, os executores da caçada à esquerda partidária da década de 1990 foram, como aconteceu outrora (de modo muito mais violento, claro) com os executores dos Processos de Moscou, fritados e postos à margem.

A queda de José Dirceu foi bem mais do que a marginalização de um homem do aparelho partidário corrompido, pois ele fora o principal formulador estratégico da perspectiva política do PT/governo: “Dirceu acreditava que o empenho do PT na defesa dos interesses burgueses conquistaria o apoio do empresariado para as ‘nossas propostas de reformas estruturais’. A burguesia, antes apontada como inimigo de classe, sócia do imperialismo e beneficiária do subdesenvolvimento, agora era vista como aliada estratégica para desenvolver o país. Os termos originais em que fora concebido o princípio da independência de classe ficavam, assim, abandonados”.62

O arranjo interno ao governo e ao PT incluiu a vitória de Ricardo Berzoini (candidato da direção partidária) nas eleições internas do PT; a eleição de Aldo Rebelo (PC do B) à presidência da Câmara dos Deputados; o enterro melancólico das CPIs (comissões parlamentares de inquérito) dedicadas a investigar os esquemas de corrupção; a confirmação da política econômica e de seu ministro, Antonio Palocci – respaldado pela oposição de direita –, também acusado de liderar diversos esquemas de corrupção na cidade da qual fora prefeito, Ribeirão Preto.

Também o grande capital financeiro internacional meteu a mão na crise política: “Os problemas enfrentados pelo presidente Lula trazem perspectivas negativas para o avanço do livre mercado na América Latina, e para os interesses dos EUA na região”, advertiu The Wall Street Journal. O representante do Tesouro dos EUA (John Snow) e o próprio presidente George W. Bush visitaram Brasil e se pronunciaram claramente em defesa do governo Lula. O mesmo fizeram os principais jornais brasileiros.

As razões disso eram palpáveis. Em dois anos, Lula e seu ministro da Fazenda Antonio Palocci pagaram R$ 300 bilhões aos credores da dívida pública (enquanto aplicavam menos de um bilhão para a reforma agrária, ou cinco bilhões para as universidades públicas), o que não serviu para reduzir a dívida. O governo Lula reforçou sua aliança com os especuladores financeiros nacionais e internacionais. O Itaú anunciou, em meados de 2005, o maior benefício da história bancária nacional para um semestre: quase 2,5 bilhões de reais; na semana seguinte, o Bradesco bateu o recorde anunciando lucros superiores a 2,6 bilhões de reais. E os industriais? Vale do Rio Doce (CVRD), principal empresa privada, anunciou, para o mesmo semestre, lucros de... 5,1 bilhões de reais. Petrobras, “estatal” controlada pela Bolsa... 9,9 bilhões de reais.

A dívida contraída pelo governo com a emissão de títulos públicos cresceu R$ 470 bilhões no primeiro mandato de Lula, chegando a R$ 1,094 trilhão no final de 2006. O aumento de 75% se explica pelos elevados juros praticados no país, e pela estratégia de substituir o endividamento externo por dívida interna. Em 2005, os encargos da dívida somaram R$ 140,9 bilhões; em 2006, a carga de juros que incidiu sobre os títulos públicos em circulação no mercado foi de R$ 142 bilhões, 17 vezes mais do que o valor destinado aos beneficiários do Programa Bolsa Família.

Entre o Capital e a Pobreza

Na campanha para a nova eleição presidencial, contra as cifras que evidenciavam uma piora na situação econômica do Brasil no período 2003-2006, o governo Lula deu a conhecer um balanço econômico que lhe era, ao contrário, claramente favorável. Certamente, alguns itens (como “transferência de renda”) foram apresentados de modo demasiadamente geral como para serem analisados. E outros índices (como o aumento da carga tributária, principalmente sobre os salários) foram simplesmente ignorados. O essencial é que o quadro não apresentou uma diferença de concepção de política econômica e social em relação aos governos precedentes, mas uma diferença de resultados. As cifras relativas à queda percentual da dívida líquida do setor público ocultavam seu aumento absoluto. Os índices selecionados não apontavam uma quebra de tendência, mas a atenuação de algumas tendências destrutivas da economia e do trabalho que tinham se acentuado muito durante o governo FHC.

A renúncia fiscal do Estado em benefício dos capitalistas cresceu 12% em 2005, alcançando um recorde histórico de 27 bilhões de reais. Mas as crises políticas deixaram suas marcas eleitorais: em final de 2006, Lula não repetiu o feito de FHC (vencer a reeleição já no primeiro turno) em que pese a oposição ter lhe oposto um candidato “boi de piranha” (Geraldo Alckmin, que conseguiu a façanha de ter menos votos no segundo turno do que no primeiro). Lula conseguiu uma recuperação “miraculosa” do seu fracasso no primeiro turno, obtendo no segundo turno mais de 60% dos votos válidos emitidos contra 39% de Alckmin, uma diferença de cerca de 20 milhões de votos. No Nordeste, Lula obteve mais de 80% dos votos em alguns estados. Um importante jornal dos EUA informou que “a reeleição de Lula representa boas novas para Washington”.

Tornou-se lugar comum afirmar que os programas sociais “focalizados” do Brasil foram, especialmente no Norte-Nordeste, a garantia da base eleitoral que permitiu a Lula vencer com folga o segundo turno das eleições de 2006, abrindo-lhe o caminho para um segundo mandato (2007-2010).63 No ano imediato anterior à reeleição de Lula, o índice de pobreza do país caiu de 30,5% para 26,9%, uma redução de 3,5% (ou 6,5 milhões de pessoas), o menor índice desde 1997.64 O ministro do Desenvolvimento Patrus Ananias declarou a intenção do governo Lula de aumentar a faixa etária do Programa Bolsa Família: o presidente encaminhou o projeto de lei a respeito para o Congresso Nacional, onde não foi votado. No final de 2007, enviou Medida Provisória para garantir a expansão do benefício para jovens de 16 e 17 anos.

Segundo as interpretações mais comuns, os mais pobres, basicamente, teriam reconduzido Lula à presidência da República: apenas 11% de seus eleitores ganhavam mais de cinco salários mínimos por mês. Dos cidadãos que recebiam até dois salários mínimos, 56 % votaram nele. Desse contingente, em 1989 só 37 % haviam dado seu voto ao candidato do PT. Em 2006, apenas 6% dos eleitores de Lula tinham curso superior. Em 1989 eles somavam 11%, o mesmo índice dos que haviam atingido só a quarta série do ensino fundamental. Agora, estes somavam 35%. Subjazia a ideia de que a manipulação, econômica e política, de uma massa “excluída” através de programas sociais focalizados, era suficiente para garantir a estabilidade política do governo.

As coisas não eram assim tão simples. A estabilidade do governo, em que pesem as repetidas crises políticas, deveu-se mais a razões macroeconômicas. O crescimento do PIB, bem longe de espetacular, foi maior do que se acreditava: pelos dados revistos do IBGE, no primeiro governo Lula, o crescimento foi de 3,3% ao ano (ao invés dos 2,6% a.a da série de dados original), um ponto percentual superior ao governo de FHC. Em 2006, o PIB cresceu 3,7%. Parte desse desempenho foi estimulado pelo notável crescimento das exportações, que quase duplicaram no período, passando de US$ 73 bilhões para US$ 137,5 bilhões.

Motivado pelo aquecimento da demanda mundial, esse boom exportador teve importantes efeitos eleitorais nas eleições presidenciais de 2006. Fora a presidência do governo federal, no entanto, o PT só controlava cinco dos 23 estados de Brasil, sendo uma minoria pequena no Senado. E a esquerda do PT, que na década de 1990 chegara a ter maioria no partido e em sua direção, teve forte redução de sua representação parlamentar na segunda eleição de Lula, com suas bancadas reduzidas para menos da metade; além disso, muitos dos petistas eleitos estavam envolvidos com os escândalos do mensalão. Houve também o apoio explícito do MST à reeleição, um instituto que fora criado por FHC, mediante subornos parlamentares, em 1998.65

Lula foi mais votado nos municípios menos “desenvolvidos” do Brasil. A análise desses dados sugeria que sua votação estivesse inversamente relacionada com a renda per capita do município e diretamente com a taxa de mortalidade infantil, analfabetismo e desigualdade. Essas características estavam presentes nos municípios potencialmente mais favorecidos pelo PBF, mas não havia senão uma fraca evidência do impacto positivo do programa na eleição. Mais convincente era a hipótese de que os ganhos de bem-estar dos mais pobres fossem os responsáveis pela reeleição de Lula.

Tomando-se a variação dos índices de preço, era notável a diferença entre eles de acordo com as faixas de rendas consideradas. Observando o período entre a posse de Lula, em janeiro de 2003, e as eleições ocorridas em 2006, o índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), que considera as rendas das famílias de até 40 salários mínimos, aumentou 24%. No mesmo intervalo, o preço da cesta básica calculado pelo Dieese teve aumentos bem menores: nas capitais do Rio Grande do Sul e de São Paulo esse indicador teve uma elevação de 8,5% e 10,4%. Em Recife e Fortaleza, a cesta básica teve uma variação nesse período de 4% e 3% (no segundo turno de 2006, Lula recebeu, em Pernambuco, 82% dos votos, e no Ceará, 75%).

Segundo os analistas citados, teve mais peso no eleitor brasileiro a estabilização dos preços: os eleitores optaram por votar no candidato que lhes pareceu mais comprometido com sua continuação. As mudanças que amenizavam a pobreza já estavam em curso quando Lula chegou ao poder, e foram ampliadas graças à conjuntura favorável da economia mundial. O IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), porém, afirmou que “existem evidências de que a desigualdade de renda continuou caindo ao longo de 2005 e a expectativa é que possamos ter pela frente uma quebra recorde em termos de redução da desigualdade. A renda média dos pobres aumenta proporcionalmente mais do que a dos ricos”.

Isso explicaria a popularidade do governo Lula: “A queda da desigualdade é suficiente para que os mais pobres percebam um nível de desenvolvimento no país e um aquecimento da economia que outros grupos de renda não estão percebendo”. Analisando o comportamento da curva de redução da desigualdade no ano de 2004, o IPEA observou que 75% do aumento da renda dos 20% mais pobres resultou da diminuição do grau de desigualdade: “O tão celebrado crescimento econômico (de 2004) foi responsável por menos de 1/3 da queda observada na extrema pobreza e, portanto, para os pobres, a redução no grau de desigualdade foi três vezes mais importante”.

Mas também “do outro lado” havia percepções otimistas, e por razões muito boas. O faturamento real (descontada a inflação) das empresas brasileiras cresceu 41% de 2000 para 2007. Uma consultoria divulgou um levantamento sobre o desempenho das 257 companhias que faziam parte da Bolsa de São Paulo desde o início do governo Lula (2003). O lucro total das empresas dobrara do início do governo Lula até o final de 2007, passando de R$ 61,6 bilhões para R$ 123,7 bilhões (um aumento de 100,76%). O resultado de 2007 foi o melhor de todo o período Lula. O crescimento dos ganhos das companhias foi de 20,16% em relação aos R$ 102,9 bilhões de 2006. A Petrobras e a Vale do Rio Doce juntas lucraram R$ 41,5 bilhões, o que correspondia a metade da soma dos ganhos das outras 255 empresas listadas. Sem contar essas duas companhias, o lucro das demais somou R$ 82,2 bilhões em 2007, com alta de 139,64% sobre os R$ 34,3 bilhões registrados em 2003.

O capital financeiro foi o outro grande beneficiário da política econômica. Os bancos lideraram a lista, em termos de lucratividade, em todos os cinco anos analisados. O lucro total do setor passou de R$ 12,7 bilhões em 2003 para R$ 28,7 bilhões em 2006, um aumento de 225%. As empresas de energia elétrica tiveram o segundo maior lucro em 2007, de R$ 14,5 bilhões, uma alta de 414% em relação a 2003. Em 2007, finalmente, o setor bancário teve um lucro de R$ 45,4 bilhões, batendo todos os recordes precedentes. Enquanto isso, os gastos com saúde e educação, como vimos, embora crescessem um pouco em termos absolutos, decresceram em termos relativos.

O governo federal também formalizou o pagamento antecipado de US$ 15,5 bilhões ao FMI. Lula, discursando para uma plateia de militares anunciou que "não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo com o FMI porque não precisávamos mais do FMI. E tomamos a decisão de devolver um dinheiro sobre o qual estávamos pagando juros, que custava mais caro para nós do que o juro que a gente recebia dos nossos depósitos, das nossas reservas no exterior". E continuou: “O Brasil, hoje, está consolidado com as suas reservas internacionais, está numa situação privilegiada de reservas". O pagamento antecipado de parte da dívida externa do Brasil somava-se à maior taxa de juros real do mundo, com superávit primário recorde de 4,97% do PIB e superávit comercial de US$ 44 bilhões da balança comercial em 2005. Nessas condições favoráveis para os rentistas financeiros, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Lula foi uma clonagem do programa “Avança Brasil”, do governo FHC. Na forma, no conteúdo e até na lista dos projetos. O Avança Brasil fora um grande fracasso, mesmo no vácuo de uma cavalar desvalorização cambial. E o pagamento do serviço da dívida pública mais que dobrou entre 1995 e 2005: como porcentagem do orçamento da União, esses gastos saltaram de 18,75% em 1995, primeiro ano do governo de FHC, para 42,45% em 2005, terceiro ano do governo Lula. Em meio a termos como "prorrogação", "reativação" e "ampliação", a política industrial do governo recauchutava programas e benefícios criados nos últimos quatro anos em sucessivos pacotes de desoneração tributária.

Enquanto isso, os gastos com previdência e assistência social, que correspondiam a 34,05% do orçamento em 1995, caíram para 31,06 % em 2005. Os “outros gastos” do orçamento, saúde, saneamento, educação, transportes, cultura, que correspondiam a 47,20% em 1995, caíram para 26,49% em 2005, incluindo os subsídios ao setor privado. O orçamento do Ministério da Educação para o segundo ano de mandato de Lula aumentou em 23% o dinheiro destinado a financiar estudantes de universidades privadas. As verbas do Fies passam de R$ 673,8 milhões para R$ 829,2 milhões. A ampliação do financiamento para estudantes em instituições privadas antecipou um dos temas da reforma do ensino superior.66

A política geral não provocou uma inflexão na tendência histórica de aumento da taxa de exploração do trabalho, considerando tanto o salário direto quanto o indireto (saúde, previdência e educação): a remuneração do trabalho tinha um peso na renda nacional, em 2008, de 39,1%; em inícios da década de 1980, ela superava 50%. As condições criadas, de retrocesso da pobreza mais acentuada, se encontravam vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura prevalecente até meados de 2008, sem mudanças importantes na produção e na distribuição de renda. A constituição e uma população cuja sobrevivência dependia de programas de ajuda social governamental, não incorporados à estrutura institucional do país, se configurava como um paliativo conjuntural, dependente de fatores principalmente externos.

Com a política econômica voltada a transformar de modo crescente o país numa plataforma de exportações, para obter os saldos comerciais que permitissem continuar rolando as dívidas, definiram-se "circuitos espaciais de produção" que, por meio de um uso monopólico do território, estabeleceram uma hierarquia territorial. Essa crescente concentração econômica dos circuitos fez com que eles se comportassem como fragmentos autônomos em relação ao resto do território. Os lugares que ficam como resíduos desse processo não contam na divisão territorial do trabalho. Nesse contexto, uma disputa entre "fragmentos" seria sempre uma disputa desigual. Os primeiros, com sua parcela de produção ampliada na escala internacional, ficam fortalecidos; os segundos, com sua área de ação localmente delimitada, permanecem fragilizados: o processo, em vez de fortalecer a unidade do território nacional, estimula sua fragmentação e fragilidade.

O esgarçamento econômico e político conclui na fragmentação geográfica que, pela dinâmica do capital, se desdobra na fragmentação urbana, derivada do desemprego e do confronto brutal do capital com o trabalho. A divisão social, sempre existente nas concentrações urbanas, se transformou, no Brasil, no confronto crescente entre duas cidades, a “protegida” (que fez nascer e se desenvolver uma monumental indústria da segurança privada, um negócio capitalista situado à beira do crime, e que dele se alimenta) e a favelada-precária, submetida a um estado de exceção policial permanente. A repressão policial é exercida principalmente pela Polícia Militar, instituição criada durante a ditadura militar, com fórum judicial próprio, isto é, situado fora de qualquer controle judiciário civil. À sua sombra, floresceram as “milícias” privadas, verdadeiro governo independente nas regiões mais pobres das grandes cidades. A acumulação de capital que teria situado o Brasil à beira do “Primeiro Mundo”, produziu uma decomposição social sem precedentes, com dois filhos legítimos: a expansão espetacular do consumo de drogas (em todas as classes sociais) e o “crime organizado” (PCC, Comando Vermelho e muitos outros), expressões, não de uma revolta social, mas de uma indústria capitalista (a das drogas, principalmente) situada fora da legalidade comercial.

Os canais de lavagem de dinheiro transformam esse processo em “crescimento do PIB”. A barbárie (sem aspas) virou o cotidiano do Brasil urbano e “moderno”. Entre jovens de 15 a 24 anos, o desemprego pulou de 35% para 40% a partir de 2001 e ficou por aí desde então. Alguma surpresa com a explosão da criminalidade entre os jovens nessa faixa etária? Mais da metade dos trabalhadores brasileiros não tinha emprego formal (51,2% em 2004). O governo Lula melhorou a inspeção do trabalho, reduzindo significativamente esse percentual, mas os dados gerais da criminalidade, incluindo a elevada taxa de homicídios (das mais altas do mundo) permaneceram basicamente inalterados. Processo geral em toda a América Latina, que possui 43 das 50 cidades mais violentas do planeta.

Lula II

Logo de cara, no segundo mandato de Lula, a “segunda etapa” da reforma da previdência propôs um programa de Renda Básica do Idoso, em substituição da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (de dezembro de 1993) que estabeleceu, em seu artigo primeiro: "A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativas públicas e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas".67 A lei vinha sendo gradativamente substituída pelo “programa”. Mas este recurso começava a mostrar seus limites.

No plano externo, a Unasul apareceu como um projeto dos interesses do empresariado brasileiro para “integrar” uma indústria militar e civil regional sob seu controle, e para impulsionar gastos em infraestrutura para suas empresas. Mas pôs o Brasil no limiar da ruptura diplomática com Equador, devido às violações trabalhistas e ambientais da Odebrecht no país (o BNDES respaldou financeiramente a obra com empréstimo de US$ 243 milhões, que o Equador foi obrigado a quitar). Evo Morales nacionalizou o consorcio petroleiro Chaco, do qual fazia parte a empresa argentina Bridas, devido à negativa daquele a aceitar os termos das nacionalizações bolivianas. As bandeiras “integracionistas” se transformaram crescentemente em ficção, em face dos conflitos regionais que se acumularam, expressando a defesa dos diversos (e contraditórios) interesses empresariais de cada país.

No país, “modernidade” e pobreza, avanço técnico e fragmentação social, latifúndio improdutivo e mercado de futuros da soja se fortaleceram reciprocamente em um paradoxo aparentemente sem fim, expressão do desenvolvimento desigual e combinado das forças produtivas nacionais. Com a "guerra fiscal" entre os estados, destinada a criar melhores condições para os investimentos (estrangeiros, principalmente), originou-se um caos impositivo que questionou o próprio pacto federativo. A guerra fiscal, por outro lado, é paga pela população trabalhadora e pobre com cortes crescentes nos gastos sociais e no orçamento público em geral (saúde, educação, transporte, etc.), produto das isenções impositivas (“renúncia fiscal”) oferecida competitivamente (via decretos) pelos estados ao grande capital (a desoneração fiscal em 2007 chegou a R$ 5,25 bilhões) que foi obtendo lucros cada vez maiores no Brasil, especialmente no setor financeiro, cujos benefícios se situaram entre os mais altos do planeta (o lucro médio dos bancos no Brasil é de 26% ao ano, enquanto nos EUA varia entre 10% e 15%).

O segundo mandato de Lula, por outro lado, foi apanhado pela nova fase da crise capitalista mundial, a partir de 2008. Mundialmente, a primeira metade da década inicial do novo século seria lembrada como a época em que as “inovações financeiras” superaram a capacidade de avaliação de riscos tanto dos bancos como das agências reguladoras de crédito. O caso do Citigroup foi emblemático: o banco sempre esteve sob a fiscalização do Federal Reserve, e seu quase colapso indica que não apenas a regulamentação vigente foi ineficaz como também que o governo dos EUA, mesmo depois de deflagrada a crise, subestimou sua severidade. O Citigroup não esteve sozinho entre as instituições financeiras que se tornaram incapazes de compreender os riscos que estavam assumindo. À medida que os ativos financeiros se tornaram mais e mais complexos, e cada vez mais difíceis de serem avaliados, os investidores passaram a ser garantidos pelo fato de que tanto as agências internacionais de avaliação de crédito como os próprios agentes reguladores aceitavam como válidos os complexos modelos matemáticos usados pelos criadores dos novos produtos financeiros, que "provavam" que os riscos eram muito menores do que veio a se verificar na realidade.68

Contrariando a tese do “desacoplamento” (ou a da “marolinha”, exposta pelo próprio Lula), a crise mundial bateu com força na América Latina e no Brasil. Durante o período 2003-2007, América Latina recebera um volume recorde de investimentos estrangeiros diretos, superior a US$ 300 bilhões. Suas empresas lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos. O PIB da região cresceu numa média de 5% anual entre 2003 e 2008, com um incremento médio superior a 3% no produto bruto per capita.

Um fator muito alardeado foi a redução drástica das dívidas denominadas em dólares. Isso ocultou a natureza real do processo econômico, embutida na valorização monetária propiciada pela “estabilização”. A dívida externa foi “zerada”, a partir de que as reservas internacionais do país – o total de moeda estrangeira conversível – superaram o montante da dívida externa, pública e privada, o que criou a ilusão da superação da dependência financeira externa. Mas o endividamento assumiu outras características. A dívida real, passível de ser saldada em moeda conversível, devia ser avaliada em conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, a dívida mobiliária federal, por ser viável a troca de títulos da dívida externa por papéis da dívida pública. Um título público brasileiro, por exemplo, com vencimento em 2045, oferecia 7,5% de interesse por cima da inflação, o mesmo título do Japão pagava somente 1%.

A crise mundial estava potencialmente presente no Brasil desde o seu início nos EUA, em agosto de 2007. O crescimento da Bolsa de Valores foi alimentado, no Brasil, por bancos locais que recorreram à liquidez internacional, ou seja, ao endividamento. Em apenas cinco dias de 2008, as empresas brasileiras cotadas em Bolsa de Valores perderam 227 milhões de dólares de seu valor. A repentina desvalorização da cotação das empresas era o primeiro sinal da crise. Houve divulgação de perdas consideráveis da Aracruz Celulose, do grupo Votorantim, da Sadia. No terceiro trimestre daquele ano, a crise do subprime dos EUA virou abertamente uma crise financeira internacional de grandes proporções.

Assim, depois de um período de ilusões no “desacople” (decoupling) da economia latino-americana da crise econômica mundial, América Latina começou a sentir diretamente os efeitos dessa crise, em primeiro lugar pela redução de suas exportações, que reduziram drasticamente os saldos favoráveis da balança comercial de suas principais economias, e também pelas restrições de crédito, vinculadas ao credit crunch internacional. Em 2008, houve ainda uma forte expansão: Argentina (7%); Brasil (5,2%); Chile (3,2%); Equador (6,52%); México (1,3%); Peru (9,8%), Venezuela (3,2%), tiveram desempenho positivo. Mas, no primeiro trimestre de 2009, na América Latina toda, o PIB caiu 3%, com destaque para a brutal queda do México: 9,31%. A recessão começou “oficialmente” no quarto trimestre de 2008. Ainda em dezembro de 2008, a CEPAL previa para 2009 um crescimento de 1,9%, mas, em abril de 2009 já estimava uma contração de -0,3% (em junho elevou-a para -1,7%). Durante o quarto trimestre de 2008, México, Brasil, Argentina e Chile registraram quedas anualizadas do PIB de -10,3%, -13,6%, -8.3%, e -1,2%, respectivamente. No primeiro trimestre de 2009, México registrou uma queda anualizada sem precedentes, -21.5%.

A queda do emprego no primeiro trimestre de 2009 atingiu um milhão de vagas em toda a América Latina, calculando-se uma perda total de até quatro milhões até o final de 2009. O México sofreu especialmente, embora com uma taxa de desemprego ainda baixa pelos padrões regionais (mas em crescimento de 4,9% para 6,1%), sobretudo nos setores que “puxaram” seu crescimento no período precedente, especialmente o setor automotivo, que empregava quase 600 mil trabalhadores. As exportações mexicanas de veículos caíram 57% já em 2008, a GM de Guanajuato deixou em paro técnico 10 mil funcionários, e 6.600 em outras três fábricas. Volkswagen demitiu 900 trabalhadores, Delphi (fabricante de autopartes), 1.700. Em abril de 2009, o governo mexicano recebeu do FMI uma linha de crédito preventivo de US$ 47 bilhões para socorrer as empresas (outro país latino-americano que usou essa linha foi a Colômbia, US$ 10,5 bilhões, mormente usados para gastos militares e para o combate contra a guerrilha).


No Brasil, o efeito imediato da crise foi a baixa das cotações das ações, provocada pela venda maciça por parte de especuladores estrangeiros, que se atropelaram para repatriar seus capitais a fim de cobrir suas perdas nos países de origem. Em razão disso, ocorreu também uma súbita e expressiva alta do dólar. Posteriormente, grandes empresas brasileiras exportadoras sentiram o baque da falta de crédito no mercado mundial para concretizar seus negócios com parceiros estrangeiros. Empresas como Embraer, com seus faturamentos altamente dependentes de vendas ao exterior, tiveram que cortar postos de trabalho e reduzir drasticamente o ritmo de produção. Grandes empresas siderúrgicas no Brasil também desligaram alguns fornos. Empresas menores fornecedoras desses grandes conglomerados também foram atingidas. No mercado interbancário, houve uma paralisação dos empréstimos normalmente concedidos pelos grandes bancos aos menores.

Num primeiro momento, o Banco Central do Brasil decidiu isentar os grandes bancos de uma parte do depósito compulsório, que deveria ser destinada a empréstimos aos bancos menores. Mas, devido ao clima de pânico que se instaurou nos mercados financeiros, a medida não se revelou suficiente: os grandes bancos continuavam não concedendo empréstimos. Assim, o Banco Central decidiu adquirir as carteiras de crédito de que os bancos pequenos desejassem se desfazer, desde que oferecessem garantias. Houve pressão ainda para que os bancos estatais comprassem bancos menores em dificuldades. Assim, o Banco do Brasil comprou 49% das ações do banco Votorantim, injetando liquidez, mas não ficando com o controle acionário da instituição.

Crise Brasileira e Crise Latino-Americana

Os dados da conjuntura latino-americana começaram, assim, a mudar com a crise econômica mundial. A crise possuía mecanismos diretos de transmissão, vinculados à contração da demanda: o comércio externo e as matérias-primas. Segundo a CEPAL, os termos de troca da região caíram 15% durante 2009. Os preços dos produtos primários despencaram com a crise, depois de uma alta especulativa das commodities em 2008. Em fevereiro de 2009, os preços tinham sofrido queda respeito ao pico da alta, nas proporções que seguem: petróleo 51%, alimentos 18%, arroz 50,6%, milho 47,9%, trigo 41,9%, metais 49%, cobre 37,9%. As quedas de remessas de migrantes afetaram, sobretudo, México, Bolívia, Equador, e quase toda América Central e o Caribe (estas últimas, além disso, sofriam com a acentuada queda de ingressos pelo turismo).

As contas nacionais paulatinamente se ressentiram de arrecadações menores. E a situação do mercado mundial consentia cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de remessas, aplicações e investimentos diretos entraram em queda, enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em 2009 foram dominadas pelos países da OCDE (os EUA lançaram mais de US$ 2 trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE), deixando pouco espaço para os “emergentes”. A dependência financeira da região era a sua grande vulnerabilidade, somada ao escasso desenvolvimento do mercado interno e à crescente fuga de capitais, vinculada aos mecanismos generalizados de “desalavancagem” e de aversão ao risco, que provocaram uma fuga em direção dos ativos e países “mais seguros”. Nos anos 1990, considerara-se que a forte internacionalização do sistema financeiro era positiva para fugir das crises: a partir de 2008, verificou-se o contrário.

José Serra distinguiu a crise latino-americana da “europeu-norte-americana” pelo fato de que “na América Latina em geral, assim como na Ásia, o contágio veio dos subprodutos da crise, principalmente a retração brusca das finanças e do comércio. Não houve colapso de instituições financeiras importantes. As únicas exceções mais sérias foram as perdas em derivativos no México - US$ 4 bilhões no último trimestre de 2008 - e no Brasil - estimadas em US$ 25 bilhões. Houve, sim, uma acentuada redução na oferta de crédito às atividades produtivas, em decorrência da perda de linhas de crédito estrangeiras”.69 Chile e Peru eram mais vulneráveis à crise do que o Brasil, segundo Serra, devido à sua maior dependência comercial, mas adotaram rápidos pacotes anticíclicos de grande envergadura, coisa que o Brasil, segundo Serra, não fez. Mas ainda era cedo para dizer que na América Latina não haveria colapso financeiro, e que a própria crise estava encerrada mundialmente. O problema do “canal de contágio” da crise é subordinado, derivado, diante de uma crise de natureza sistêmica e mundial. Os problemas estruturais (históricos) da economia latino-americana, que a crise, como uma espécie de catarse, pôs em evidência, voltavam a se evidenciar.

O governo brasileiro pensou poder “navegar” a crise graças aos recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros exportados em 2008, de 24,5 bilhões produzidos) e de biodiesel, que tinham por destino principal os EUA. Os governos “progressistas” latino-americanos batalharam, em diversos fóruns internacionais (OMC especialmente) pela abertura dos mercados dos EUA e da Europa, fortemente protegidos por barreiras tarifárias e não tarifárias, para as exportações primárias da América Latina. Os superávits comerciais começaram a desacelerar, o Brasil começou a registrar déficits fiscais, e a primeira queda absoluta de arrecadação desde 2003. Os subsídios do governo brasileiro ao grande capital, industrial e financeiro, somavam mais de R$ 300 bilhões de “renúncia fiscal”, ameaçando as reservas em divisas. Isso estabeleceu a perspectiva de uma crise financeira, adiada pelos investimentos externos, que atingiram US$ 80 bilhões anuais. Revelava-se que o saldo comercial favorável se apoiava em fatores conjunturais.

Cotações favoráveis foram a principal explicação para o desempenho do comércio exterior brasileiro, com exportações e superávits em crescimento. "A única razão pela qual o déficit em conta corrente brasileiro não explodiu são os altos preços das commodities. Mas esse boom pode não durar para sempre", alertou o Financial Times. “A bicicleta econômica se depara com a trincheira da guerra cambial", ou seja, com a realidade da crise econômica mundial, acrescentou. A “bolha”, sua manifestação fenomênica, já estava presente: “Os consumidores brasileiros parecem estar sobrecarregados, gastando mais que um quarto de suas rendas para o pagamento de empréstimos, nível superior ao verificado nos Estados Unidos no período anterior à crise de 2008”.70

Um fator decisivo foi o crescimento do comércio brasileiro com a China, que pulou de US$ 760 milhões de dólares, em 1989, e US$ 2 bilhões em 2000, para US$ 56,8 bilhões, em 2010. A corrente de comércio do Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15% do total. Além disso, os investimentos diretos realizados pela China no Brasil, que somaram 250 milhões de dólares entre 1990 e 2009, elevaram-se até 13,7 bilhões de dólares em 2010, 28% de todos os investimentos estrangeiros no Brasil. A economia chinesa, porém, não era imune à crise mundial, e desenhou um movimento de desaceleração. A alta mundial das commodities, por sua vez, incluía um importante componente especulativo: os derivativos financeiros passaram a focar fundamentalmente os mercados de commodities devido ao colapso da especulação imobiliária, mas em volumes ainda maiores. As commodities são negociadas nos mercados de futuros, onde cada produto é vendido dezenas de vezes antes de chegar ao consumidor.

Os “sucessos” econômicos da última década haviam sido relativos e precários. Houvera uma expressiva formação de reservas internacionais pelo Brasil, em decorrência dos saldos comerciais obtidos pela alta de preços - puxada pelo crescimento da demanda mundial de commodities - de produtos com forte peso nas exportações, e também pelo fato da taxa básica de juros brasileira – base da remuneração dos títulos públicos - ser muito elevada. Isto fez com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios com os papéis da dívida pública brasileira: tornou-se excelente negócio – para grandes investidores – captar recursos no exterior, a taxas mais baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais elevadas, na dívida pública interna do país. O governo Lula isentara os fundos institucionais estrangeiros, que aplicassem recursos em títulos públicos, do imposto de renda sobre os rendimentos.

Com isso, aumentou a entrada de recursos em moeda forte no país, fazendo com que as reservas crescessem. Mas o custo financeiro era muito elevado e, no longo prazo, impagável: a remuneração dos credores dessa dívida era de 12% reais ao ano, uma carga de juros crescente. A dívida interna em títulos crescia sem parar, inviabilizando o orçamento público como fonte de recursos para a realização de investimentos na infraestrutura e nas políticas sociais universais. Como o real se desvalorizou apenas 2,4% frente ao dólar de setembro de 2005 até janeiro de 2006, foi garantido ao investidor estrangeiro, um rendimento de cerca de 10% ao ano, em dólares. E o governo Lula destinou, por diversas vias, R$ 300 bilhões a bancos e empresas, utilizando o BNDES e os bancos estatais para recompor a oferta de crédito na economia. Este dinheiro tinha como origem, principalmente, recursos dos trabalhadores captados pelo Estado (FAT e FGTS) e da caderneta de poupança. Na outra ponta, uma onda de demissões, sobretudo na indústria, varreu o país, do último trimestre de 2008 até meados de 2009. Muitas empresas que demitiram em massa, como a Embraer, não só receberam recursos e empréstimos subsidiados do governo como, depois das demissões, pagaram altos bônus a seus executivos e ainda remeteram lucros aumentados para seus acionistas no exterior.

Foram os países mais desenvolvidos da América Latina os mais afetados pela crise mundial. A “periferia emergente” do capitalismo “global” enfrentou, em 2009, pagamentos externos incrementados por uma dívida principalmente contraída pelas multinacionais, superando em alguns casos as reservas internacionais. Na Argentina, em 2008, se registrou uma saída de capitais de US$ 20 bilhões: uma parte da nova dívida fora contraída para expatriar capitais. Não era verdade, portanto, que no ciclo econômico 2002-2007 as nações latino-americanas se haviam transformado em credoras no mercado mundial: com o aumento da dívida privada externa, se mantiveram como devedores netos; os superávits comerciais foram a garantia financeira do endividamento privado. O capital financeiro internacional apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento dos preços e dos volumes exportados.

A crise mundial, assim, penetrou a América Latina devido à sua fragilidade financeira e comercial, e à sua fraca estrutura industrial. Os governos da região afirmaram inicialmente que driblariam a crise com a “solidez” das reservas dos Bancos Centrais. Mas a queda das Bolsas de Valores regionais, a saída de capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses argumentos. Propostas como a da "Declaração de Caracas", defendendo o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) e o Banco do Sul, novas instituições econômicas reguladas, e um acordo monetário latino-americano para enfrentar a crise, foram se revelando irrealizáveis. Projetos que não conseguiram avançar durante o período de crescimento econômico, ficaram com menos fundamento diante da crise.

Os projetos unificadores ou “integradores” latino-americanos também entraram em crise. Gasoduto do Sul, Banco do Sul, entrada de Venezuela ao Mercosul, não saíram do papel. A moeda comum Brasil-Argentina seria só um recurso contábil para compensar saldos de pagamentos externos. Acentuou-se a cooperação entre Venezuela e Colômbia, justamente quando a segunda estava prestes a realizar um tratado de livre comércio com os EUA. Brasil, por sua vez, reforçou sua aliança financeira com os EUA, em oposição à decisão argentina e chilena de nacionalizar os fundos de pensão privados. Brasil reduziu o consumo e o preço do gás boliviano. Na América Latina, Venezuela e Bolívia, entre outras nações, quando favorecidas pela conjuntura favorável do mercado mundial, na primeira década do século XXI, impulsionaram importantes campanhas de saúde e de educação (que nunca teriam sido feitas pelas velhas oligarquias desses países), mas não avançaram em sentar as bases econômicas da autonomia nacional, ou seja, para sustentar no longo prazo os planos populares e os programas sociais.

O grau da exposição do Brasil à crise mundial se acentuou pela acelerada internacionalização, comercial e financeira, de sua economia na última década. A corrente de comércio (importações + exportações) que em 2000 situava-se em R$ 100 bilhões, alcançou R$ 383 bilhões em 2010, se encaminhando para meio trilhão. O “Fundo Soberano” brasileiro perdeu mais de R$ 2 bilhões em 2010 devido à queda das Bolsas. As remessas de lucros ao exterior, por sua vez, superaram US$ 34 bilhões (74% do total correspondentes a empresas estrangeiras que fizeram investimentos diretos no Brasil).

A dívida pública brasileira acelerou sua trajetória ascendente. O déficit em conta corrente do país superou US$ 30 bilhões. A manutenção das reservas vinculou-se ao saldo positivo da conta capital. O fator que manteve os recordes do fluxo de capitais externos ao país foram as elevadas taxas de juros, assim como os recordes nas exportações e no superávit na balança comercial, enquanto os investimentos externos (de caráter especulativo, chamados pelos economistas de “aplicação disfarçada em renda fixa”) ultrapassaram US$ 70 bilhões.

A situação das contas nacionais se deteriorou: Brasil gastava, em média, mais de R$ 200 bilhões anuais (entre 40% e 50% do orçamento federal) em juros e amortização da dívida pública, que continuou crescendo, ultrapassando R$ 3 trilhões (R$ 2,4 trilhões a dívida interna; mais de R$ 600 bilhões a dívida externa), ou seja, quase um PIB. Nos quatro mandatos somados de Fernando Henrique Cardoso e Lula (1995-2010) os gastos com a dívida somaram mais de R$ 6,8 trilhões, dois PIBs.

No Brasil, entre 2001 e 2012, o total de benefícios diretos de Seguridade Social (Previdência Urbana e Rural, Benefício de Prestação Continuada, Seguro Desemprego) passou de 24 a 37 milhões de pessoas, 2/3 dos quais equivalentes ao salário mínimo, cuja valorização elevou a renda desse contingente em um percentual de 70% acima da inflação. Entre 2004 e 2010, o gasto social federal per capita passou de R$ 2.100 para R$ 3.325 anuais, com um aumento real de quase 60%. Em valores absolutos, passou de R$ 375 bilhões para R$ 638 bilhões; como percentual do PIB, passou de 13,2% para 15,5%.71

Essas não foram, em essência, políticas socialmente redistributivas, mas benefícios oriundos de um percentual do crescimento econômico e do consequente aumento da arrecadação fiscal. O governo Chávez, analogamente, se apoiara numa receita suposta a partir de cotações de petróleo de mais de US$ 100 por barril. Os países produtores, no entanto, concluíram dilapidando a renda extraordinária (diferencial) da produção mineira e petroleira, na crença ilusória de que os preços internacionais não cairiam nunca. A nacionalização parcial, na Bolívia, das três principais jazidas petrolíferas, não só preservou os “direitos adquiridos” pelos grupos multinacionais que as detinham,72 também fracassou em manter os investimentos previstos e aumentar a produção. A queda dos preços dos hidrocarbonetos fez entrar em crise as nacionalizações parciais, e abriu a via para uma nova etapa de concessões às multinacionais.

No entanto, segundo a propagando oficial, o Brasil estava liderando, através do Mercosul e da Unasul, um processo de integração continental, chegando até a exercer um papel mundial de integração comercial, industrial e financeira dos países “periféricos”. Foi concedido a Lula o prêmio especial de "estadista global", criado pelo Fórum Econômico Mundial de Davos, por ser um "modelo de estadista global", que "mostrou um verdadeiro compromisso com todos os setores da sociedade, mantido com um crescimento econômico integrador e justiça social". O Brasil teria um papel inconteste de liderança continental e seria já uma “potência global” do “Primeiro Mundo”, realizando, de modo inesperado e oblíquo, o sonho do “Brasil Potência” outrora acalentado pela ditadura militar. Com Lula, o regime civil brasileiro cumpriu um quarto de século, pretendendo ter resolvido, pela via capitalista, os problemas fundamentais da nação: independência nacional, soberania e desenvolvimento econômicos, questão agrária, miséria social, democracia política. O Brasil, palco de especulação financeira internacional, inchara sua capacidade de consumo e, até certo ponto, de investimento.

A Reorganização da Classe Operária

A realidade social era outra. Desde 1995, a produtividade do trabalho aumentara 14%, enquanto os salários médios se mantiveram no mesmo patamar. Com o aumento do desemprego e os cortes de custos pelas empresas, aumentara a pressão sobre os trabalhadores para a intensificação do ritmo de trabalho e da produtividade, com o objetivo de recompor a taxa de lucro. Em 2004, os trabalhadores de empresas privadas fizeram 114 greves, número que em 2008 saltou para 224 (no setor público, no entanto, o número de paralisações manteve-se praticamente estável, de 185 em 2004 para 184 em 2008). Essas greves fizeram os trabalhadores experimentarem concretamente o papel exercido pela burocracia sindical, que utilizou todos os meios a seu alcance para enfraquecer o movimento, desmobilizá-lo e obrigá-lo a ceder a propostas rebaixadas da patronal ou do governo. A sustentação material da burocracia encastelada nessas centrais era dependente cada vez menos da contribuição voluntária dos filiados de base, e cada vez mais dos recursos recebidos pelas mais diversas vias, do capital ou do próprio Estado.

Sua dependência em relação ao aparelho de Estado se manifesta nos milhões derivados do Imposto Sindical, de recursos do FAT e de convênios e contratos celebrados com os mais diversos órgãos do Estado, e nos postos ocupados em diversos órgãos e conselhos do Estado. Seus laços diretos com a patronal se estabelecem não só em sua participação em conselhos do “Sistema S” e pela celebração de convênios e contratos de todo tipo, mas, também, notadamente no caso da CUT, pela via do controle dos principais fundos de pensão do país, sócios de mais de 340 bilhões de reais investidos no mercado financeiro, na dívida estatal e na propriedade ou no controle acionário de algumas das maiores empresas do país.

Um novo sindicalismo combativo começou a se organizar nacionalmente. A Conlutas (Coordenação Nacional das Lutas, que se organizou como “Central Sindical e Popular”, CSP) já dirigia ou estava presente como oposição organizada nos sindicatos de maior importância estratégica no país. Em 2006, chapas da CSP-Conlutas assumiram sindicatos estratégicos como os dos Metalúrgicos de Volta Redonda, Metroviários de São Paulo e parte da representação dos bancários. E fugiu do controle da direção da CUT a greve que parou os bancos em seis estados. Mas, assim como na ditadura, os juízes estavam cassando o direito de greve da classe trabalhadora: inúmeras greves foram decretadas ilegais, como a greve do INSS, que poderia desencadear um amplo movimento nacional de todos os servidores federais.

Anos de derrotas e desmobilização operária cobravam seu preço. No Brasil, nos oito anos de governo encabeçado por Lula, praticamente a totalidade das direções políticas e sindicais da classe operária e do campo foi integrada ao Estado. Os trabalhadores e as classes médias viam no “lulismo” um fator de integração, de ascensão social e de progresso econômico ininterrupto, uma situação que começou a mudar só em 2009. Além de incorporação de numerosos dirigentes aos diversos escalões do Estado, a cooptação, como vimos, baseou-se no fortalecimento dos aparelhos sindicais com base nas contribuições compulsórias.

A desmobilização social, com escassas exceções, foi a tônica dominante nos “anos Lula”. Desde 2009, porém, frente à crise econômica e às demissões, se produziu uma recuperação das lutas operárias, inclusive em setores estratégicos. No segundo semestre de 2009, houve uma série de importantes greves. Grandes categorias, como metalúrgicos, bancários, petroleiros (estes, pela primeira vez em greve em 14 anos, em 17 plantas e refinarias), operários da construção civil e trabalhadores dos Correios, dentre outras, cruzaram os braços, saíram às ruas em defesa de seus salários e direitos e tiveram de enfrentar, não apenas a patronal e o Estado, mas também a burocracia sindical da CUT, da Força Sindical e da CTB. Nos anos de 2009 e 2010, ocorreram 964 greves no país, segundo o Dieese. Os números eram os maiores da década.