Jorge
Altamira (dirigente do Partido Obrero da Argentina)
A
crise mundial que se iniciou em 2007 não esgotou seus efeitos, e nem
desenvolveu ainda todas suas conclusões e possibilidades históricas.
Um de seus traços distintivos foi o que teve lugar quando havia
transcorrido uma década e meia da abertura ao mercado mundial das
economias de Estados poderosos como a Rússia e a China. Essa
abertura (uma verdadeira válvula de segurança para o capitalismo),
desatou, ao mesmo tempo, tendências anarquizantes do capitalismo com
uma intensidade sem paralelo. O estouro da crise asiática e russa em
1997, e a mundial dez anos mais tarde, forçou a intervenção do
Estado na China e na Rússia, e a aparição de governos
bonapartistas que arbitram com o capital internacional. Foram as
primeiras manifestações do antagonismo que aflora na atualidade, em
particular entre os Estados Unidos e a China. Nesse processo ficou
sepultada a ilusão de uma transição "pacifica" entre as
economias estatizadas e dirigidas e a economia capitalista mundial em
seu conjunto.
NACIONALISMO
A
força que tem obtido as tendências nacionalistas na Europa, como o
Brexit, e a vitória de Trump, obedece ao fracasso das tentativas de
reativação econômica, principalmente dos Estados Unidos e da UE,
por meio dos resgates estatais aos bancos. São a expressão do
esgotamento de uma etapa política. O resgate que foi melhor
sucedido, o norte-americano, não recuperou a taxa de crescimento
potencial do PIB, ou seja a taxa de crescimento da produtividade, nem
a de investimento, e muito menos ainda a dos salários (a demanda do
consumo final). A extraordinária valorização das empresas
tecnológicas nas bolsas responde a uma expectativa de lucros que não
tem passado pela prova do mercado. A enorme acumulação de capital
efetivo nessas empresas traduz, pelo contrário, a ausência de uma
rentabilidade adequada que justifique investimentos significativos. A
expansão da exploração não convencional de petróleo tem sido
subsidiada por uma taxa de juros artificialmente baixa.
É o que
esquece Trump, para sua conveniência, quando denuncia os subsídios
ocultos que provem o Estado chinês a seus capitais.Em seu conjunto,
a economia norte-americana registra um enorme crescimento do
endividamento nacional (Estado federal, estados, municípios, bancos,
empresas, famílias). É uma economia potencialmente em quebra, que
se sustenta pela capacidade de emissão da principal divisa
internacional: o dólar. Por outro lado, a "pedra preciosa"
da globalização, a City de Londres, enfrentava, no momento do
Brexit, um deficit internacional de pagamentos de quase 1 trilhão de
dólares, assim como a sobrevalorização da libra e um colapso
industrial (por exemplo, a siderúrgica Tata).
A
reação nacionalista, é importante se advertir, não tem um caráter
uniforme: é ofensiva nos Estados Unidos e defensiva na União
Europeia, e ainda mais nos casos dos países periféricos. O que tem
em comum é sua condição de reação política preventiva frente às
manifestações da crise política. As condições de existência das
massas deterioraram-se fortemente no curso da crise. A crise mundial
tem acentuado o antagonismo das massas com os governos habituais, no
marco do sistema democrático. As agências de risco internacionais
tem incorporado o "risco político" na avaliação das
companhias e dos Estados.
A
base social dessa reação nacionalista (nacionalismo reacionário)
é, no atual momento, débil. No Leste da Europa e na Rússia, onde
parece mais assentada, provocou mobilizações de rejeição de
envergadura variada. Enfrenta a oposição de setores da burguesia
fortemente vinculados a investimentos internacionais ou a
terceirização internacional de sua produção. Para uma maioria da
burguesia, o abandono dos métodos "democráticos" resulta
ainda prematuro e perigoso, porque aceleraria uma polarização que
não considera desejável nem funcional a seus interesses. Pode
operar como um incentivo para grandes mobilizações populares em
países onde a tradição histórica de luta está presente na
consciência cotidiana.
BONAPARTISMO
E IMPEACHMENT
Esta
crise política ficou exposta na transição de Obama a Trump:
choques no Congresso, choques no aparato de segurança, choques na
grande imprensa, críticas abertas na cúpula da OTAN e por parte do
presidente que estava saindo. Também tem se caracterizado pelos
choques entre a indústria automobilística e a nova administração
sobre a questão do México, ou com a indústria de alta tecnologia,
que Trump denúncia por retenção de atividades no exterior. Nas
interpelações do Congresso, os ministros designados tem desmentido
as propostas de Trump em assuntos centrais para o debate político.
Assistimos, antes de mais nada, a uma divisão excepcional nos
interior das fileiras da burguesia norte-americana.
A
ideia de que Trump "joga" a confusão para deslocar seus
adversários, não deixa claro sobre as contradições explosivas
desse tipo de "jogo". A rejeição à realização de
"conferências de imprensa" por um lado e a oposição ao
projeto de reforma impositiva da bancada republicana, que busca
evitar a aplicação de impostos de importação, constituem os
primeiros passos da instalação de um governo bonapartista nos
Estados Unidos. Contudo, os legisladores republicanos tentam impedir
a adoção de impostos protecionistas que desatem uma guerra
comercial aberta, mediante um regime impositivo às importações,
depois de as mesmas tiverem entrado no mercado norte-americano, e
suscetíveis a isenções e deduções. Trump rejeita a proposta de
sua bancada, nesse tema crucial de sua agenda, de forma pública e
taxativa. A tentativa bonapartista já está abrindo a discussão do
"impeachment". A divisão da burguesia norte-americana e a
tendência bonapartista são os aspectos fundamentais, no momento, da
crise política nos Estados Unidos.
A
reação nacionalista deixa a nu as contradições da saída à crise
capitalista que coloca em foco a reativação por meio de déficits
fiscais e gastos em grandes obras públicas. Os defensores "liberais"
dessa saída, como é o caso do editor do Finantial Times, Martin
Wolf, ocultam a contradição de uma reativação "nacional"
que aumente a demanda fora do país em benefício do capital
estrangeiro e em detrimento relativo do capital nacional. O
capitalismo não admite saídas "coordenadas" a essa crise.
No entanto, diferentemente da crise dos anos 30 do século passado, o
fechamento da economia prejudicaria diretamente o capital
norte-americano que se encontra investido fora de suas fronteiras. Os
juros e dividendos que o capital norte-americano emite do exterior
supera o montante que o Estados Unidos tem que pagar por sua divida
externa e a emissão de lucros ao capital estrangeiro. Uma reativação
das obras públicas em grande escala desvalorizaria, por outro lado,
a dívida pública corrente em mãos dos bancos e financeiras
(aumentando a taxa de juros), o qual destroçaria um capital fictício
calculado em mil vezes um trilhão de dólares. Quando ocorre a
divulgação das estatísticas sobre o patrimônio acumulado dos
maiores bilionários capitalistas do mundo, não agregam que se trata
de um capital fictício (títulos da dívida de Estados, ações de
empresas, etc), que frequentemente encontram-se supervalorizados.
PROTECIONISMO:
OS MEIOS E OS FINS
Enquanto
que o nacionalismo europeu propõe uma defesa dos mercados nacionais,
inclusive da zona do euro, é incorreto caracterizar as propostas de
Trump como uma defesa do mercado norte-americano. A "guerra
comercial" que impulsiona Trump tem por finalidade impor a
abertura dos mercados estrangeiros ao capital norte-americano, em
especial no caso da China. O imperialismo reclama a privatização e
o desmantelamento das empresas estatais chinesas, assim como a
abertura ao capital estrangeiro das Bolsas e a negociação da dívida
pública. Utiliza o protecionismo para arrancar concessões
absolutamente estratégicas nos mercados rivais.
Depois
de inundar o mercado mundial com aço e alumínio, a China procura
sair dessa crise de superprodução liquidando partes de diversos
ramos de atividade, porém também mediante a industrialização
dessas matérias primas, aumentando assim a escala do seu valor
agregado. Este
choque alcançou uma temperatura excepcional com o desenvolvimento,
ainda incipiente, da indústria de chips e semicondutores por parte
da China. Se trata de uma matriz tecnológica dos serviços
industriais modernos. Por isso, os Estados Unidos tem bloqueado a
aquisição de empresas de tecnologia com as quais a China pretendia
abreviar o tempo de gestação desta indústria. Um setor da imprensa
caracterizou esta tentativa da China como o equivalente ao
desenvolvimento da frota naval por parte da Alemanha, que desencadeou
a Primeira Guerra Mundial. Mais que uma medida de protecionismo
aduaneiro convencional, Trump representa a declaração de guerra
contra o protecionismo industrial e financeiro da China. Trump
continua a linha precedente, porém modifica sua escala.
EUROPA
E AMÉRICA
A
ofensiva norte-americana sobre a China altera forçosamente as
relações capitalistas internacionais. Não pode ter lugar "de
forma conjunta" por parte dos Estados Unidos de um lado, e da
Europa, do outro lado, porque tem por base uma incorrigível
rivalidade entre Estados capitalistas. Daí as grosserias de Trump
com a unidade europeia e as saudações ao Brexit. Além disso, o
Brexit aniquilou a proposta do ex-Primeiro Ministro David Cameron e
da City em favor de desenvolver uma relação especial com a China,
que se manifestou na decisão de integrar o Banco Internacional de
Desenvolvimento impulsionado pela China e, inclusive, admitir o
desmantelamento da siderurgia na Grã Bretanha, em benefício da
China, e a participação da China na construção de reatores
nucleares, em troca de uma integração financeira da China com o
mercado de Londres (convertibilidade do yuan).
À
luz deste conflito de posições, poderia-se dizer que o Brexit foi
um tipo de golpe de Estado contra o "governo pró China" de
seu antecessor. Theresa May, ao contrário, anunciou o desejo de
estabelecer uma "relação especial" com o Estados Unidos
de Trump. Antecipa desse modo, a possibilidade, que o chauvinismo
europeu não seja outra coisa do que uma troca de amo das burguesias
europeias: da Alemanha para os Estados Unidos (aliado de Putin).
A
DECADÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS
O
anúncio de uma ofensiva "comercial" contra a China ocorre
justamente quando a China encontra-se à beira de uma enorme crise
financeira, que não pode ser contida, nem mesmo resolvida, por uma
maior intervenção do Estado. Em
2016, saíram 1 trilhão de dólares em divisas, apesar dos controles
oficiais. A posse da dívida norte-americana por parte da China tem
caído em cifras parecidas e é provável que tenha sido a causa
principal da recente subida dos juros nos EUA. A manifestação
política dessa crise é o acentuado bonapartismo de Xi Jinping, o
presidente da China. Recentemente, em Davos, Xi respondeu à pressão
de Trump com uma oferta de abertura.
Os novos desenvolvimentos
políticos prenunciam uma aceleração da crise na China, em especial
uma crise de seu sistema político. O enfrentamento dos Estados
Unidos versus China ocorre quando se desenvolve uma intensa fratura
na burguesia norte-americana, de um lado, e algo similar na
burocracia da China, de outro. A transição internacional em curso
abre uma crise de poder na maioria das principais nações. Antes que
se desenvolva a possibilidade de uma guerra em que se enfrentem a
China e os Estados Unidos como protagonistas principais, será
necessário unificar a burguesia e a burocracia dos respectivos
países e, de um modo geral, transformar o regime político
democrático que caracteriza aos países capitalistas avançados.
Muitas
caracterizações do processo atual fazem referência a uma
declinação ou decadência dos Estados Unidos como a principal
potência na liderança do sistema capitalista mundial. Essa
caracterização supõe o ascenso de alguma potência rival, o que,
até o momento, não ocorre. Muito pelo contrário: os BRICS (Brasil,
Rússia, China, Índia e África do Sul) perderam a sua vigência; o
Brasil e a Índia guinaram para a órbita norte-americana em suas
mudanças recentes de governo. A União Europeia atravessa uma
desintegração prolongada. A profundidade da bancarrota capitalista
mundial tem acentuado dependência dos Estados capitalistas e
restauracionistas (que estão em processo de restauração
capitalista) com relação aos Estados Unidos. Que é o único pais
que conta com bancos de investimento. O dólar tem alcançado um pico
máximo de participação nas transações comerciais e financeiras
internacionais. A impressão de uma declinação do imperialismo
ianque é uma leitura distorcida pela enorme declinação histórica
do capitalismo mundial.
Não
nos encontramos diante de uma fase de substituição da liderança
mundial. Assistimos à desintegração do bloco político formado
pelas nações capitalistas logo após a Segunda Guerra Mundial. As
vacilações que guiaram a política norte-americana nesta aliança é
uma coisa do passado. Trump pretende inaugurar a política do
garrote, estrangulando assim as políticas divergentes, no seio do
que foi a "aliança do ocidente".
FORMOU-SE
UMA DUPLA?
O
cortejo de Trump para com Putin é, obviamente, uma tentativa de
desqualificar os regimes democráticos capitalistas, os quais o
magnata americano definiu como "talk, talk, talk, but no action"
(falam muito, mas não agem); ou seja a necessidade de governos
fortes ou bonapartistas.
É,
no entanto, um reconhecimento, por um lado, do fracasso da tentativa
de dissolver a Rússia como estado multinacional, ou converte-la,
alternativamente, em colônia econômica, como tentaram Bush pai e
Bill Clinton; por outro lado, é o reconhecimento do rol
contrarrevolucionário do regime de Putin no conjunto da ordem
mundial. As invasões do Afeganistão e do Iraque, por parte da
coalizão liderada pelo Pentágono, tem desatado uma crise gigantesca
no Oriente Médio. O imperialismo teme o renascimento das revoluções
árabes e as consequências da crise da Turquia, principal base da
Otan.
A
política do "state bulding" (construir protetorados
políticos constitucionais) concluiu em um gigantesco fracasso.
Fracassou do mesmo modo o propósito de Obama de produzir uma "saída
ordenada" da região. A convocatória de Trump a Putin para
"combater o terrorismo" representa, em primeiro lugar, o
reconhecimento escancarado desse fracasso. Também é uma oferta de
"divisão das influências" nessa região, que deve contar
com o acordo do Estado sionista.
Por
outro lado, representa uma tentativa de colocar a Rússia sob uma
tutela norte-americana. Trump e Putin estão interessados nos
investimentos petroleiros no Ártico, o qual supõe, em grande
medida, um acordo energético internacional, que incluem a Ucrânia,
os gasodutos (desde a Síria ao Chipre), e uma potencial crise com a
Arábia Saudita e com o Qatar. Abrindo uma crise com a União
Europeia. Os comando militares do Pentágono e da OTAN suspeitam da
aproximação da Rússia, e também advertem que Putin não está
disposto a operar sob a batuta de Trump. O que aparece como uma
divergência, está repleta de antagonismos.
O
propósito que se atribui a Trump, de querer meter uma cunha entre a
China e a Rússia, é por enquanto apenas uma ilusão. Contudo, as
"ideias" de Trump, não demonstraram consistência ainda,
se é que isso já ocorreu em algum momento. Tem as características
de um falso ensaio, de um blefe. O que está claro é que a crise
mundial destruiu a ilusão de reequilíbrio das relações
capitalistas e está produzindo um realinhamento entre as principais
potências, de alcance incerto. A experiência Trump deixa
vislumbrar, no entanto, as tendências políticas de conjunto.
O
EPICENTRO DA CRISE POLÍTICA
A
posse de Trump acelerou as tendências políticas que se encontravam
em pleno desenvolvimento. O campo principal de disputa se encontra no
interior dos Estados Unidos. Existe uma divisão excepcional na
burguesia, seus partidos, e suas instituições. A reação popular
que tem se produzido em larga escala por todo o país, encontra-se
sob a tutela da burguesia e da pequena burguesia liberais, e será
usada para impulsionar um "revival" democrata. Porém é o
início de uma luta. A experiência chauvinista de Trump (que obteve
três milhões de votos a menos que sua rival) vem logo após a de
uma presidência realizada por um negro, que foi uma tentativa
liberal fracassada de apaziguar a crise e os antagonismos de classe.
Dois presidentes, um negro, de um lado, e um chauvinista branco, do
outro, não deixam de representar os recursos "extremos"
alternativos a uma mesma crise de conjunto.
Os
Estados Unidos se converteram no epicentro político da crise
mundial, após já terem sido o epicentro econômico e financeiro
dessa mesma crise.