domingo, 26 de março de 2017

MUDANÇA DE REGIME E CRISE POLÍTICA NOS ESTADOS UNIDOS

                                                                                       



Jorge Altamira (dirigente do Partido Obrero da Argentina)





A crise mundial que se iniciou em 2007 não esgotou seus efeitos, e nem desenvolveu ainda todas suas conclusões e possibilidades históricas. Um de seus traços distintivos foi o que teve lugar quando havia transcorrido uma década e meia da abertura ao mercado mundial das economias de Estados poderosos como a Rússia e a China. Essa abertura (uma verdadeira válvula de segurança para o capitalismo), desatou, ao mesmo tempo, tendências anarquizantes do capitalismo com uma intensidade sem paralelo. O estouro da crise asiática e russa em 1997, e a mundial dez anos mais tarde, forçou a intervenção do Estado na China e na Rússia, e a aparição de governos bonapartistas que arbitram com o capital internacional. Foram as primeiras manifestações do antagonismo que aflora na atualidade, em particular entre os Estados Unidos e a China. Nesse processo ficou sepultada a ilusão de uma transição "pacifica" entre as economias estatizadas e dirigidas e a economia capitalista mundial em seu conjunto.

NACIONALISMO

A força que tem obtido as tendências nacionalistas na Europa, como o Brexit, e a vitória de Trump, obedece ao fracasso das tentativas de reativação econômica, principalmente dos Estados Unidos e da UE, por meio dos resgates estatais aos bancos. São a expressão do esgotamento de uma etapa política. O resgate que foi melhor sucedido, o norte-americano, não recuperou a taxa de crescimento potencial do PIB, ou seja a taxa de crescimento da produtividade, nem a de investimento, e muito menos ainda a dos salários (a demanda do consumo final). A extraordinária valorização das empresas tecnológicas nas bolsas responde a uma expectativa de lucros que não tem passado pela prova do mercado. A enorme acumulação de capital efetivo nessas empresas traduz, pelo contrário, a ausência de uma rentabilidade adequada que justifique investimentos significativos. A expansão da exploração não convencional de petróleo tem sido subsidiada por uma taxa de juros artificialmente baixa.

É o que esquece Trump, para sua conveniência, quando denuncia os subsídios ocultos que provem o Estado chinês a seus capitais.Em seu conjunto, a economia norte-americana registra um enorme crescimento do endividamento nacional (Estado federal, estados, municípios, bancos, empresas, famílias). É uma economia potencialmente em quebra, que se sustenta pela capacidade de emissão da principal divisa internacional: o dólar. Por outro lado, a "pedra preciosa" da globalização, a City de Londres, enfrentava, no momento do Brexit, um deficit internacional de pagamentos de quase 1 trilhão de dólares, assim como a sobrevalorização da libra e um colapso industrial (por exemplo, a siderúrgica Tata).

A reação nacionalista, é importante se advertir, não tem um caráter uniforme: é ofensiva nos Estados Unidos e defensiva na União Europeia, e ainda mais nos casos dos países periféricos. O que tem em comum é sua condição de reação política preventiva frente às manifestações da crise política. As condições de existência das massas deterioraram-se fortemente no curso da crise. A crise mundial tem acentuado o antagonismo das massas com os governos habituais, no marco do sistema democrático. As agências de risco internacionais tem incorporado o "risco político" na avaliação das companhias e dos Estados.

A base social dessa reação nacionalista (nacionalismo reacionário) é, no atual momento, débil. No Leste da Europa e na Rússia, onde parece mais assentada, provocou mobilizações de rejeição de envergadura variada. Enfrenta a oposição de setores da burguesia fortemente vinculados a investimentos internacionais ou a terceirização internacional de sua produção. Para uma maioria da burguesia, o abandono dos métodos "democráticos" resulta ainda prematuro e perigoso, porque aceleraria uma polarização que não considera desejável nem funcional a seus interesses. Pode operar como um incentivo para grandes mobilizações populares em países onde a tradição histórica de luta está presente na consciência cotidiana.

BONAPARTISMO E IMPEACHMENT

Esta crise política ficou exposta na transição de Obama a Trump: choques no Congresso, choques no aparato de segurança, choques na grande imprensa, críticas abertas na cúpula da OTAN e por parte do presidente que estava saindo. Também tem se caracterizado pelos choques entre a indústria automobilística e a nova administração sobre a questão do México, ou com a indústria de alta tecnologia, que Trump denúncia por retenção de atividades no exterior. Nas interpelações do Congresso, os ministros designados tem desmentido as propostas de Trump em assuntos centrais para o debate político. Assistimos, antes de mais nada, a uma divisão excepcional nos interior das fileiras da burguesia norte-americana.

A ideia de que Trump "joga" a confusão para deslocar seus adversários, não deixa claro sobre as contradições explosivas desse tipo de "jogo". A rejeição à realização de "conferências de imprensa" por um lado e a oposição ao projeto de reforma impositiva da bancada republicana, que busca evitar a aplicação de impostos de importação, constituem os primeiros passos da instalação de um governo bonapartista nos Estados Unidos. Contudo, os legisladores republicanos tentam impedir a adoção de impostos protecionistas que desatem uma guerra comercial aberta, mediante um regime impositivo às importações, depois de as mesmas tiverem entrado no mercado norte-americano, e suscetíveis a isenções e deduções. Trump rejeita a proposta de sua bancada, nesse tema crucial de sua agenda, de forma pública e taxativa. A tentativa bonapartista já está abrindo a discussão do "impeachment". A divisão da burguesia norte-americana e a tendência bonapartista são os aspectos fundamentais, no momento, da crise política nos Estados Unidos.

A reação nacionalista deixa a nu as contradições da saída à crise capitalista que coloca em foco a reativação por meio de déficits fiscais e gastos em grandes obras públicas. Os defensores "liberais" dessa saída, como é o caso do editor do Finantial Times, Martin Wolf, ocultam a contradição de uma reativação "nacional" que aumente a demanda fora do país em benefício do capital estrangeiro e em detrimento relativo do capital nacional. O capitalismo não admite saídas "coordenadas" a essa crise. No entanto, diferentemente da crise dos anos 30 do século passado, o fechamento da economia prejudicaria diretamente o capital norte-americano que se encontra investido fora de suas fronteiras. Os juros e dividendos que o capital norte-americano emite do exterior supera o montante que o Estados Unidos tem que pagar por sua divida externa e a emissão de lucros ao capital estrangeiro. Uma reativação das obras públicas em grande escala desvalorizaria, por outro lado, a dívida pública corrente em mãos dos bancos e financeiras (aumentando a taxa de juros), o qual destroçaria um capital fictício calculado em mil vezes um trilhão de dólares. Quando ocorre a divulgação das estatísticas sobre o patrimônio acumulado dos maiores bilionários capitalistas do mundo, não agregam que se trata de um capital fictício (títulos da dívida de Estados, ações de empresas, etc), que frequentemente encontram-se supervalorizados.

PROTECIONISMO: OS MEIOS E OS FINS

Enquanto que o nacionalismo europeu propõe uma defesa dos mercados nacionais, inclusive da zona do euro, é incorreto caracterizar as propostas de Trump como uma defesa do mercado norte-americano. A "guerra comercial" que impulsiona Trump tem por finalidade impor a abertura dos mercados estrangeiros ao capital norte-americano, em especial no caso da China. O imperialismo reclama a privatização e o desmantelamento das empresas estatais chinesas, assim como a abertura ao capital estrangeiro das Bolsas e a negociação da dívida pública. Utiliza o protecionismo para arrancar concessões absolutamente estratégicas nos mercados rivais.

Depois de inundar o mercado mundial com aço e alumínio, a China procura sair dessa crise de superprodução liquidando partes de diversos ramos de atividade, porém também mediante a industrialização dessas matérias primas, aumentando assim a escala do seu valor agregado. Este choque alcançou uma temperatura excepcional com o desenvolvimento, ainda incipiente, da indústria de chips e semicondutores por parte da China. Se trata de uma matriz tecnológica dos serviços industriais modernos. Por isso, os Estados Unidos tem bloqueado a aquisição de empresas de tecnologia com as quais a China pretendia abreviar o tempo de gestação desta indústria. Um setor da imprensa caracterizou esta tentativa da China como o equivalente ao desenvolvimento da frota naval por parte da Alemanha, que desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Mais que uma medida de protecionismo aduaneiro convencional, Trump representa a declaração de guerra contra o protecionismo industrial e financeiro da China. Trump continua a linha precedente, porém modifica sua escala.

EUROPA E AMÉRICA

A ofensiva norte-americana sobre a China altera forçosamente as relações capitalistas internacionais. Não pode ter lugar "de forma conjunta" por parte dos Estados Unidos de um lado, e da Europa, do outro lado, porque tem por base uma incorrigível rivalidade entre Estados capitalistas. Daí as grosserias de Trump com a unidade europeia e as saudações ao Brexit. Além disso, o Brexit aniquilou a proposta do ex-Primeiro Ministro David Cameron e da City em favor de desenvolver uma relação especial com a China, que se manifestou na decisão de integrar o Banco Internacional de Desenvolvimento impulsionado pela China e, inclusive, admitir o desmantelamento da siderurgia na Grã Bretanha, em benefício da China, e a participação da China na construção de reatores nucleares, em troca de uma integração financeira da China com o mercado de Londres (convertibilidade do yuan).
À luz deste conflito de posições, poderia-se dizer que o Brexit foi um tipo de golpe de Estado contra o "governo pró China" de seu antecessor. Theresa May, ao contrário, anunciou o desejo de estabelecer uma "relação especial" com o Estados Unidos de Trump. Antecipa desse modo, a possibilidade, que o chauvinismo europeu não seja outra coisa do que uma troca de amo das burguesias europeias: da Alemanha para os Estados Unidos (aliado de Putin).

A DECADÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS

O anúncio de uma ofensiva "comercial" contra a China ocorre justamente quando a China encontra-se à beira de uma enorme crise financeira, que não pode ser contida, nem mesmo resolvida, por uma maior intervenção do Estado. Em 2016, saíram 1 trilhão de dólares em divisas, apesar dos controles oficiais. A posse da dívida norte-americana por parte da China tem caído em cifras parecidas e é provável que tenha sido a causa principal da recente subida dos juros nos EUA. A manifestação política dessa crise é o acentuado bonapartismo de Xi Jinping, o presidente da China. Recentemente, em Davos, Xi respondeu à pressão de Trump com uma oferta de abertura.

Os novos desenvolvimentos políticos prenunciam uma aceleração da crise na China, em especial uma crise de seu sistema político. O enfrentamento dos Estados Unidos versus China ocorre quando se desenvolve uma intensa fratura na burguesia norte-americana, de um lado, e algo similar na burocracia da China, de outro. A transição internacional em curso abre uma crise de poder na maioria das principais nações. Antes que se desenvolva a possibilidade de uma guerra em que se enfrentem a China e os Estados Unidos como protagonistas principais, será necessário unificar a burguesia e a burocracia dos respectivos países e, de um modo geral, transformar o regime político democrático que caracteriza aos países capitalistas avançados.

Muitas caracterizações do processo atual fazem referência a uma declinação ou decadência dos Estados Unidos como a principal potência na liderança do sistema capitalista mundial. Essa caracterização supõe o ascenso de alguma potência rival, o que, até o momento, não ocorre. Muito pelo contrário: os BRICS (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul) perderam a sua vigência; o Brasil e a Índia guinaram para a órbita norte-americana em suas mudanças recentes de governo. A União Europeia atravessa uma desintegração prolongada. A profundidade da bancarrota capitalista mundial tem acentuado dependência dos Estados capitalistas e restauracionistas (que estão em processo de restauração capitalista) com relação aos Estados Unidos. Que é o único pais que conta com bancos de investimento. O dólar tem alcançado um pico máximo de participação nas transações comerciais e financeiras internacionais. A impressão de uma declinação do imperialismo ianque é uma leitura distorcida pela enorme declinação histórica do capitalismo mundial.

Não nos encontramos diante de uma fase de substituição da liderança mundial. Assistimos à desintegração do bloco político formado pelas nações capitalistas logo após a Segunda Guerra Mundial. As vacilações que guiaram a política norte-americana nesta aliança é uma coisa do passado. Trump pretende inaugurar a política do garrote, estrangulando assim as políticas divergentes, no seio do que foi a "aliança do ocidente".

FORMOU-SE UMA DUPLA?

O cortejo de Trump para com Putin é, obviamente, uma tentativa de desqualificar os regimes democráticos capitalistas, os quais o magnata americano definiu como "talk, talk, talk, but no action" (falam muito, mas não agem); ou seja a necessidade de governos fortes ou bonapartistas.
É, no entanto, um reconhecimento, por um lado, do fracasso da tentativa de dissolver a Rússia como estado multinacional, ou converte-la, alternativamente, em colônia econômica, como tentaram Bush pai e Bill Clinton; por outro lado, é o reconhecimento do rol contrarrevolucionário do regime de Putin no conjunto da ordem mundial. As invasões do Afeganistão e do Iraque, por parte da coalizão liderada pelo Pentágono, tem desatado uma crise gigantesca no Oriente Médio. O imperialismo teme o renascimento das revoluções árabes e as consequências da crise da Turquia, principal base da Otan.

A política do "state bulding" (construir protetorados políticos constitucionais) concluiu em um gigantesco fracasso. Fracassou do mesmo modo o propósito de Obama de produzir uma "saída ordenada" da região. A convocatória de Trump a Putin para "combater o terrorismo" representa, em primeiro lugar, o reconhecimento escancarado desse fracasso. Também é uma oferta de "divisão das influências" nessa região, que deve contar com o acordo do Estado sionista.

Por outro lado, representa uma tentativa de colocar a Rússia sob uma tutela norte-americana. Trump e Putin estão interessados nos investimentos petroleiros no Ártico, o qual supõe, em grande medida, um acordo energético internacional, que incluem a Ucrânia, os gasodutos (desde a Síria ao Chipre), e uma potencial crise com a Arábia Saudita e com o Qatar. Abrindo uma crise com a União Europeia. Os comando militares do Pentágono e da OTAN suspeitam da aproximação da Rússia, e também advertem que Putin não está disposto a operar sob a batuta de Trump. O que aparece como uma divergência, está repleta de antagonismos.

O propósito que se atribui a Trump, de querer meter uma cunha entre a China e a Rússia, é por enquanto apenas uma ilusão. Contudo, as "ideias" de Trump, não demonstraram consistência ainda, se é que isso já ocorreu em algum momento. Tem as características de um falso ensaio, de um blefe. O que está claro é que a crise mundial destruiu a ilusão de reequilíbrio das relações capitalistas e está produzindo um realinhamento entre as principais potências, de alcance incerto. A experiência Trump deixa vislumbrar, no entanto, as tendências políticas de conjunto.

O EPICENTRO DA CRISE POLÍTICA

A posse de Trump acelerou as tendências políticas que se encontravam em pleno desenvolvimento. O campo principal de disputa se encontra no interior dos Estados Unidos. Existe uma divisão excepcional na burguesia, seus partidos, e suas instituições. A reação popular que tem se produzido em larga escala por todo o país, encontra-se sob a tutela da burguesia e da pequena burguesia liberais, e será usada para impulsionar um "revival" democrata. Porém é o início de uma luta. A experiência chauvinista de Trump (que obteve três milhões de votos a menos que sua rival) vem logo após a de uma presidência realizada por um negro, que foi uma tentativa liberal fracassada de apaziguar a crise e os antagonismos de classe. Dois presidentes, um negro, de um lado, e um chauvinista branco, do outro, não deixam de representar os recursos "extremos" alternativos a uma mesma crise de conjunto.


 Os Estados Unidos se converteram no epicentro político da crise mundial, após já terem sido o epicentro econômico e financeiro dessa mesma crise.